O site Os Viralata é quem recomenda sair do óbvio e presentear com literatura independente. E lá está à venda o... best-seller não, que o autor não é desses... mas o maldito Sexo Anal, um romance, ops... uma novela que primeiro foi disponibilizada como e-book, e que agora sai empapelada numa edição comemorativa pelos dez mil down-loads e pelas dezesseis rejeições de editoras. E vale a comemoração. Existem livros raros: livros pra se ler gozando. Sexo Anal é assim. Além dele, lá se encontra Virgínia Berlim, o segundo livro do Biajoni, que traz um cd com a trilha da história, além de outras diferenças mais significativas. Não vou fazer crítica, primeiro porque já fizeram muitas, e bem feitas; segundo, porque agora tenho preguiça. Enfim, leia.
19.12.07
Luiz Biajoni e o Sexo Anal
O site Os Viralata é quem recomenda sair do óbvio e presentear com literatura independente. E lá está à venda o... best-seller não, que o autor não é desses... mas o maldito Sexo Anal, um romance, ops... uma novela que primeiro foi disponibilizada como e-book, e que agora sai empapelada numa edição comemorativa pelos dez mil down-loads e pelas dezesseis rejeições de editoras. E vale a comemoração. Existem livros raros: livros pra se ler gozando. Sexo Anal é assim. Além dele, lá se encontra Virgínia Berlim, o segundo livro do Biajoni, que traz um cd com a trilha da história, além de outras diferenças mais significativas. Não vou fazer crítica, primeiro porque já fizeram muitas, e bem feitas; segundo, porque agora tenho preguiça. Enfim, leia.
15.12.07
Um soneto de Vicente de Carvalho
Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Gosto desse tipo de poesia velha. Talvez eu seja burro demais pra entender a arte moderna ou a física quântica, mas não sei de onde veio essa idéia de que os parnasianos sejam menores. Deve ter algo a ver com o stablishment. E com a gente otimista que quer ser feliz. Mas, gostem ou não dos pessimistas, a turminha do Olavo Bilac disse muitas verdades.
Uma coisa, por exemplo, é essa busca infindável pelas coisas inacessíveis. E, pior, por caminhos clandestinos. Não tenho nada contra a clandestinidade, até acho bem poética a atmosfera escura e suja dos porões secretos, mas... a clandestinidade tem de ter um propósito concreto. Não o idealismo cego. No entanto, os riscos a que nos submetemos todo dia tentando conquistar sei-lá-o-quê são tão grandes, que nem os vemos, e mal vemos aonde e onde vamos, inda mais quando o que se põe em jogo é a integridade física ou psíquica. Não vou nem falar em moral.
10.12.07
Mas.
O país é sempre um futuro, que não vem. A nação é para sempre o produto do passado colonial, a um tempo vergonhoso e glorioso. E o povo é sempre povo. Sempre povo. Sempre marcado do passado. Sempre esperançoso do futuro. Sempre alheio do presente, da política e da História.
4.12.07
Diálogo entre espírito e matéria
– Pois sigo dizendo que não é assim. Não. Não há esperança. O que vivemos é o início de um ciclo sem precedentes, porque não há, a rigor, alternância de materialismo para espiritualismo: há consubstanciação. O espiritualismo, transformado em produto e, assim, materializado, é mais uma faceta das sociedades de consumo do mundo pós-capitalista. E a luz que o senhor vê, ao fim do túnel, nada mais é que o fogo do inferno! Não lhe faltará combustível. Prova-o a numerosa existência de seitas religiosas.
1.12.07
– Que que é aribé, vô?
– É um tipo de aguidar.
– Mas que que é aguidar, vô?
– Ora-mas-na-verdade, é um tipo de vasilha! E, home, vamo parar com essa conversa que já tá desenxavida demais.
– Desenxavida?
– Sem graça. E v. fez faculdade, foi, meu neto?
25.11.07
– Ah, não quebrou, menina, mas isso não é possível – e beija a chapinha de metal –, devia mais era ter quebrado: eu NÃO posso fazer isso com você! – e faz um cafuné no rótulo.
Espero que seja apenas alcoolismo. E não insanidade total e irreversível.
21.11.07
Dúvidas e certezas
Não é pela morte de ninguém: nunca levei ao cemitério nenhum ente querido. Talvez por isso até acho romântico andar em câmera lenta, por entre catatumbas, em silêncio, ouvindo Atmosphere. Também não é por desilusões amorosas: já estou velho e maduro, e isso é coisa pra adolescente emo. Não é pela solidão nem pela tristeza: conheci que ser feliz é aprender a ouvir a beleza que existe no silêncio. Trauma de infância não pode ser: pobre não tem infância. Não, definitivamente, não é isso. Parece ser alguma coisa que eu ainda não vi.
Talvez seja liberdade.
Estremeço ao pensar nisso. Porque, realmente, é isso. Estou preso. A pensamento e lógica que me faz soar irracional se os contradigo. E, ironicamente, quando digo o que penso a seriedade me abandona, e fico a sós com um cinismo que me marca como louco. Como um louco que diz o contrário do que pensa. E já nem posso acreditar em minhas crenças. Que meu fascínio não é pela vida, é pela morte. Que meu encanto é pelo choro, não pelo riso. Que não vejo nos casamentos a beleza que aspiro nos divórcios. Que meu conceito de amor é uma piada. (Muitas vezes, quando a tarde começa a cair, e sombras de árvores se espalham no chão, e olhos brilham, e suspiros balançam no ar – ama-se tanto, que se vêem coisas visíveis e invisíveis, muito mais no amanhã que no hoje, muito mais no céu que na terra, muito mais cupidos vendando que cupidos vendados, e quando se dá conta se está com febre. Ou ensolação. E a única saída, ou cura, é passar a odiar o objeto do amor. Ser amado então é um perigo no escuro. É por isso que eu amo muito mais as pessoas que me odeiam – porque conheço-as.) Mas estou indo longe demais. Volto.
Volto à razão. Já agora nego a negação que professava.
E sigo acreditando que só há uma crença a seguir, só um norte a buscar: felicidade. É, sim senhor, felicidade. Honestamente, felicidade é a melhor e mais simples coisa do mundo – felicidade é ter um bom espaço de lama para comer, defecar ou chafurdar nas horas quentes do dia. Porque fora do chiqueiro é perigoso, prende-nos a seu interior a corrente da razão. Mas com espaço suficiente para caminharmos em círculos, desenhando à vontade pensamentos altos, livres, no piso enlamaçado da prisão.
20.11.07
Outra vez a tal da arte...
Foi mais ou menos assim que li todos os meus Shakespeares: Lear, Macbeth, Hamlet etc. E já que acontenceu isso, achei bom criar alguns mecanismos de defesa: 1) nunca dizer nada a ninguém; 2) caso diga, anexar alguma desculpa. Exemplos: a) li em um mau momento da vida; b) traumas de infância me bloqueram; c) não curto este gênero artístico etc. Pro caso do Shakespeare, dava sempre a última, e ainda atribuía culpa a Chico Buarque e Paulo Pontes, que escreveram em 1975 Gota d’Água, primeiro item de uma enfadonha série dramática que vim a ler por obrigações curriculares.
O diabo é que passeando pelo Rio num feriadão chuvoso e frio, sem muita opção, acabei assistindo-a, encenada ali na Glória, do ladinho do hotel homônimo. E não é que foi uma beleza? Inspirado no drama grego Medéia, de Eurípedes, e adaptado à experiência capitalista que em mãos militares aprofundou a concentração de renda no Brasil, o musical é de fazer rir e chorar: o empobrecimento da maioria financiou o milagre econômico e possibilitou o desenvolvimento da classe média. Mas faz pensar. Porque a obra não credita o estrago social unicamente à ditadura militar. O foco está no processo de cooptação dos melhores quadros, dentre os proletários, para servir ao jogo econômico do tupiniquim burguês.
