26.11.09

Terrorismo, filmes, músicas e livros

Hoje (ou ontem) a tevê passou o Munique, do Spielberg. Bom filme. Que deixou mais uma dúvida: que é um terrorista? O terrorista faz o mal ou um mal? Porque um terrorista pode parecer um insensível (porque mata ou se mata sem culpa nem reflexão) apenas quando esquecemos que nós vamos vivendo nossas vidas normalmente, em nossas casas, em nossos trabalhos, em nosso lazer, sem muita culpa nem muito o que pensar sobre a fome de milhões de pessoas, dentre as quais estão seres humanos comendo depois de porcos – uma cena do Ilha das Flores que já não sensibiliza mais ninguém: todo mundo é uma ilha, a milhas e milhas e milhas de qualquer lugar. Nesta terra de gigantes, que não só trocam vidas por diamantes, como também julgam ser a imaginação, a curiosidade e as Viagens de Gulliver coisa para gente pequena, que ainda não tem muito que fazer da vida.

Isso vai se estender para outras coisas. Que é fazer o bem? O ruim dessas coisas peremptórias é que elas só existem se existirem algo contrário (o que torna tudo assustador, parece mesmo que andamos em código binário); de modo que, parece, só se pode dizer que alguém faz o bem, quando sabemos o seu contrário, isto é, quando alguém faz o mal. Se um cara que detona explosivos faz o mal, precisamos pensar no que é fazer o bem. É simplesmente não detonar explosivos? Parece tudo simples demais. Nomes simples para uma realidade complexa. Mas talvez Heráclito não estivesse errado; talvez tudo o que existe tenha mesmo o seu contrário. A questão é que seu pensamento não pode ser mutilado, afinal, disse ele também que tudo está em movimento. E, muitas vezes, o contrário não se enxerga ao longo do espaço, mas no decorrer do tempo. De fato, luz e sombra coexistem no espaço; não no tempo.

É possível, e isto por enquanto é só hipótese, que o 11 de setembro venha a ser visto no futuro não como obra de gente insana e terrorista. Talvez este número nem tenha tanta importância perto de outros números piores, ainda mais desumanos e pelos quais, direta ou indiretamente, todos nós somos responsáveis. É preciso pensar sempre nas causas e nas consequências dos nossos atos – e não o fazemos. Não por nossa culpa, talvez; nem a escola nos ensinou assim, nem o trabalho nos permite hoje. Mas, afinal, de quem é a culpa dos atentados terroristas? Apenas daqueles que detonam bombas ou também se estende aos que as fabricam e vendem? Há uma fábrica da CBC ao lado da minha casa, na divisa entre Mauá e Ribeirão Pires; será que sabem para onde vão suas balas?

Sempre poderão dizer que não dá para saber ao certo para qual fim serão usadas as armas ou as bombas que produzimos. Ou então poderão dizer que numa arma produzida ou vendida não há mal nem bem – só se poderá conhecer isso com seu uso. O que não se poderá dizer nunca – e que, de fato, nunca dirão – é que muitas vezes preferimos não saber nem conhecer nada. Da mesma forma, é aceitável que não se veja as relações entre as coisas; mas ignorar que elas existam, e, mais, que se dividem em diretas e indiretas, isso é que é inaceitável.

18.11.09

Erros de alunos e professores

Sempre li, ri, gostei de ler aqueles emeiols enviados por professores com neologismos esdrúxulos ou loucuras de alunos em provas, mas ultimamente tenho acabado sempre com um gosto amargo na ponta do riso. Afinal, quando é que vão mandar coisa inteligente? Ou os alunos são todos estúpidos?

A verdade é que aluno, de um modo geral, é muito maltratado. Hoje, enquanto aplicava prova do Saresp, circulava entre as carteiras, vendo se eles preenchiam direito os quadradinhos etc., e fiscais do Estado passeavam pelo corredor, também vigilantes. E fique quieto; e não vire pro lado; e não converse; e obedeça. Por um momento, tive uma vertigem e em lugar de alunos vi prisioneiros. A escola comete maldades muito piores que as da polícia. Se a polícia faz de vivos mortos, a escola cria mortos-vivos.

Um belo dia, aparece em minha escola um concurso de redação, promovida por aparelhos burocráticos superiores, com a seguinte proposta. "Redija um texto, cujo tema seja: ‘Água: a vida do planeta’." E duas pessoas do sétimo ano – num ano ótimo, que trouxe até aulas aos sábados como brinde – pareciam estar num péssimo dia. Uma delas escreveu:

Gastar água é bom!

