10.12.10

O mistério e a banalidade

A tecnologia aparece como um mistério e uma banalidade – diz Milton Santos no que foi seu último livro. Reflexo da decadência do homem pós-moderno, subordinado à dinâmica alienante do just in time, surge na era da informação uma contradição do conhecimento. À repugnância pela filosofia, especialmente a filosofia racionalista – aversão dominante nos meios acadêmicos e midiáticos com toda a sua cientificidade –, corresponde um certo tipo de irracionalismo, presente na vida do cidadão comum. Como pode algo ser, simultaneamente, misterioso e banal? Um mistério é o que fascina, e encanta, e seduz (no sentido próprio de conduzir para si), despertando o desejo de conhecer e decodificar e atribuir sentido. Mas não.

As maravilhas que a indústria dia a dia põe a caminho do mercado inundam a vida de jovens que pouco sabem da vida. De celulares a notebooks, de câmeras digitais a videogames via internet, um amontoado de chips e baterias é manipulado e descartado todos os dias, por um lado como a mais vulgar das operações vitais. Por outro lado, como funcionam essas coisas por dentro, de onde vêm, quem as produz, como se fabricam, qual seu significado, em que interferem noutros campos de saber, de quais esferas (inorgânica, biológica, social?) sofrem determinações – são segredos para os quais não há mais investigação. À razão que indaga sucede uma razão que manipula. Talvez por isso em muitas universidades o baricentro vital seja o diploma, não o saber.

Diversos autores têm destacado esta viragem qualitativa da espécie humana, do racionalismo para a razão manipulatória. O ápice do pensamento humano, cuja floração mais evidente é o iluminismo, que frutifica generosamente ainda pelo século XIX, tem hoje seus desdobramentos caracterizados (por livre-docentes escravos das ideologias) como seita anticientífica. E a razão ganha, nesta visão distorcida do mundo, ares de religiosidade. Ciência passa a ser apenas aquela metodologia que não dá respostas universais nem, principalmente, faz perguntas. O abandono da universalidade para a mesquinha visão particularista, bem ao gosto do liberalismo econômico, passa agora a ser a etapa superior da reflexão. Operam-se computadores todos os dias, a toda hora, em todo o mundo que abre e fecha seus windows para o globo, sem que se saiba minimamente o que é isto.

É que o mundo já não interessa. As pessoas são sempre iguais. Porque a vida, também, fez-se o mais banal dos mistérios - para o qual não há explicações, nem perguntas, nem paixões.

5.12.10

Todos se guiam por ideias feitas

Todos se guiam por ideias feitas, receitas de julgamentos, e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão”.

Viva Lima Barreto. Não sei bem por que, não vou muito com a cara do Daniel Piza - acho que veste bem demais a camisa do Estadão, ou sei lá. Também, quando critica Brizola parece vestir a da Globo também. De qualquer maneira, hoje fez uma boa ação. A frase é daquelas que a gente vive a querer expressar, sem saber como, com um medo danado de dizer besteira, parecer bobo, pedante. Mas é um traço de comportamento comum, muito comum. Felizmente, não é de todos, como exagera Barreto. Ou será que é?

Aí é onde mora o diabo, e a gente é sempre tentado a seguir estas receitas prontas, mormente se emanam de autoridade literária mais ou menos consagrada, reproduzida por autoridade jornalística competente. Lima Barreto, cá pra nós, não teve este triste fim todo que Piza desenha, muito exageradamente também. Afinal, há pelo menos uma meia dúzia de escritores brasileiros bons, do século XX, que sucumbem no limbo. Sem contar o quanto de escritor bom que existe por aí, agorinha, ou que pelo menos escreveu nos últimos 30 anos e ninguém ouve falar. Quanto tempo demoraremos para conhecer os grandes escritores do nosso tempo? Não me venham com Chico Buarque para cá. Ele já é bem conhecido, e particularmente: não li nem gostei.

Mesmo entre os já falecidos, quem fala de um José J. Veiga? A hora dos ruminantes é obra amplamente desconhecida. Fernando Sabino cometeu a descortesia de falecer no mesmo dia que Christopher Reeve, e pagou caro, tendo sido esquecido pelo noticiário - e faz tempo não vejo falarem em O grande mentecapto. Lima Barreto, apesar de toda a disputa étnica que os movimentos negros animam, não foi maior que Machado de Assis, nem nunca será, se o critério de valor for apenas o literário. Se levarmos em conta posicionamento político, visão de mundo, etc. etc., aí a coisa pode até mudar. Mas, neste caso, não falamos mais (só) de literatura.