Sempre que um cara menos bichado
surge aqui, pagam seu peso em ouro
pra levá-lo embora. Resultado:
mais negro fica este sumidouro
mais brilhante fica o outro lado
e o seu carnaval, mais duradouro
E a verdade esteve sempre aí, explicando como os opressores foram enfraquecendo os oprimidos e ganhando a guerra (que, aliás, tem um espólio nulo, porque resultou em miséria e exclusão de uns, intranqüilidade e neurastenia de outros, e num caos social comum). Ingresso: 25 réis (e pra meia entrada não pedem carteirinha em momento algum). O filho da “Medéia” cometeu dois erros: desafinou cantando a música do pai; deixou ver que continuava respirando depois de morto. E, segundo um amigo gramático, o excesso de ênclises em algumas bocas ficou irreal. Enfim, nem tudo são flores, mas gostei.
O que me preocupa é que agora minha desculpa foi por água abaixo. É melhor não dizer mais nada sobre o bardo inglês. Falarei somente de dramaturgos caboclos daqui pra frente.
8.11.07
Coisas de que desconfio
24.10.07
O Senado Federal em 24 de outubro de 2007
Ainda bem que ainda restam os políticos folclóricos. Mão Santa (PMDB-PI) é um espécime em extinção. E dá gosto vê-lo, seja no plenário, seja na presidência do Senado. Hoje fez três coisas dignas de nota: a) citou Fernando Pessoa como o nariz, dizendo que "só não vale a pena, se a alma é pequena"; b) alertou o petista Eduardo Suplicy sobre o risco de cair numa "emboscada tucana", quando este em meio ao discurso cedia a palavra aos senadores Arthur virgílio e Flexa Ribeiro (e era mesmo uma cilada); c) depois de tanta falação destes últimos, renomeou os "tucanos" de "papagaios", para alegria do plenário.
O engraçado é que ninguém se ofende. E isso porque o PMDB pertence ao bloco governista. Outro dia o senador do Rio Grande do Norte José Agripino Maia mostrou-se ofendidíssimo só porque Lula referiu-se aos integrantes do partido dele, os democratas, como "demos". "Não são demos! São os democratas!" Ora, se não é o Mão Santa já nem se pode mais brincar em Brasília.
20.10.07
Duas coisas sobre Tropa de Elite
2 - Já estava na hora de alguém pôr o dedo na ferida da classe média. No trabalho de Kátia Lund e João Moreira Salles, que é claramente a base do filme, aparece a queixa da polícia: "Eles vão e consomem drogas, financiam a compra de armamentos pelos traficantes e depois reclamam da violência." Não dá pra não entender a vontade de descer o cacete em todos os hipócritas que depois vão participar de passeatas pela paz.
16.10.07
bebendo essa bebedeira,
e dizendo essas besteiras
em que não acreditamos?
até quando, até quando,
sorriremos estes dentes,
ficaremos firmes, crentes
no futuro, ou no melhor...
onde está a alegria,
essa mesma, passageira,
que cada vez é mais rara...
onde está a poesia...
onde estão as velhas caras...
pra que tanto trabalhar?
pra ter títulos reluzentes?
eu só quero em dias quentes
ter cerveja pra tomar
beber em praias distantes
rir para os dias chuvosos
tocar sons melodiosos
enrolar para acordar
nada ver: somente olhar...
divagar em pensamento
andar lento, e com preguiça...
e não marchar a calçada
das ruas que vão pra nada
7.10.07
Watchmen
Watchmen é fantástico. Lançado nos EUA entre 1986 e 1987 pela DC Comics, com arte de Dave Gibbons e argumento de Alan Moore, é a prova de que, mais cedo ou mais tarde, o gênero HQ deverá ser reconhecido como uma das mais importantes formas de arte da nossa cultura, vencendo os preconceitos iniciais, como o cinema também venceu. Em seu enredo, passado entre as décadas de 50 e 80, o terror da Guerra Fria assola o mundo e a figura do herói é posta em cheque. Afinal, o que se pode fazer quando a luta contra o mal se revela um conceito limitado, como é limitado todo maniqueísmo?
A sensação de realidade criada pela obra tem um efeito tão grandioso, que muito se aproxima à sensação que se tem da realidade absurdamente real dos heterônimos de um Fernando Pessoa. Do ponto de vista formal, é digna de todos os aplausos. Os significados multiplicam-se à medida que narrativas paralelas de diversos gêneros entrecruzam-se: trechos de diários, capítulos de livros, artigos jornalísticos e acadêmicos, relatórios policiais, entre outros. As páginas do diário de Roscharch, que aparecem logo no início, nos aproximam tão intimamente deste personagem, um tanto fascista, que enfim simpatizamos com ele. Reproduzidos meio que desinteressadamente, como para ocupar espaço (mas “com autorização do autor”), alguns capítulos da autobiografia de Hollis Mason, Sob a Máscara, revelam os bastidores da vida dos heróis pela visão do herói então aposentado. Mas a mais forte narrativa paralela são os “Contos do Cargueiro Negro”.
Citando diversas fontes, uma matéria jornalística, aparentemente sem ligação alguma com o enredo, posta entre o quinto e sexto capítulo, dizia que: “Em maio de 1960, surgia a primeira edição de um novo e extrardinário título da National Comics, atual D.C. Chamava-se CONTOS DO CARGUEIRO NEGRO.” E acrescenta que tinha por tema a pirataria e por personagens os aventureiros do mar de origem européia que infestavam o Caribe. Na história, um náufrago faz com os cadáveres dos próprios companheiros uma jangada para a salvação. O surpreendente é que já desde o terceiro capítulo vínhamos acompanhando, em metaliguagem, por sobre o ombro de um personagem secundário, leitor de quadrinhos, não só o texto mas também as ilustrações. Aos poucos, a história passa a ganhar mais espaço, preenchendo “toda a tela”, até que já não sabemos em que narrativa estamos. E faz até sentido falar em preencher “toda a tela”: é flagrante a influência do dinamismo do cinema na arte de Gibbons. Por incontáveis vezes, os quadrinhos se integram para dar uma visão geral do ambiente, embora em cada um deles a ação transcorra de maneira independente. Muito bom!
Fiquei tão impressionado com a originalidade da história do cargueiro negro que procurei sem sucesso encontrar alguma edição desse gibi, até que um respeitável conhecedor de HQ me declarou não conhecê-lo. E ficou a pergunta no ar: “Você já parou pra pensar que os contos do cargueiro negro na realidade talvez não existam?” Não. Não tinha pensado. Parece que caí como um pato na armadilha ficcional. O que não é nenhuma novidade. Sempre que leio as críticas feitas por Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, Ricardo Reis e António Mora, nas “Notas para recordação do meu mestre Caeiro”, acho absurdo imaginá-los somente como uma criação.
19.9.07
Para uma arte de ler no banheiro
Se sentir alegria causa prazer, e se a leitura é um prazer, o fato é que ler, para o diletante preguiçoso, tem uma dimensão paradoxalmente trabalhosa. A solução é, na tentativa de gozar plenamente o ócio, acumular o máximo de tarefas possíveis num mesmo espaço de tempo, aumentando assim o tempo livre. Algumas tarefas são tarefas vitais. E aí está por que muitas pessoas lêem no banheiro.
Minha importante descoberta ultimamente foi ter entrevisto uma tênue linha a dividir os preguiçosos que lêem no banheiro. Uns lêem rótulos de xampu, bulas de remédio, revistas “veja” velhas. Outros não sentem pudor em levar a alta literatura para a privada. E eis que, descaradamente, confesso ter largado as cerimônias e lido diariamente grandes clássicos. Fiz a experiência caseira, primeiramente, lendo os capítulos finais de Quincas Borba, aventurei-me pela América Latina e reli grande parte de O Amor nos Tempos do Cólera, já mais atrevido agora, tenho adorado os curtos capítulos do grande A menina que roubava livros, de Markus Zusak. E tudo isso sem falar na portentosa leitura de Watchmen (me perdoe o amigo que me confiou os seis números da rara edição de 1989, da editora Abril).
