16.7.07

Autenticidade

Há três coisas que não se pode agüentar: bêbado; chulé; e gente que fala sem acreditar naquilo que diz. Não tem coisa pior que ouvir alguém dizendo coisas sem paixão. Ou fazendo qualquer coisa sem paixão. Mas de pseudo-palestrante já tá cheio: tem muito. Do tipo que fala sobre os males das drogas (lícitas ou não), recrimina o uso, o usuário, sua casa, a favela, e é visto em casas noturnas tomando black label com marlboro. Esse tipo de gente anda em alta. Foi-se o tempo do valor das palavras. E da palavra. Bem lembrado pela lulu, a tendência é piorar: cada vez mais a tecnologia, o bate-papo on-line, a conversa instantânea faz diminuir o senso de responsabilidade dos adolescentes de nossos dias. O que se disse há alguns minutos, como scraps velhos de orkut, fica para trás, não tem mais importância. Nem valor.

Perde-se. Perdem-se os princípios. Perde-se um modelo de gente que é hoje raro. Ainda há alguns, é claro. Tempos atrás um amigo me contava sobre um diálogo entre aluno e uma velha diretora, já bem antiga, tradicional, nestes tempos de escola nova, e novas pedagogias. O aluno não gostou da cor do uniforme que a escola tinha dado e reclamava: "Pôxa, mas é obrigado a usar isso?". E a diretora já impaciente: "Não. Obrigado não é. Mas sem ele v. não entra na escola." "Ah, mas a gente tinha que poder escolher... a gente não vive numa democracia?" "Ô, menino, v. nem sabe o que é democracia nem o que é ditadura: eu que já vivi tudo isso não sei bem o que é. Tanta gente passando fome, e você reclamando dum uniforme? V. tá ganhando isso aí de graça, procure o que fazer, menino, xô." Não dá pra não gostar dessas coisas. Ou de gente assim, que sentenciava tempos atrás, sobre um aluno, digamos... complicado, de seu estabelecimento de ensino: "Deve ser hiperativo. Só pode. Que hoje em dia não tem mais esse negócio de indisciplina..." Rude, antigo, mas autêntico.

Foi o mesmo amigo a me lembrar a imagem autêntica, inegável da nossa polícia, ou, melhor, de um setor dela, a Ronda Ostensiva Tobias Aguiar. Inegável até por eles mesmos. Houve um tempo mais sombrio em que um misto de audácia e humor negro até lhes permitia fixar no vidro das viaturas o adesivo: "Deus cria. A Rota mata". Mas o caso mais espantoso foi o de uma entrevista que, segundo consta, após um massacre, o repórter ousou entrevistar os homens. "Que é que vocês têm a declarar sobre essa... sobre esse...massacre? essa chacina? esse monte de bandido morto?" Ao que um deles, sem parar, sem olhar pro lado, semblante fechado, boina a cair sobre a testa, respondeu, sem culpa: "Eles riem da lei. Não da gente". Era a pura verdade. Rude. Dura. Autêntica.

6.7.07

Para umas memórias

Afinal, percebi que o meu lugar tinha todo o tipo de frutas: manga, caju, banana, ameixa, melancia, laranja, limão e até pinha (vulgarmente conhecida por fruta-do-conde). Lembro-me particularmente das romãs. Eram vermelhas, e doces, e boas. Lembro-me de uma avó boa dizendo que comer romã fazia bem pra garganta. E eu, que sofria dores de garganta, achava aquilo o máximo. Devia ter uns cinco ou seis anos.

As mangas sempre tinham cheiro de aventura. Ainda verde, uma manga no alto da mangueira era motivo de escalar, abraçar caules, andar sobre o equilíbrio dos galhos arriscados. Uma manga na mão era logo garapa escorrendo nos dedos, no rosto, no queixo, no peito. Fiapo no dente, por fim. Mangueiras davam mangas, paz e sombras. Eram ensolarados os anos 80 na mesorregião do oeste potiguar.

Algumas informações nutricionais:

a) a manga tem mais ou menos 15% de açúcar, até 1% de proteína e consideráveis quantidades de mineirais e vitaminas A, B e C; faz bem às pessoas com anemia e às mulheres grávidas, porque tem muita concentração de ferro. A ciência diz também que pessoas com cãibras, estresse e problemas cardíacos devem comer manga, por conter potássio e magnésio. A religião, na Índia, de onde a manga é fruta nativa e quase sagrada (como as vacas, o que serve para desconstruir a crendice de que leite com manga faz mal), diz que faz bem ao cérebro, estanca hemorragia e faz bem ao coração (note, perspicaz leitor, que aqui ciência e religião concordam). E, last but not least, a sabedoria popular diz que manga "solta intestino preso". Tem apenas uma semente, também chamada de "caroço".

b) a romã era para os gregos símbolo do amor e da fecundidade, razão por que consagraram-na à deusa Afrodite. Para os romanos, era, além disso, símbolo de ordem e riqueza. Conta-nos outra vez a sabedoria popular que se você carrega três sementes de romã na carteira, não lhe faltará nunca o vil metal. Como a manga, a romã veio da Ásia. Ao contrário da manga, tem muitas sementes, e sementes especiais, pois têm polpa comestível. O suco de romã contém mais anti-oxidantes do que qualquer outro.

Mas, mesmo assim, faltava-me conhecer os doces frutos dos climas frios. Um dia, num entardecer, quase noite, chegou alguém, de muito longe, com fala esquisita, diferente. Nunca o tinha visto, mas logo gostei dele. Vinha do Sul. Trouxe alegria e muitas malas, e numa delas uma fruta desconhecida: maçã. Ainda não tinha visto uma. Quando recebi a minha, reconheci que não era qualquer fruta: tinha pele fina, era delicada, era rara, e era vermelha. Tinha um aroma delicioso, inominável, que nunca mais senti (até hoje me pergunto se maçã tem aroma, de fato). Mordi devagar, mastiguei com cuidado e cada pedaço foi a reiteração de um sabor novo e apaixonante. Foi minha primeira vez.

Nunca mais comi aquela maçã. A lembrança que tenho daquela noite foi ficando na memória. E cada vez que a olho, como para sentir outra vez um prazer antigo, parece que a encontro modificada. E logo me aborreço com a idéia de que alguém mexeu nas minhas coisas. Bobagem, não há nada nem ninguém entre eu e minhas lembranças, a não ser o tempo. E cada vez que as renovo, modifico-as, daí a sensação de estranhamento. E quanto mais as revivo, mais me afasto da realidade que vivi, que queria reviver e que somente reconstruo, à minha maneira. E é assim que as memórias têm sido, por excelência, minhas primeiras ficções, editadas em momentos ociosos, estilizadas pela beleza das coisas envelhecidas, emolduradas pela augusta cor sem-cor do esquecimento.