Agua, agua, àgua, porque tudo é sempre sobre
àgua?? Todo mundo já entendeu que a àgua está
acabando. Quer saber a real do que eu acho,
dane-se que a água está acabando, a hora
que acabar acabou e pronto. Eu não vou ser
a otária de ficar correndo no banho e lavando
louça com a torneira fexada, lava o meu carro
com balde. Se ninguém faiz isso porque eu tenho
que fazer, porque eu vou economizar se outros
gastam por mim. Quer saber, vou gastar também.

Vou tomar meu banho bem demorado, vou
deixar a torneira pingar, meu já era a água já
foi gasta não tem como recuperar agora. Com
tanta gente que não ta nem ai porque eu
estaria?

A àgua foi feita pra gastar, se não fosse,
não teria nem sentido ter àgua potavel no
mundo.

Essa é a minha opinião.


Quase dei um zero pra menina. Mas antes achei que seria bom saber quanto gastamos realmente com água, ver os números. Pra esfregar na cara dela, que fez um texto que mais parece um absurdo. E que, como muitas coisas que parecem, na verdade não é. Resultado da pesquisinha: indústria e agricultura gastam mais que as pessoas. Lógico, tinham que gastar mesmo. A questão é outra. É que nós, pessoas comuns, que gastamos menos, temos menos força e meios, nós é que estamos preocupados com o futuro, com o planeta e com a humanidade; eles, que gastam mais, que podem mais, só se preocupam com uma coisa: lucro. Tá, e daí?

Daí que, com relação ao problema da água, podemos até criticar os hábitos do povo; mas a crítica, se quiser ser justa, deve também se estender à economia, e com força proporcional à irresponsabilidade daqueles que a sustentam. E, se quisermos ser exatos, até a propaganda do governo federal, que vê nos biocombustíveis a salvação do mundo. Uma piada.

Vejamos por quê.





A tabela veio daqui.

Em suma, em termos mundiais, a agricultura gasta 69% da água. Indústria gira em torno de 23%. Os gastos domésticos, algo entre 8 e 10%. Os dados são da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, que tem como lema “Por um mundo livre de fome”).

Um belo lema, um belo trabalho da FAO. Mas a FAO tem problemas e os números também. Qual o problema da primeira? Muita ingenuidade e nenhuma coragem. Fazem este belo trabalho de pesquisa e depois dizem: “Bom, gente, agora vamos fazer uma greve de fome, pra sensibilizar o mundo”. Se as autoridades fossem sensíveis às greves de fome e se greve de fome resolvesse alguma coisa, a transposição do rio São Francisco já tinha sido cancelada. Também, que eu saiba, não vi nenhum presidente da GM em falência fazer em maio passado greve de fome pro Obama salvá-la com 20 bilhões, criados da noite pro dia. Qual o problema dos números?

É que por mais preocupante que seja a situação do abastecimento de água no planeta, não se atenta para o óbvio. Quem está acabando com água não são as pessoas; são as corporações; é principalmente o agronegócio. Aí é que entra a covardia deles; deviam dizer alto e claro o nome do mal: “sistema econômico”. E pra quê a agricultura precisa de tanta água? Pra matar a fome da humanidade? Claro que não. É a mesma ONU quem nos diz que neste mundo, produtor de mais alimentos do que consome, um bilhão de pessoas passa fome. E com a atual crise econômica, entre 55 e 90 milhões de pessoas, segundo o Banco Mundial e o FMI (órgãos filantrópicos preocupadíssimos), estão a caminho do grupinho.

Conclusão: o agronegócio, além de não matar a fome, vai ajudar na sede.

Uma página da Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal, um país cuja agricultura consome 87% da água, confirma que o agronegócio só faz aumentar a fome no mundo. Porque o milho, a cana de açúcar, a soja e outros vegetais deixaram de ser alimentos e viraram álcool; viraram biocombustíveis. E como é mais lucrativo fazer milho virar etanol, que virar pamonha, mais empresários deixaram de produzir alimentos, houve o encarecimento de vários produtos, resultando numa crise alimentar que, entre 2007 e 2008, fez 100 milhões de pessoas passarem da pobreza pra miséria. O mesmo texto chega a dizer algo que quase soa absurdo: em grande medida, o petróleo é melhor que qualquer combustível que tenha “bio” na frente.


Peraí, vamos pensar bem: há projeções que indicam que, com a expansão dos agrocombustíveis, o consumo mundial de água pela agricultura chegará em 2025 a 90%. Muito bom. E tudo isso para atender às necessidades de apenas 12% da humanidade, o pessoal que tem carro flex. Muito bom. Enquanto isso, calcula-se que os agrocombustíveis causaram um impacto de 75% na crise alimentar de 2007-08. Excelente. Que fazer?