2.9.07
Pessimismo
Schopenhauer esteve certo o tempo todo. As coisas negativas da vida serão sempre maiores que os aspectos positivos que possam existir, se é que existem. E pode até ser que eu seja meio insensível pra isso, mas perceber o ódio que sentem por mim vem sempre primeiro que o prazer de me descobrir amado. O que não deve ser exclusividade minha: os atos de agressão são sempre mais visíveis; os atos de carinho é que são muito mais raros, porque nós, terráqueos, desenvolvemos mecanismos de defesa que nos fazem esconder aquilo que achamos ser pontos fracos em nós. Se a experiência de ser magoado é horrível, o melhor é não dar margem a surpresas ruins e, assim, as surpresas boas, apesar de poucas, serão suficientes para regar o fio da vida com alguns racionados goles de alegria.
O fato é que, talvez, a receita da felicidade seja esta. Não esperar coisas boas. Descobri que, antes de tomar o sorvete, ter a certeza de que ele vai cair no meu pé, logo nas primeiras lambidas, resulta quase sempre no inusitado de chegar ao fim sem vexames. Acreditar antes que o professor vai dar um nota ruim e ainda me esculachar publicamente me faz avaliar depois que tudo foi muito melhor do que pensei que seria. Acreditar que a infelicidade é inexpugnável é uma dádiva que me mantém resignadamente satisfeito. E sem me importar muito com o fim de tudo, que será definitivamente final, vou andando muito tranqüilamente, sem pressa nenhuma de chegar ao final da estrada. Não deve haver nada de bom no fim dela.
7.8.07
Suspeitas
Será que esse monte de gente que nos aborda à rua oferecendo crédito, deus, bens, produtos e serviços não será parte de uma revolução? Será que ouvindo-os, sempre tão simpáticos, não estaremos subvertendo aquilo que foi uma marca de humanidade, que passará a ser a marca do mercantilismo? Será que isso não causará efeitos desastrosos?
Não é de hoje que, quando alguém chega falando manso, a gente instintivamente protege a carteira ou a bolsa. Vendedor, evangélico ou ladrão, o alvo será o mesmo. Se quiser evitar constrangimentos, não diga “por favor”, nem “com licença”, muito menos “senhor” ou “senhora” com simpatia. Use um tom de voz algo parecido com um PM dizendo “Cidadão!” A rusticidade será nossa lei, daqui pra diante.
5.8.07
Vagabundos!
Pra completar, nossas leis são irreais; porque tratam como iguais cidadãos completamente diferentes; porque enquadra nas mesmas regras do jogo participantes com habilidades díspares. Uns roubam carros, são presos, condenados e ficam um bom tempo na cadeia, em companhias piores; outros, queimam pessoas em pontos de ônibus, são presos por pouquíssimo tempo, aos cuidados dos melhores advogados logo são soltos e depois pouco se fala deles. E quando a violência aumenta, e quando aparecem crimes cruéis, vem sempre aquela turma do “agora é a hora!”, o que precisamos é punir com rigor, e vamos começar a pensar em redução da maioridade penal para 14 anos. A certeza da impunidade é o que faz o deliqüente. De outro lado, vem sempre aquela turma do “deixa-disso” dizendo que o que a gente precisa é acabar com as causas, a exclusão, a desigualdade, a falta de perspectiva da nossa pobre juventude. Que o nosso futuro não merece cadeia. E que a nossa cadeia não recupera ninguém.
Sim, o discurso duns e doutros é muito bonito. Mas param por aí. E não fazem mais nada. Fico me perguntando se esses aí acreditam mesmo no discurso que fazem, porque, primeiro, pra agir com rigor e reduzir a maioridade penal, como aqueles dizem, a justiça precisaria ser a mesma para todos e porque, segundo, pra atacar as causas, como estes dizem, só com uma Revolução. E, cá pra nós, nem há vergonha na cara daquelas pessoas para admitir isso, nem vejo estas empunhando armas, nem há nelas a indignação suficiente para a mudança súbita e violenta que o país merece. Então não há condições materiais nem para uma Revolução nem para uma revolução. Pior pra nós.
As medidas paliativas, as políticas assistencialistas, a repressão institucionalizada e, também, um código penal ultrapassado, que condena à mesma pena os mais diversos infratores, não vão mais conter o avanço violento de uma juventude amoral, excluída e marginal. Uma juventude muito pouco inocente: aprenderam que a vida é cruel desde cedo. Sim, eles estão cada vez mais precoces: conhecem o som das balas desde cedo, disparadas por traficantes ou polícias. É, talvez fiquem ainda mais precoces: com a redução da maioridade, talvez meninos de 10 anos passem a ser recrutados para guardar o morro, os pontos de venda de entorpecentes. Há uma guerra civil, neste Brasil. E sabemos que a guerra é entre marginais de diferentes classes sociais. E como no centro estamos nós, os cidadãos comuns, ao fogo cruzado, as nossas baixas são maiores. E nossas dores também. Porque, vez ou outra, quando saímos a manifestar e reclamar, ainda nos chamam “vagabundos”.
1.8.07
16.7.07
Autenticidade
Perde-se. Perdem-se os princípios. Perde-se um modelo de gente que é hoje raro. Ainda há alguns, é claro. Tempos atrás um amigo me contava sobre um diálogo entre aluno e uma velha diretora, já bem antiga, tradicional, nestes tempos de escola nova, e novas pedagogias. O aluno não gostou da cor do uniforme que a escola tinha dado e reclamava: "Pôxa, mas é obrigado a usar isso?". E a diretora já impaciente: "Não. Obrigado não é. Mas sem ele v. não entra na escola." "Ah, mas a gente tinha que poder escolher... a gente não vive numa democracia?" "Ô, menino, v. nem sabe o que é democracia nem o que é ditadura: eu que já vivi tudo isso não sei bem o que é. Tanta gente passando fome, e você reclamando dum uniforme? V. tá ganhando isso aí de graça, procure o que fazer, menino, xô." Não dá pra não gostar dessas coisas. Ou de gente assim, que sentenciava tempos atrás, sobre um aluno, digamos... complicado, de seu estabelecimento de ensino: "Deve ser hiperativo. Só pode. Que hoje em dia não tem mais esse negócio de indisciplina..." Rude, antigo, mas autêntico.
Foi o mesmo amigo a me lembrar a imagem autêntica, inegável da nossa polícia, ou, melhor, de um setor dela, a Ronda Ostensiva Tobias Aguiar. Inegável até por eles mesmos. Houve um tempo mais sombrio em que um misto de audácia e humor negro até lhes permitia fixar no vidro das viaturas o adesivo: "Deus cria. A Rota mata". Mas o caso mais espantoso foi o de uma entrevista que, segundo consta, após um massacre, o repórter ousou entrevistar os homens. "Que é que vocês têm a declarar sobre essa... sobre esse...massacre? essa chacina? esse monte de bandido morto?" Ao que um deles, sem parar, sem olhar pro lado, semblante fechado, boina a cair sobre a testa, respondeu, sem culpa: "Eles riem da lei. Não da gente". Era a pura verdade. Rude. Dura. Autêntica.
6.7.07
Para umas memórias
As mangas sempre tinham cheiro de aventura. Ainda verde, uma manga no alto da mangueira era motivo de escalar, abraçar caules, andar sobre o equilíbrio dos galhos arriscados. Uma manga na mão era logo garapa escorrendo nos dedos, no rosto, no queixo, no peito. Fiapo no dente, por fim. Mangueiras davam mangas, paz e sombras. Eram ensolarados os anos 80 na mesorregião do oeste potiguar.
