“Eu me tornei o que sou hoje aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975.”
A verdade é que torci o nariz quando ouvi falar dele. Imaginei que era qualquer best sellerzinho como O Código Da Vinci etc., o qual nem li nem tenho vontade. Sei lá por quê. Ou sei. É besteira, mas é sempre o pensamento de que tudo o que é sucesso de vendas não presta, o que, sendo ou não verdadeiro, não deixa de ser uma visão pretensamente elitista. Em todo caso, continuo olhando torto o Dan Brown.
Já não é mais o caso de Khaled. Tanto torci o nariz, que, talvez pra sacanear, me deram de natal, com dedicatória e tudo, e “caraleo! agora vou ter que ler”, e fui começando, embirrado. Mas devorei em uma semana as 360 páginas: a história é boa. Agora vem uma apropriação de idéias: Outro dia, na Folha, Contardo Calligaris escreveu que “a leitura nos faz conhecer particularidades do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista.” Sim, a história de Amir contribui para o romance, e isso é também pelo interesse que geram as biografias profundamente afetadas pelo curso da História, sempre cheia de guerras. Aliás, o romance, que tem como cenários Afeganistão, Paquistão e EUA, lugares que Khaled conhece bem, é, em certo sentido, autobiográfico. Mas é bom dizer que a leitura nos faz conhecer muuuuuuintas particularidades do Afeganistão, e isso não pode ser relegado a segundo plano.
Uma delas é exatamente o idioma, ou os idiomas. Do árabe, pashtu, farsi, urdu, tadjique, sei lá, uma série de palavras vão aparecendo ao longo do livro, sem nota de rodapé, sem tradução, nem nada: noor, baba, naan, laaf, namaz... O leitor é que tem de intuir o significado, e a maioria dá pra fazer tranqüilamente pelo contexto. As outras, mais difíceis, o autor ajuda traduzindo logo à frente. E algumas, que ele esqueceu, a gente fica sem saber, que também já é querer saber demais. O engraçado é que a tradicional saudação muçulmana salaam alaykum, ‘a paz esteja contigo’, repete-se regularmente, e cada vez que eu a lia era como se já a conhecesse, soava muito familiar. Fui olhar no dicionário, claro. E o bom e novo Houaiss registra o aportuguesamento salamaleque, que, gozado, também significa ‘cumprimento exagerado, polidez afetada’. Mas continuei na mesma. Até que de repente, zás, num nostálgico recuo temporal me vi a mim de novo, infantil, vendo tv, ouvindo uma mulher que usava véu, contava histórias e ia embora num tapete voador, logo após dizer salaam alaykum. A mulher devia ser Sherazade e o programa, Rá Tim Bum. Lembrando isso, amaldiçoei o tempo que passa, idealizei a infância, condenei a programação infantil atual etc.
E é isso. O romance, do ponto de vista formal, parece que não traz mais nenhuma novidade. Estilo simples, narrativa predominantemente linear, continuidade, contextualização, idéias claras, nada dessas viageiras da pós-modernidade a que estamos nos acostumando. A desconstrução dos valores estéticos tradicionais deve ter um limite. E isso deve ser o que pensa Khaled: com a primeira frase do livro, que é aquela epígrafe, ele anuncia os dois pontos de tensão da história: os bons tempos, no passado; e as lembranças, no presente. E, com muito cuidado, faz Amir caminhar nesta ponte temporal, mas tem tanto cuidado, que a linearidade é o que vai predominar, apesar das idas e vindas. O fato é que a simplicidade do seu estilo, que muitas vezes traça retratos bem crus, é uma coisa muito boa: reserva sempre o espaço pruma piadinha prosaica e o momento bom para a expressão poética, dois extremos que agradam todo tipo de leitor. E tudo acaba ficando no seu lugar, com cara de casa simples da roça, chapéu na parede, panela no fogo, fumaça na chaminé. Em suma, é um livro sem salamaleques.
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