Trocar de novo o álcool pela gasolina não resolve nada a longo prazo. O que resolveria seria investir em transporte coletivo. Ah, mas isso já põe em xeque a nossa sagrada economia que, apesar de entrar em crise de 10 em 10 anos, é a única que gera “lucros”, protege a propriedade privada e a FAO não critica. E todos os jornais, tevês, rádios e Sabesp resolvem continuar a culpar a população pelo tempo que ficam no chuveiro. Vamos ver até quando isso vai. Desde fins da Idade Média o lucro vem movendo a humanidade, a tal velocidade que esgotou os recursos naturais que podia e que não podia. Eu não sei quanto a vocês, mas pra mim está cada vez mais emocionante acompanhar até onde vai a aventura histórica dessa gente que comanda a humanidade (outro dia, um amigo me censurou por ainda usar o termo “burguesia”, que, segundo seus cálculos, não existe mais). Enfim, eu é que não estou no comando.

E quando a gente volta à pergunta da aluna: “Com tanta gente que não ta nem ai porque eu estaria?”, a gente percebe que ela tem mais razão do que pensa ter. Dentro deste “tanta gente” cabe muita gente mesmo, e graúda. Gente que não pensa em outra coisa senão em si.

No Brasil, 60% da água vai para a agricultura, 15% para a indústria e o restante distribui-se entre comércio e residências. E a menina acabou ganhando nota dois. Era o máximo.

12.11.09

Quando eu tinha uns cinco anos, morava no sertão, e via meu avô levantar-se, enxada ao ombro, lidar no roçado. Era agricultor, pequeno, mas tinha lá umas covas de feijão, arroz em inverno bom, milho em tempo ruim, algodão em tempos duvidosos, melancias às vezes espalhavam-se pelo chão. Era um homem da terra. Todos nós. Um dia, pela manhã, alcancei uma enxada pelos terreiros, ganhei os mundos, atravessei os matos e, num terreno escondido, bem antes de nascer o sol deixei enterradas algumas sementes de feijão. Uma dúzia, disposta em duas filas de seis covas. Era tudo o que eu tinha. Não me lembro se cheguei a regá-las, talvez tenha feito. O que lembro é ter passado por lá todos os dias, bem cedo, a inspecioná-los – ainda não me haviam posto numa escola. Não semeei copos plásticos com algodão.

O fato é que, alguns dias depois, quando limpava o solo, calculei mal uma enxadada, e a lâmina afundou-se na terra perigosamente próxima à raiz do primeiro pé da fileira da esquerda. Não dei importância. Mas, no outro dia, notei a cor mais clara em suas folhas. Fiquei preocupado. Os dias seguintes foram mostrando por quantas muitas gradações pode passar um verde em caminhar ao cinza. Em cada novo matiz, um novo corte separava um único pé de feijão de outros onze – e isso eu via, ferido cotidianamente por um único golpe que havia desferido. Descobria, pela primeira vez, o sabor de chorar, sem testemunhas, diariamente, por uma coisa misteriosa que não entendia bem, mas compreendia perfeitamente.

Não voltei a pensar nisso. E quase ia me esquecendo.

10.11.09

Um dia acordei com uma coisa por dentro, e a vida não tem mais o gosto de sempre, e as cores das roupas de festa não são belas, e som dos motores roncando não emociona, e os números das conquistas esportivas reduzem-se a números, e as novidades dos telejornais não tocam a consciência, e a travessia coletiva da cidade é movimento para o nada, e a multidão de homens vira peças em amontoado, e as conversas informais são códigos pré-programados, e as informações não informam, e a comédia faz chorar, e a piada não diverte, e as imagens não seduzem, e o comercial não vende, e as escolas não ensinam, hospitais resistem em salvar, e o ritmo do trabalho coletivo de todas as manhãs perdeu seu ritmo, a realidade fez-se única e eterna, e um sono sem sonhos tomou conta do dia, um mundo de cabeça pra baixo. Um dia acordei para a inexistência da humanidade.

9.11.09

Quando ela desceu, esperou que abrisse o portão e entrasse. Com a violência de hoje, nunca é demais esperar que as pessoas estejam em segurança, para então lhes dizermos tchau e ir andando. Inda mais quando também a pessoa é amada, ou com quem a gente faz sexo. Inda mais quando em frente à casa dela tem uma pracinha onde fica um monte de maconheiros do caralho. E ia indo a vida. Mas aconteceu. Mal ela tocava a maçaneta, mal ele seguia andando pelas ruas, apareceu. Um cara vinha correndo, uma faca na mão, um baseado na boca. Na hora que ele cismou de reagir, o cara foi logo dizendo, se você deixar cortar um pedaço desse queijo aí, eu deixo você dar um peguinha no baseado. Beleza, e todo mundo ficou fumando, bebendo vinho e comendo queijo, sob a luz da lua, num céu absurdamente limpo, sem nuvens nem fumaça, na praça.