Algumas informações nutricionais:
a) a manga tem mais ou menos 15% de açúcar, até 1% de proteína e consideráveis quantidades de mineirais e vitaminas A, B e C; faz bem às pessoas com anemia e às mulheres grávidas, porque tem muita concentração de ferro. A ciência diz também que pessoas com cãibras, estresse e problemas cardíacos devem comer manga, por conter potássio e magnésio. A religião, na Índia, de onde a manga é fruta nativa e quase sagrada (como as vacas, o que serve para desconstruir a crendice de que leite com manga faz mal), diz que faz bem ao cérebro, estanca hemorragia e faz bem ao coração (note, perspicaz leitor, que aqui ciência e religião concordam). E, last but not least, a sabedoria popular diz que manga "solta intestino preso". Tem apenas uma semente, também chamada de "caroço".
b) a romã era para os gregos símbolo do amor e da fecundidade, razão por que consagraram-na à deusa Afrodite. Para os romanos, era, além disso, símbolo de ordem e riqueza. Conta-nos outra vez a sabedoria popular que se você carrega três sementes de romã na carteira, não lhe faltará nunca o vil metal. Como a manga, a romã veio da Ásia. Ao contrário da manga, tem muitas sementes, e sementes especiais, pois têm polpa comestível. O suco de romã contém mais anti-oxidantes do que qualquer outro.
Mas, mesmo assim, faltava-me conhecer os doces frutos dos climas frios. Um dia, num entardecer, quase noite, chegou alguém, de muito longe, com fala esquisita, diferente. Nunca o tinha visto, mas logo gostei dele. Vinha do Sul. Trouxe alegria e muitas malas, e numa delas uma fruta desconhecida: maçã. Ainda não tinha visto uma. Quando recebi a minha, reconheci que não era qualquer fruta: tinha pele fina, era delicada, era rara, e era vermelha. Tinha um aroma delicioso, inominável, que nunca mais senti (até hoje me pergunto se maçã tem aroma, de fato). Mordi devagar, mastiguei com cuidado e cada pedaço foi a reiteração de um sabor novo e apaixonante. Foi minha primeira vez.
Nunca mais comi aquela maçã. A lembrança que tenho daquela noite foi ficando na memória. E cada vez que a olho, como para sentir outra vez um prazer antigo, parece que a encontro modificada. E logo me aborreço com a idéia de que alguém mexeu nas minhas coisas. Bobagem, não há nada nem ninguém entre eu e minhas lembranças, a não ser o tempo. E cada vez que as renovo, modifico-as, daí a sensação de estranhamento. E quanto mais as revivo, mais me afasto da realidade que vivi, que queria reviver e que somente reconstruo, à minha maneira. E é assim que as memórias têm sido, por excelência, minhas primeiras ficções, editadas em momentos ociosos, estilizadas pela beleza das coisas envelhecidas, emolduradas pela augusta cor sem-cor do esquecimento.
16.6.07
Disgrafia
O dicionário diz que a dislexia é a perturbarção da leitura causada pela dificuldade em reconhecer a correspondência entre sinais gráficos e fonemas. Isso explica algumas coisas que me aconteceram. Mas talvez eu tenha um tipo de dislexia ainda não catalogado.
Tudo começou quando a coordenadora foi examinar meus diários de classe e percebeu excesso de corretivo. Até aí tudo bem: organização nunca foi meu forte; caligrafia boa, nunca a tive; e erros em preenchimento de diário são bem comuns a neófitos. O principal é que, mesmo com as tais "rasuras", não deixei passar nada; elas eram a prova de que corrigi todos os erros. E, assim, continuei feliz.
Se até ali esse primeiro sinal não me havia causado impressão, outros dois incidentes vieram como reforço. Postar bobagens pelo orkut é um problema: ainda quando brincamos, percebem o quanto não conhecemos da nossa materna língua. E escrevi, sei-lá-por-que, "expremer" com "x". Por sorte, minha interlocutora era uma gramática, e fui admoestado sem complacência alguma. Ainda tentei argumentar que era um absurdo nossa ortografia fixar a forma "espremer" com "s", se na origem, em latim, se escrevia "exprimere". Mas o que fazia era apenas tergiversar num mundo virtual; na realidade, estava com a pulga atrás da orelha.
Eis que, então, numa sexta-feira quente, quando pensava em pós-graduação em literaturas lusófonas, quando revia velhos amigos de faculdade, quando me inscrevia para o curso do próximo semestre, notei que estava a errar demais no preenchimento da ficha. Ia me inscrever para apenas duas disciplinas e já havia consumido mais de quatro fichas. Ao fim da quinta tentativa, resignei-me. “Isso é dislexia, ou déficit de atenção”, explicou-me uma amiga. Compreendi, não sem alguma perplexidade, que meus erros não são produto do descaso, mas antes efeito de uma perturbação mental. “Mas é uma perturbação especial”, conformei-me.
Leio bem: apenas não escrevo. Pensei então em forjar o termo “disgrafia”, para significar ‘a arte de escrever incorretamente, motivada por distúrbios cerebrais que anulam a formação, a escolaridade e o conhecimento gramatical do indivíduo’. Frustrado, descobri, entretanto, que o termo já existe desde a primeira metade do século XX. E destarte, num só dia, vi que a ortografia e o nelogismo me negavam. Apesar disso, está clara a especialidade que o termo “disgrafia” tem para mim.
Tenho razoável conhecimento ortográfico e, portanto, quando escrevo incorretamente, logo percebo o erro. Mas perceber o erro a posteriori resulta em problemas: para diários de classe, que não podem ter corretivo; para scraps no orkut, que, além de não ser o território da correção gramatical, é o reino do ócio; e para fichas de inscrição, que são sempre extensas e cansativas, gente! De modo que, leitor, perdoe o texto ruim: é obra da disgrafia.
E na ficha de inscrição o país onde nasci ficou assim grafado: “Brazil”.
9.6.07
Orgulho e Preconceito
Um bom filme, sim senhor, ambientado no XVIII, figurino muito bem feito (e apesar da bela atuação da bela Keira Knightley, talvez o figurino merecesse mais o Oscar 2006 do que a atriz), perfeita reconstrução de cenários, luxo, pompa, circunstâncias e todas as frescuras mais a que tinham direito. As imagens são bem fiéis ao livro, sobretudo as externas, recriando toda a riqueza em jogo, castelos, mansões, laguinhos cristalinos, extensos campos verdes etc. Os diálogos, ácidos, também lá estão, em sintaxe rebuscada, associação veloz de idéias, lambuzados em ironia o tempo todo.
É claro que a história toda tem um ponto fraco: é romântica. O enredo é irreal. É inverossímel alguém como a personagem principal contrapor-se à sociedade de seu tempo, enfrentá-la, desafiá-la e, ainda assim, casar-se, como se nada fosse, ou como se não fosse aquilo que ela, Elisabeth, mais critica. É claro que ela se casa em condições especiais; casa-se por amor. E, só pra mostrar que o amor vence tudo, exatamente por não buscar isso, casa-se com um homem muito rico. Mas, ora, isso não tem consistência racional alguma. Mas, enfim, é a tal "estética romântica", cuja parte pior é não deixar rolar, nem no filme, muito menos no livro, ato algum de lascívia ou libidinosidade. Nenhum beijinho, nada. Chega a dar raiva.
Em todo caso, se o enredo parece fraco, as personagens não o são. Por isso, vale a pena ver no filme personalidades tão consistentes, como o Sr. Bennet, cuja maior diversão é provocar a mulher; a mulher, Sra. Bennet, cujo ridículo instinto de casar as filhas torna-se irritante: oferece-as aos pretendentes como se fossem putas; a filha, Elisabeth, de personalidade difícil, debochada, subversiva; as outras filhas, que são, de fato, um bando de putas; Sr. Collins, o primo, que é um chato de galochas: vive elogiando todo mundo por onde quer que passe.
Não tem como não dar razão a Elisabeth: "Minha família está claramente competindo para ver quem é mais ridículo." Nem como não dar razão a Jane Austen: era uma mulher à frente do seu tempo. E à frente de muitas pessoas do nosso tempo.
29.5.07
a vida... a vida anda em transportes coletivos
Mas hoje, enquanto vinha para casa, senti uma sensação esquisita, bem menos engraçada que as habituais. Fui observando as coisas e, sim, eu vi.
