18.9.10

Um comercial da Petrobras



 [...] Para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens.
Karl Marx
 
Em 1867, só uma analogia como esta poderia explicar a ideia de relações sociais entre coisas e relações reificadas entre pessoas. Afinal, ainda não havia comerciais da Petrobras. O sonho de consumo do seu carro foi descrito por alguns amigos ontem. Eu ainda não tinha visto, mas fiquei tão impressionado, que logo que pude corri para vê-lo com meus próprios olhos. As imagens confirmaram o que as palavras me fizeram pensar. Que coisa fantástica! José Saramago, pouco antes de morrer, havia dito que Marx nunca esteve tão certo como agora. Agora, o comercial, involuntariamente, sem saber traduz em imagens uma ideia que o filósofo alemão verbalizou na escrita, e reiterou continuadamente, a ponto de convertê-la num pilar de seu pensamento:

[Em relação aos homens] seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las.

No dia 1º de maio de 1890, em Londres, Friedrich Engels escrevia o prefácio a uma nova edição alemã do Manifesto comunista. Estava empolgadíssimo com o crescente movimento proletário e fazia uma rápida restrospectiva: " 'Proletários de todos os países, uni-vos!' Somente algumas vozes responderam quando lançamos estas palavras ao mundo, há quarenta e dois anos (...)". "Entretanto, a 28 de setembro de 1864, proletários da maior parte dos países da Europa Ocidental reuniram-se na Associação Internacional dos Trabalhadores (...)". "No momento em que escrevo estas linhas, o proletariado europeu e americano passa em revista as suas forças, mobilizadas pela primeira vez num único exército, sob uma única bandeira e por um único objetivo imediato: a fixação legal da jornada de trabalho de oito horas (...)".

Ao final, recordava o companheiro morto há sete anos: "Ah! estivesse Marx a meu lado para ver isso com seus próprios olhos!"

Que ninguém duvide da força da linguagem, especialmente esta linguagem verbal, cujos criadores, os homens, em dado estágio da história elevaram a uma forma duradoura e grandiloquente: a escrita. Hoje, 120 anos depois daquele prefácio, nem Marx nem Engels precisam estar vivos para ver o mundo. Eles continuam a enxergá-lo, agora, por nossos olhos. É bem verdade que a classe trabalhadora é hoje diversa e as perspectivas humanas nunca foram tão pobres, tanto prática quanto teoricamente, em contraste com um século XIX tão rico. Conquistamos as oito horas de trabalho e paramos nisso (sem perceber que levamos cada vez mais trabalho pra casa). Mastigamos ainda talvez os efeitos do XX, este século tão desastroso em tantos sentidos.

Se a perspectiva de um mundo socialista é cada vez menor, se a humanidade cessou de buscar a emancipação humana, se está ausente a figura revolucionária – mesmo que no país mais rico aumentem os pobres e no resto do mundo a miséria e a fome atinjam 1 bilhão –, de modo algum a leitura marxiana do capitalismo era errada. Este olhar do carro para o posto de gasolina foi perfeitamente previsto, no primeiro capítulo do Capital:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características objetivas dos próprios produtos de trabalho como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

 
Ninguém conheceu tão bem o capitalismo e suas possibilidades quanto Karl Marx. A realidade mesma está a mostrar isso, todos os dias. O que escrevemos aqui... ora, está muito aquém do que escrevia Engels. Ele não só reconhecia o mérito intelectual do amigo, como também via, na prática, a força criativa e transformadora das pessoas, buscando forjar relações sociais novas, ainda mais justas. Hoje, temos muito menos.


Também, que esperar de um mundo onde comunistas, tão logo tomam o poder, implantam ditaduras sobre o proletariado em lugar de ditaduras do proletariado sobre a burguesia? Que esperar de projetos socialistas que não souberam nunca, porque não tentaram, conviver com democracia de trabalhadores? A resposta, e o resultado destes fracassos, é simples: um mundo de ditaduras de coisas sobre pessoas.

Por isso, aos [produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.

Um mundo onde as mercadorias têm sonhos próprios à sua espécie, e seus donos não.

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