Parece que só muito recentemente, coisa de duas décadas pra cá, é que veio se solidificando a ideia de que se deve (re)ler Marx. Na verdade, é mais ler que reler, afinal há, por incrível que pareça, textos ainda inéditos. Qualquer leitura sempre vale. Não só para alimentar "ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal", como ontologicamente define José. Mas também para compreender o que somos, e por que até aqui os homens não puderam ir ainda para além do espaço histórico que se convencionou chamar capitalismo. Só responder à primeira pergunta já bastaria para uma existência. Mas, se nem os seres humanos nem as perguntas vivem isolados, as respostas que perseguimos também se conversam.
Pode ser revelador para nós – agora distantes de tudo – considerar o valor e o peso de uma circunstância especialíssima em torno de um téorico da altura de Lênin, líder da maior das revoluções do séc. XX. Ora, ele não pôde ler as obras da juventude de Marx, só publicadas após 1930. A ideologia alemã, os Manuscritos econômico-filosóficos, talvez nem mesmo os Grundrisse, e com certeza também não os artigos da Nova gazeta renana. É nessa fase inicial de Marx, esquecida pelos seus continuadores, que se avista uma ontologia do ser social; e é nisso que aposta Georg Lukács (1885-1971). Seu recém-lançado no Brasil Prolegômenos... vem reparar um eixo fundamental do pensamento socialista: como se pode querer fazer outra sociedade, outros homens, sem conhecer o que eles efetivamente são? E outras anomalias intelectuais, como achar que a vida resume-se a política econômica, burguesia, proletariado e o reino do capital.
Se foi miserável a realização e a utopia de uma humanidade nova no Leste Europeu, não há dúvida da estreiteza raquítica da humanidade globalizada pelo capital, fixada na ideia de homo sapiens sapiens que hoje se defende e se ensina: irracionalista, nega aquilo que lhe faz singular na natureza; individualista, imagina-se produto e fábrica só de si, em si e para si; divina mercadoria que circula – compra, aluga, aliena sua vida e, sem perceber, vai vendendo suas horas sem vivê-las; cidadão do mundo sem aldeia, pós-moderno sem passado nem futuro, consumidor do presente – realiza-se no mercado digital e mede-se a dinheiro. Nem nas atuais democracias liberais, e nem mesmo em nenhum país comunista do século XX, se fugiu a esta moldura histórica de existência, pensamento e ação. Deveria outra vez intitular-se Homo faber.
Rosa Luxemburgo bem que tentou avisar dos erros que cometia a Rússia bolchevique, restringindo liberdades, amputando sovietes, saciando a fome de terra dos camponeses. A questão é: se Lênin não tivesse sido tão preconceituoso quanto ao conceito de ontologia – entendido como o estudo daquilo que é –, o século XX teria sido o que foi?
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