Após a jornada de trabalho, o torpor causado pelo stress, as dores criadas pelos cérebros em intensa atividade, as fadigas coletivas nos transportes coletivos, o cochilo roubado ao desconforto, os solavancos imperdoáveis, a garoa pintando de cinza a janela, a janela abrindo às trepidações, a opressão do metal frio às frias mãos, o rosto sonolento em multidão, cinza, frio, opressão – pequenos indícios que nos fazem perguntar: não será tudo um sonho ruim, somente?
27.5.07
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Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, – um triste molambo de mulher, – chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! – Chamava-se Chagas. – Padre mais que bom, que assim me incutisse por muitos anos essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, – a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom Padre Chagas!
Quincas Borba, cap. CXVII
20.5.07
Sobre as causas da violência
Só se pode incutir valores éticos ou cognitivos mediante uma ação autoritária que resulte em conquista de respeito. Donde se conclui que é melhor ser temido que amado. Aqueles que amam tentarão a todo custo tirar vantagem do objeto amado, ao passo que aqueles que temem servirão o objeto do temor até o limite das forças.
Ora, na educação como na segurança pública, o trabalho é o mesmo. Basta saber que num lado educa-se; no outro, pune-se. E se no primeiro não mais se pune, e se no segundo não mais se educa, é um erro, que somente posso atribuir à decadência dos nossos tempos. Importa agora reconhecer que há crise de autoridade num e noutro lado.
Em São Paulo, com todos os enroscos, ainda se vai razoável nessa matéria, se comparado ao Rio. Que zona se tornou esta cidade! Naquela ao menos não se vê bala perdida a cada dia, gente morrendo o tempo todo, policiais correndo de bandido a cada ação. Parece que a bandidagem paulistana tem ainda algum medo da polícia. No Rio, não. Desafia-se-lhe.
E a razão disso tudo é psicológica. Em São Paulo, as cores das viaturas são preta, cinza e vermelha. São cores fortes. No Rio, as viaturinhas são azulzinhas. E que corzinha bonitinha, adoro azul! Mas, cá pra nós, não bota medo em ninguém.
11.5.07
Das castas
Em Goa, outra possessão lusa, a heterogeneidade do indiano ofereceu dificuldades ainda maiores ao entendimento ocidental, que, se não se atreveu a uma classificação racial, resolveu o conflito reduzindo ao conceito de “castas” uma realidade cultural muito mais complexa, ignorando aspectos como ascendência, profissão, diversidade religiosa e origem geográfica. Ao europeu, porém, o que se tinha ali era tão-somente uma rígida e imutável divisão social. Assim eram as castas. E, deste modo, o XVI legou aos atuais países emergentes um misto de memória colonial, atraso e incompreensão.
Até hoje o indiano, pelas suas diversidades, causa problemas. Kanavilil Rajagopalan, lingüísta, professor da Unicamp, de origem hindu, conta que, ao fazer nossa carteira nacional de habilitação, apareceu a temida pergunta, “Qual é sua cor?”, ao que ele respondeu, “É marrom”, o que levantou problema para a classificação tradicional. É claro que a atendente não resolveria uma questão secular em tão poucos segundos, mas fez o que era possível: “Qual sua profissão?”, “Sou professor universitário”, “Ah, então o senhor é branco”. E assim é o século XXI. E assim são as castas.
7.5.07
2.5.07
30.4.07
DA REALIDADE
Ah! quanta vez a vida nos revela
Que a saudade da amada criatura
É bem melhor do que a presença dela.
Mário Quintana
*********
Bem, podem me xingar, mas, de todas as relações, prefiro as desenlaçadas. Já tenho, cá comigo, muitos nós.
24.4.07
9.4.07
23.3.07
18.2.07
14.2.07
“Neste país de funcionários públicos, apenas dois tipos realmente trabalham: os professores e os policiais.” É o que diz – diz e repete – um certo amigo meu, provocador. E eu, que em criança sempre temi a ambos, hoje entendo melhor os primeiros, e procuro não criticar muuuuito os últimos. Pode até ser corporativismo, desconfio. Mas o fato é que esta semana, que pode parecer a ti, leitor, vulgar, vagabunda e sem graça, com os mesmos sete dias das outras, esta semana me deu, pela primeira vez, uma sala, uma aula e 30 pré-adolescentes, de 10m2 aquela, de 50 minutos esta, de 12 anos estes, de ambos os sexos e muuuuuitos hormônios. E eu adentrei aquela sala: embaixo do braço a Gramática do Bechara, a confiança e minhas mais modernas concepções pedagógicas. E deu tudo errado. Ao fim de seis aulas, andei desnorteado pelas ruas de um meio-dia quente. Passados 100 minutos, cheguei esbaforido ao meu quarto. E durante um mau tempo que o sono levou pra me levar, pensei seriamente em toda minha carreira acadêmica até aqui. E, dormindo, sonhei com bolinhas de papel, tiros, viaturas, carteiras arrastadas, correria, desordem, adrenalina, verbos no imperativo, verbos no imperativo, verbos no imperativo...
12.2.07
Hoje, chove. Tédio.
E ontem praticamente não tive o que fazer. Restou-me o consolo de olhar da minha janela o sol pintando, aqui e ali, um verde, um marrom, um cinza de pardais, um multi-colorido de varais. É que as vizinhas penduram roupa todo dia por ali. E na última vez que fui olhar minha janela, talvez procurando alguma delas semi-nua, havia ainda um restinho de claridade no céu, ainda se enxergava um pouco, mas, abaixo da copa das árvores mais altas, um tom escuro uniformizava tudo. Porque até um menino, sozinho, pequeninho, recolhia as últimas roupas, agora secas. Achei bonito. Mal alcançava o varal, tadinho, e precisava apoiar-se na ponta dos pés para pegá-las. As das extremidades, mais altas, fazia-as deslizar lentamente até a metade do fio, de onde as tirava, um trabalhão. Há quem diga que a inocência é o mais belo nas crianças; cá por mim, acho que é mais que isso: é uma paciência preguiçosamente desinteressada que o adulto vai perdendo. Fiquei olhando, assim, com uma vontade imensa de ajudar e uma preguiça enorme de sair. O empate imobilizou-me. E quem me visse acharia que eu estava contemplando o crepúsculo, imagine... coisa mais sem graça.
11.2.07
6.2.07
O aquecimento global, o nacionalismo, a pobreza e o futuro
De acordo com o tal novo relatório da ONU sobre o clima, recentemente divulgado, a chapa vai esquentar pro nosso lado. Tanto, que tem até gente falando numa elevação climática global de 5ºC em 2100. Países e corporações economicamente relevantes têm outras precupações e, no fundo, no fundo, todo mundo quer mesmo é que se foda o séc. XXII. Até lá as geleiras vão derretendo, o nível dos mares vai subindo, secas aqui, ciclones acolá, inundações ali, e por cá, yesss!, em terras tupiniquins, juntamente com os desmatamentos já foram observados os processos de desertificação que cobrem um terço da Terra. Ou descobrem, melhor dizendo.
A idéia de que por aqui não temos catástrofes naturais, apenas-corrupção-inda-bem, vai começar a esfriar à medida que o XXI for se passando. A ONU diz-que em 2050 a falta d’água talvez já atinja 3 bilhões de pessoas. E não obstante “nosso” imenso manancial hídrico, vou ingenuamente desconfiando que algumas serão brasileiras. A seca já é um problema bem conhecido nosso, se não para o lado rico do país, certamente para a região mais pobre e populosa, o Nordeste. E, no final, quem vai pagar a conta inevitável, a gente já sabe, são os mais pobres. Ou seja, não é todo mundo que vai entrar numa fria, com o aquecimento global.
