21.2.11

Contos velhos (parte II de II)

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Aula de voo



Um dia, um amigo deu a letra: “olha, a gente tem que voar – uma vez na vida, no sonho... Então, quando v. sonhar e perceber que é sonho, nem pensa: pula a janela”. E dá pra gente perceber que é sonho? Dá. Dá?! Dáááá, há sempre coisas bizarras nele, é só ficar ligado enquanto dorme. Firmeza. Aí ela se lembrou da irmã contando que uma vez, sonhando, foi à padaria, pediu qualquer coisa, e o padeiro, incontinênti, tirou os sapatos, as meias, e lhas entregou: ela as recebeu com toda a ternura de mãos plácidas, acomodou-as ao peito e saiu, feliz. Coisa de sonho. Então, a gente pode voar! Um dia, afinal, sonhou que estava num avião e lembrou de voar. Foi pular. Mas havia um homem na porta: “Rg, cpf, cnh, passaporte.” “Puxa, mas tudo isso?! Ah, pensei que era mais fácil voar...” E, frustrada, voltou pro assento. Uma noite, sonhou de novo. Estava no viaduto do Chá. E quando ia pular, veio um PM e “Cidadã, seu atestado de antecedentes criminais!” “Pôôôôôxa, mas por que vocês não pedem tudo na primeira vez?! Aaah!” E sempre pediam mais alguma coisa. E nunca voava. E sempre acordava puta. Ficou sôfrega. Sonhou com aviões, pontes, desfiladeiros, banguidjampins, corcovados, picos da neblina, prédios de cem andares, janelas, janelas, janelas... Certa vez, abriu um jornal. E viu partidos políticos, corrupção no judiciário, filosofia da desconstrução do sujeito, provas da existência divina, ciência da inconsciência, previsões de extinção da vida, nem pôde pensar tocou o telefone: era uma oportunidade única de emprego. Foi. E disseram que ela ia ganhar um salário absurdo, tantas horas semanais mais pausa pro café etc., a única coisa que viu foi a janela e enquanto ia foi detida pelo entrevistador, Ei trouxe os documentos?, Sim trouxe, agora ela tinha tudo, Rg?, Sim, Cpf?, Sim, Ctps? Sim, Antecendentes criminais?, Siiiim caralio!, não adiantava: ela tinha um brilho nos olhos, Ei, e as fotos?, Siiiim!, e mais não disse: entregou a papelada – yeah! agora eu vou, e pulou do décimo quinto andar é pulo sim e pulou feliz sim!: o vento em meus cabelos e sentiu cafunés por todo o corpo ah! nunca mais vou acordar achou o sonho lindo sim sim é lindo embora lhe parecesse muito rápido é mas eu não paro

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