Os mais fortes terão reservado seu lugar ao sol, protetor de pele e água mineral gelada. Se tiver, como diz Gilberto Kassab, algum vagabundo na praia, é só chamar a polícia e liberar a areia. Se aparecer muito pobre enchendo o saco, basta comprar, cercar tudo e fazer um condomínio fechado. É assim que faz Antônio Ermírio de Moraes, que, patriótico, ainda afirma ser um exagero dizer que nosso país é um dos que mais devastam a natureza (“O mundo e o meio ambiente”, Folha, 04/02/07). Pode até ter razão nisso, resta saber se o país é mesmo “nosso”. E mesmo que tenha razão, num momento em que países deveriam se unir para enfrentar a degradação ambiental, sua atitude reflete hoje em dia o que mais se vê mundo afora: o nacionalismo ou a defesa de interesses particulares.
É mais ou menos por aí, como Moraes, que os EUA raciocinam quando não dão bola alguma ao Protocolo de Kyoto: “Que temos a perder? Somos a mais desenvolvida nação do planeta, os aliados estão agora espalhados por todo o mundo, temos um invejável arsenal bélico... Ora, controlem vocês suas emissões de CO2!” E, no fim das contas, se faltar alguma coisa aos ianques, água ou petróleo, já têm um bom motivo para pelo menos uma guerrinha de conquista da Amazônia: Hugo Chávez. E a Venezuela que se cuide.
Quem bloqueia o caminho das grandes corporações capitalistas – e elas não são só americanas – tem grande chance de ser eliminado. A maior preocupação destas organizações não é o bem-estar das pessoas, não é a construção do bem comum e nem tampouco a preservação dos mais diversos ecossistemas do planeta. Seu caminho não é feito por príncipios, os seus passos se baseiam na trapaça, a artimanha é condição para vitória e o lucro é quase individual. É com este espírito que o grupo petrolífero ExxonMobil ofereceu dinheiro a cientistas para que escrevessem artigos colocando em dúvida as conclusões do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change)1. Isso não serve apenas para mostrar até onde vai a irresponsabilidade dos executivos; alerta também que se os relatórios da ONU não servirem para mudar a retórica beligerante das grandes corporações2 e, principalmente, dos EUA, o maior poluidor, não vão servir pra nada, nem pra ninguém. E o planeta que se cuide.
E eu não sei quanto a vocês, mas acho que esta é mais uma boa razão para não ter filhos. O que vimos até agora aponta que esse mundão vai ficar um lugarzinho bem ruinzinho pra viver no futuro. E, como disse Brás Cubas, se os tivermos, aos filhos, será apenas para transmitir “o legado da nossa miséria”. E o disse muito bem, porque esta, sim, é “nossa”.
Notas:
1. O fato, matéria do jornal britânico Guardian em 02/02, convenientemente abordado no mesmo dia pelo reverso
2. Não é de hoje que a Exxon tenta sabotar o trabalho do IPCC. Veja-se a reportagem da Folha de 02/09/02.
4.2.07
Dos jornais
“Entre os partidos, o PSDB saiu arranhado das disputas. No Senado, suspeita-se de que os tucanos foram responsáveis pela votação minguada em José Agripino (PFL-RN), que teve menos votos (28) do que o número de tucanos e pefelistas (30). Na Câmara, o PSDB ficou com fama de ter dado a Chinaglia os votos que precisava para vencer no segundo turno. Em suma, os tucanos são de oposição, ajudaram o governo e saíram rachados.
(...)
O PFL, a outra sigla de oposição, também saiu esfacelada. Foi humilhada no Senado. Na Câmara, apoiou um comunista. Nada deu certo. Como se não bastasse, os pefelistas se digladiam para escolher os novos líderes do partido.”
Fernando Rodrigues, “PT paulista triunfa; PSDB sai arranhado”, Folha, 02/02/07.
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“O maior foco de atenções no Senado ontem foi Fernando Collor de Mello (PRTB-AL), que tomou posse 14 anos após ser afastado da Presidência da República por um processo de impeachment.”
FERNANDA KRAKOVICS e FELIPE SELIGMAN, “Gafe de presidente reeleito e retorno de Collor marcam a posse no Senado”, Folha, 02/02/07.
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"O que é isso?
O que são essas siglas?"
CLODOVIL HERNANDES
deputado (PTC-SP), ao ser perguntado se votaria para aprovar o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)
Folha, 02/02/07
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"Espero que a imprensa continue investigativa, livre, com compromisso com a ética."
PAULO MALUF
deputado (PP-SP)
Folha, 02/02/07
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Convenhamos. A política brasileira é um dos espetáculos mais gozados da face da terra. Onde teríamos tantas boas piadas juntas, e num só dia?
3.2.07
De como a direita não se torna esquerda na velhice
Vez ou outra encontra-se alguém que, cuspindo desprezo, costuma dizer: “Felizmente, os esquerdistas viram direitistas quando velhos.” É bem verdade que isso acontece e disso há exemplos vários, embora não seja a regra. Porque houve e há também muitos velhinhos de esquerda, como, lembrei agora dele, Apolônio de Carvalho. O curioso é que não haverá jamais o inverso: direitistas que se tornem esquerdistas com o tempo. Com todas as críticas, com todos os erros, com tudo o que a História imputar como fracasso à atuação da esquerda, há de se admitir pelo menos que segui-la é dizer o tempo todo “não” ao establishment, o que não é pouco. Dizer “não” é das coisas mais difíceis do mundo, em muitas culturas.
Uma vez o moçambicano Mia Couto dizia dessa inadaptação do ser humano em negar. É quase uma falta de educação. E, lá em África, em sua vida de biólogo, chegando a um determinado ponto marítimo que precisava atravessar, perguntou a um morador algo assim: “A maré está a descer?” Responderam: “Sim, está a descer.” Porém completaram: “Mas já começou a subir há meia hora atrás”. Em suma, se der pra concordar, pra que discordar?
Negar a ordem política, econômica, legal e ideológica continuamente deve a longo prazo produzir sérias conseqüências. Uma delas talvez venha por volta dos 40 anos, acabada a juventude, quando se perguntará: “Que sentido há nisso tudo?” E este é o ponto onde vão se separar os apolônios dos luís-inácios. Uns acham respostas; outros não. E depois de uma tal crise de identidade, perdoam-se eventuais incoerências. É óbvio que a vida de alguém que palmilhou sempre a macia estrada da direita jamais terá perturbações desse tipo. Nem crises. Nem vontades de dizer “não”. E eis por que direitistas não se tornam esquerdistas quando velhos.
2.2.07
– Alô?
– Boa tarde, senhor, com quem estou falando?
– Aqui é o Raimundo, com quem quer falar?
– Ah, é com o senhor mesmo, o titular da linha, estamos oferecendo o serviço detecta, sendo o aparelho totalmente gratuito, que o senhor vai estar recebendo em casa!
– Hum...
– Com ele o senhor vai poder estar identificando chamadas feitas e recebidas, e estará evitando trotes, além de poder estar retornando ligações etc. etc. blá-blá-blá...
– Tá bom, eu quero.
– Por favor, queira estar aguardando um momento, enquanto estamos confirmando seus dados...
....................................................................................
– Amor, a Telesp ligou aí, e eu aceitei aquele negócio do detecta, lá...
– O quê?? Raimundo Lima de Albuquerque, não tínhamos já conversado sobre isso? não tínhamos já decidido que não era preciso? não foi? hein, hein?
– Bem, sim, mas... me pareceu tão barato... apenas 10 reais de mensalidade, 23 de habilitação, e o aparelho de graça...
- Idiota! Idiota! Idiota! Eu me casei com um idiota! V. não percebe que o valor do aparelho já está embutido nesse absurdo de habilitação? Eu não acredito, eu não acredito... sou uma desgraçada...
– A gente pode cancelar depois...
– Ah, é? Depois? Depois de gastar 30 reais inutilmente? V. não está desempregado? Não sou eu que pago as contas? Sou ou não sou? E v. sai comprando coisas que eu vou ter de pagar, sim, porque v. não tem dó de mim, v. não pensa nas contas dessa casa...
....................................................................................
– Alô, eu quero cancelar um serviço.
– Senhor, qual serviço vamos estar cancelando hoje?
– Um identificador de chamadas...
– Aaaaah, vamos estar cancelando, aqui está, mas o senhor acabou de o solicitar, há pouco mais de 30 minutos...
– Eu quero cancelar.
– Mas, o senhor vai poder estar recebendo inteiramente gratuito o aparelho, com o qual vai poder estar evitando trooootes...
– ...eu sei, eu sei, quero cancelar!
– Mas fique sabendo o senhor que, mesmo cancelando, vai poder ter de estar pagando a adesão ao serviço, de 23 reais.
– Ok, cancele!
– Tudo bem, tudo bem, senhor, estamos cancelando.
– (...)
– Talvez fosse melhor o senhor estar reconsiderando, estar usando um primeiro mês e só aí então estar fazendo o tal cancelamento, nãããããão?
– Cancele agora, porra!
– Senhor, a nossa ligação está sendo gravada e...
– ...foda-se, caralho, cancela essa porra!
– Tudo bem, senhor, estamos cancelando.
– (...)
– Senhor, estamos concluindo o cancelamento, porém, o envio do aparelho não vai poder estar sendo cancelado. O senhor vai ter de estar devolvendo-o aqui, na sede da Telesp, R Sete de Abril... Não é melhor o senhor ir pensando em reconsideraaaaaar?
– Não, cancele. Eu mando pelo correio.
– Mas, pensando nas vantagens que o senhor estará tendo, contratando ao menos temporariamente este serviço que...
– Eu não quero essa porra, cancele....
– Senhor, estou vendo aqui nos protocolos e não sê-lo-á possível ao senhor estar enviando o aparelho pelo correio, pelo que o senhor estará tendo de vir pessoalmente...
– Mas por quê? é pra vocês ver a minha cara de trouxa?
– (hahahaha! ai, ai...) Sem comentários, senhor.
– Tudo bem, porra, eu vou pessoalmente, mas cancele logo isso!
– O senhor pode estar anotando o número do protocolo, senhor?
– Pegar a caneta...
– (...)
– Pode falar.
– um-sete-um...
– ...ããh.
– um-sete-um...
– ?
– um-sete-um...
– !
30.1.07
Lembrança
Batia o frio soprando gelado na branca janela
Quando ela chegou,
e tomamos café com bolachas.
Falou-me do tempo frio de antes
Dos chãos que pisaram seus pés infantis
Do clima que muda sempre constante
Do quente que morre nas coisas que ficam...
Lembrou cousas há muito esquecidas
Teve saudades do que nunca foi
E confundiram-se-lhe os livros e a vida...
Já te vais, perguntei
Já me vou, adeus...
E não lembramos mais.
27.1.07
Lapa
Rio. Não a cidade das ensolaradas praias copacanas, das toscas novelas da classe medíocre. Mais... Os dias de Glória. A Fundição Progresso. A antiga rua de Mata-cavalos. O aqueduto. As rodas boêmias. Numa parede pintados Manuel Bandeira, Noel Rosa, João do Rio, Di Cavalcanti, Portinari, Madame Satã... Resta saber como os reuniram, se o segundo tinha só onze anos quando morreu o terceiro, mas, ora, está-se a ver que é liberdade artística, e basta pensar que as ruas são alternativas... e as noites, da Lapa. Aos pés dos arcos entrecruzam-se histórias, tempos, cores, classes, línguas, músicas... As rodas de samba na rua. Aqui, a igreja cuja torre levou um estrondo de canhão, à esquerda uma parede exibe, talvez, uma releitura de Debret, ali uma rua-território de muitas tribos, vamos indo nela, lá estão mendigos, e as meninas mais belas, lá estão as rodas de samba, já se sente cheiro de maconha, adiante queda-se, imóvel, a polícia, sofrendo o calor em seus uniformes, aclimatada à carioca vida, hipnotizada por um vai-e-vem, de malandros, de meninas, de crianças pobres, de turistas vários nas estreitas ruas, acolá se vê a Joaquim Silva, vamos indo pela Manoel Carneiro, vê-se bem destes degraus azulejados, aquele casal alemão adentra o Restaurante Ximenes, observam, não entendem a língua do menu, pedem quatro cervejas (pensando em longnecks), ok, lá vem o garçom intrépido, abridor à mão, quatro garrafas de 550ml, ploc, ploc, ploc, ploc... entreolham-se admirados com a fartura tupiniquim os filhos de Oropa (sobre lâmpada antiqüíssima há ainda uma goteira, cai agora uma água de torneira surreal, presa ao teto, as gotas faíscam no ar), por aquele beco vê-se ainda ao longe a beleza das construções, das janelas em paredes de trompe l’oeil, finda 17 de novembro de 2006, não esperaremos muito, não tarda a hora de ir ao Circo Voador. Rio. Rio. Rio...
25.1.07
Ritual
À meia-noite duma noite quente, lia numa antiga Seleções o registro de uma tradição oral pré-colombiana que havia sido recolhida por Mário de Andrade, na Amazônia peruana. A matéria trazia fotos de pés pintados que, afirmava-se, eram de Macunaíma. Fui lendo interessado, pois não sabia que eles tinham passado por outros países sul-americanos, e quando notei fui alucinogenamente inserto no ritual descrito pela lenda. Invocava a deusa Inanna e dançava pedindo fartura na colheita:
Eh, terra de Inanna
Eh, eh, terra onde corre leite e mel
Eh, eh, eh, adoçai minha boca, minha terra
Fiquei meio desconfiado. Mas fui seguindo fielmente as instruções, dizia-se que era preciso repetir a dança três vezes, cantando, sob uma palmeira-anã. Fui dizendo aquele mantra, e o curioso é que comecei a acreditar naquilo de repente e de repente: choveu torrencialmente sobre minha cabeça, do alto da copa da palmeira, leite, mel e abelhas. As abelhas eram mansas e não picavam. Fiquei assim, entre incrédulo e melado, e fui repetindo novamente o ritual, porque ainda não havia chegado à terceira vez e tive medo de desagradar aos deuses e abelhas, e vacas eventuais:
Eh, terra de Inanna
Eh, eh, terra onde corre leite e mel
Eh, eh, eh, adoçai minha boca, minha terra
E antes mesmo que pudesse chegar ao último verso, fui violentamente trazido para o meu quarto e tudo que vi foi a escuridão da noite. Ri aquele riso safado, zombando da credulidade dos nativos e camponeses amazonenses que preservaram oralmente esse ritual. E ainda ri do Mário, que foi escrever. Ham! E, quando ia caminhando à cozinha, pouco antes da porta, fui tragado pelo solo, agarrei-me desesperadamente ao criado-mudo e assim fiquei, enterrado ao chão até o peito, e só a muito custo pude soerguer-me. Fui acender a luz. Escuro. Fui pra sala. Escuro. Nenhuma lâmpada funcionava. Tive calafrios e comecei a pressentir a ocorrência sobrenatural do incompreensível. Resolvi sair do apartamento. Abri a porta e, assombrado, tive a visão translúcida de uma realidade nova: a parede, ao lado esquerdo dos umbrais, exactamente onde o sulco da fechadura encerrava minha segurança, abria-se e ia, formando duas retas semi-paralelas que se afastavam gradualmente e deixavam-me entrever, entre elas, um abismo, um espaço inexplorado nas minhas cotidianas passagens e, dentro, lá estava a mesma escuridão do quarto. Fui falar com o síndico: expus minhas desconfianças e ele disse que faria uma reunião em caráter de urgência. Achei esquisito. Era já madrugada: duas horas. Vieram mulheres evangélicas. Vieram céticos. Vieram espíritas. Vieram materialistas. Veio a desgraçada da dona Hermínia, do 98. Conversamos. E ficamos toda aquela madrugada tomando café e descascando feijão, contando histórias, rindo, naquela sala ampla do térreo, onde ocorriam as reuniões. O feijão havia sido doado ao condomínio, mas não estava descascado, não sei por que, desconfio de negócios mais escusos que esse nesta gestão. “Cavalo dado não se olha os dentes”, foi a desculpa. Então, fizemos uma roda em volta dum lençol sobre o qual pusemos as vagens, e cada um puxava um pouco para si, junto à borda. Era fácil descascar feijão com os vizinhos, contar histórias e tomar café, e por um minuto a desconfiança riu sarcástica para minha alma, até que um reincidente calafrio caminhou lentamente nalgumas frações de segundo por minha espinha, e senti carnalmente que já havia vivido, falado, recordado, sentido e comemorado tudo aquilo antes. Déjà-vu. E só-deus-sabe como tardou o amanhecer.
24.1.07
Khaled Hosseini e O caçador de pipas
A verdade é que torci o nariz quando ouvi falar dele. Imaginei que era qualquer best sellerzinho como O Código Da Vinci etc., o qual nem li nem tenho vontade. Sei lá por quê. Ou sei. É besteira, mas é sempre o pensamento de que tudo o que é sucesso de vendas não presta, o que, sendo ou não verdadeiro, não deixa de ser uma visão pretensamente elitista. Em todo caso, continuo olhando torto o Dan Brown.
Já não é mais o caso de Khaled. Tanto torci o nariz, que, talvez pra sacanear, me deram de natal, com dedicatória e tudo, e “caraleo! agora vou ter que ler”, e fui começando, embirrado. Mas devorei em uma semana as 360 páginas: a história é boa. Agora vem uma apropriação de idéias: Outro dia, na Folha, Contardo Calligaris escreveu que “a leitura nos faz conhecer particularidades do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista.” Sim, a história de Amir contribui para o romance, e isso é também pelo interesse que geram as biografias profundamente afetadas pelo curso da História, sempre cheia de guerras. Aliás, o romance, que tem como cenários Afeganistão, Paquistão e EUA, lugares que Khaled conhece bem, é, em certo sentido, autobiográfico. Mas é bom dizer que a leitura nos faz conhecer muuuuuuintas particularidades do Afeganistão, e isso não pode ser relegado a segundo plano.
Uma delas é exatamente o idioma, ou os idiomas. Do árabe, pashtu, farsi, urdu, tadjique, sei lá, uma série de palavras vão aparecendo ao longo do livro, sem nota de rodapé, sem tradução, nem nada: noor, baba, naan, laaf, namaz... O leitor é que tem de intuir o significado, e a maioria dá pra fazer tranqüilamente pelo contexto. As outras, mais difíceis, o autor ajuda traduzindo logo à frente. E algumas, que ele esqueceu, a gente fica sem saber, que também já é querer saber demais. O engraçado é que a tradicional saudação muçulmana salaam alaykum, ‘a paz esteja contigo’, repete-se regularmente, e cada vez que eu a lia era como se já a conhecesse, soava muito familiar. Fui olhar no dicionário, claro. E o bom e novo Houaiss registra o aportuguesamento salamaleque, que, gozado, também significa ‘cumprimento exagerado, polidez afetada’. Mas continuei na mesma. Até que de repente, zás, num nostálgico recuo temporal me vi a mim de novo, infantil, vendo tv, ouvindo uma mulher que usava véu, contava histórias e ia embora num tapete voador, logo após dizer salaam alaykum. A mulher devia ser Sherazade e o programa, Rá Tim Bum. Lembrando isso, amaldiçoei o tempo que passa, idealizei a infância, condenei a programação infantil atual etc.
E é isso. O romance, do ponto de vista formal, parece que não traz mais nenhuma novidade. Estilo simples, narrativa predominantemente linear, continuidade, contextualização, idéias claras, nada dessas viageiras da pós-modernidade a que estamos nos acostumando. A desconstrução dos valores estéticos tradicionais deve ter um limite. E isso deve ser o que pensa Khaled: com a primeira frase do livro, que é aquela epígrafe, ele anuncia os dois pontos de tensão da história: os bons tempos, no passado; e as lembranças, no presente. E, com muito cuidado, faz Amir caminhar nesta ponte temporal, mas tem tanto cuidado, que a linearidade é o que vai predominar, apesar das idas e vindas. O fato é que a simplicidade do seu estilo, que muitas vezes traça retratos bem crus, é uma coisa muito boa: reserva sempre o espaço pruma piadinha prosaica e o momento bom para a expressão poética, dois extremos que agradam todo tipo de leitor. E tudo acaba ficando no seu lugar, com cara de casa simples da roça, chapéu na parede, panela no fogo, fumaça na chaminé. Em suma, é um livro sem salamaleques.
23.1.07
a vida... a vida anda em transportes coletivos
Dias atrás estava num assento de corredor, pouco depois da metade, já próximo à porta traseira. E entrou uma família, mãe, duas filhas, o pai vinha atrás. Sentaram-se num dos primeiros bancos a mãe e uma das meninas: a outra olhava-me insistentemente. Quatro anos? olhos negros, pequenos dentes, branquinhos, cabelo ao ombro. E, do nada, começou a chorar e, chorando, caminhou pelo corredor e, caminhando, falava comigo. Trazia aquele brilho nos olhos que não é feito apenas de lágrimas. Era um sofrimento, uma dor, uma saudade, sei lá, eu senti, e senti aquela mão que me tocou o braço e aquele rosto triste e aquela voz clara e infantil, pai, pai, pai. A mãe ficou envergonhada. Eu fiquei paralisado (nem quis ver a cara da mãe!). O pai ficou sem graça. Éramos parecidos. A cor morena. O cabelo curto. A mesma camisa vermelha. Pegou a criança e sentaram-se a minha frente. Ela, chorava. Percurso infeliz. Durante toda a viagem, a curtos intervalos, a pequena voltava-se, confusa, mostrando-me o rosto ainda molhado, ainda soluços, um olhar tão triste, era como se dissesse, porque não me abraça, não fala comigo, não diz, filha, minha filha. O pai estava tão incomodado, que, lá pelas tantas, inda teve a indelicadeza de perguntar à mãe: “Você teve algum caso?” Desci aterrado.
E ainda me pergunto: será?
“Há ordens a que obedecemos com prazer”
– Vai ou não?
– Mas eu tento-que-tento e num consigo entender esse negócio de pronome relativo, prô?
– Se você estudasse mais...
– Ai, prô, mas eu tento, eu tento, Deus tá vendo...
– Olha, é mais ou menos o seguinte: a palavra “ordens” já tem um compromisso: é complemento, objeto direto de “haver”, na primeira oração. É como um casamento deles. Mas aí, acontece o seguinte: essa palavra é muito danadinha, muito cheiinha de fogo, quer-porque-quer pular a cerca, ir pra outra oração, completar o sentido de “obedecer”, e isso é praticamente uma traição. Diriam os religiosos Estevam e Sônia Hernandes: “isso é um sacrilégio!”. Mas dá-se um jeito, ela vai, num tem conversa não, quando mulher quer dar, num tem marido que segure. E como você sabe, o verbo “obedecer” é transitivo indireto , e está lá na segunda oração, bonito, solteiro, com a sua “preposiçãozinha” preparada, doidinho pra pegar o complemento verbal do vizinho, chifrando-o, por assim dizer. Mas há um problema: o vizinho, “haver”, não pode descobrir nada. Então, “ordens” vai, se disfarça de “que”, se traveste, se entrega como complemento ao verbo “obedecer”, vira “objeto indireto” dele, usando o laranja do pronome relativo, e ninguém nem num percebe nada. Só a gente, que é gramático, tá vendo essa senvergonhice toda, claro. O resto das pessoas comuns (médicos, engenheiros, donas-de-casa) nem vê nada. Apenas falam a língua, usando essas estruturas pecaminosas do pronome relativo. E sabemos todos, inconscientemente, que a palavra “ordens” tanto completa o sentido de “há” como o sentido de “obedecemos”, mas nem se imagina os estratagemas de que ela usa pra estar nos dois lugares ao mesmo tempo e consumar sua traição, conspurcando os nossos valores cristãos. Isso é um absurdo!
– Aaaaaaahhh! Com sacanagem eu entendi.