De pé

Levanto os sonolentos olhos
E ando.
O vento da vida levanta a poeira da rua.

Anda o sol do dia que não vejo.
Afinal, é sempre tarde.
Anoitece
Como pó caído aos pés.
De olhos abertos na noite, volto pela mesma rua de cabelos quietos de pó,
Arrastando pés cansados de caminhos.

Ah.
Quando fecharei estes meus olhos.

20.11.10

Robert Michels

A leitura de Robert Michels foi sem dúvida uma das coisas mais importantes deste ano que se acaba. Curiosa a atualidade de sua obra. A Sociologia dos partidos políticos, de 1911, parece contar, em grande medida, a história do PT, do ABC e dos últimos 30 anos de Brasil

MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos: ensaio sobre as tendências oligárquicas na democracia. Trad. Arthur Chandon. Brasília: Ed. UnB, 1982, 4ª parte. [1911]

 Na 2ª  parte ficou dito que: os chefes são estáveis; são remunerados; tem voz (imprensa/parlamento); não caem facilmente; se caem, novos chefes é que o derrubam; tendem a burocracia, a oligopólios. 

4ª parte
Cap. I – Luta de classes desagrega=> burguesia => gera filhos socialistas, que se voltam contra ela.
Cap. II – Os chefes socialistas de origem burguesa são solitários (entre o ódio da classe de origem e desconfiança da classe operária) 

Cap. III – As transformações sociais produzidas pela organização

O aburguesamento dos partidos operários (inclui também sindicatos) – quando novas camadas sociais entram na órbita do Partido – modifica o movimento político. Isto por três razões: 

1 – Pequenos burgueses (por razões eleitorais) são atraídos para o Partido. O Partido precisa, para chegar ao Parlamento, falar para o povo, não só para uma classe. Daí atrai indivíduos de vária origem.

Mas, observando os partidos socialistas, tanto o italiano quanto o alemão ou o francês, vê-se que a proporção de burgueses e pequeno-burgueses é pequena. Na realidade, o aburguesamento deve-se muito mais aos chefes socialistas de origem operária. Estes é que se transformam mais; passam por verdadeira metamorfose. 

2 – A organização cria novos pequeno-burgueses (uma aristocracia operária). Um partido, como o alemão, necessita, porque imenso, de muitos funcionários. Forma-se assim um grande grupo, que passou da experiência de produzir sua vida fazendo trabalho material para a produção de trabalho intelectual.

A elite operária terá vida dura, mas algumas vantagens: conforto, liberdade, dignidade – É preso? O partido ajuda. É perseguido? Mais ascende no partido. Por mais que deva trabalhar muito no Partido, não é mais o empregado subordinado a capatazes no interior de fábricas. 

Uma analogia Partido-Igreja-Exército: este papel do Partido – ser um trampolim social – é semelhante ao papel que já exerceram (e ainda exercem, em dada medida) a Igreja e o Exército. A partir da Contra-Reforma, filhos de camponeses podem se tornar parte do clero – o que antes não acontecia –, garantindo assim outros horizontes de vida. Os filhos da burguesia ascendente prussiana frequentemente entravam para o Exército, para, assim, na qualidade de oficiais, ganhar do imperador títulos de nobreza, posição, respeito – que no XIX só os fidalgos tinham.

No caso do Partido, é difícil que operários que passam por esta transformação social, com grandes implicações no modo como faz sua vida material, é difícil que resistam a mudar suas ideias. Os chefes socialistas de origem burguesa são mais confiáveis neste sentido, e se alteram menos ao entrar no Partido, pois não se deixarão seduzir fáceis por adulações, brindes, armadilhas políticas. Os chefes de origem proletária, porém, mudam. Somente operários “ideólogos” resistem à contaminação do meio. Mas... e a segunda geração: como se comportará?

Ao olhar estas questões parece que são mudanças superficiais (afinal, mesmo um partido grande, atinge uma parcela pequena da população, a seu serviço). De fato, são mudanças superficiais. Mas a superfície aqui tem mais importância que o costume. Estamos falando de self-made leaders. Homens que ocupam posições-chave e aí chegaram após duras lutas. O peso do que são têm reflexos mais profundos. 

3 – A defesa patronal cria pequeno-burgueses.
Para se defender, os operários fazem greves, enfrentam os capitalistas. Os capitalistas, para se defender, demitem empregados-chave. Vai-se formando assim um vasto contingente de proletários mutilados pela luta. Estes, por isso mesmo, logo viram pequeno-burgueses.

Tornam-se comerciantes, camelôs, micro-empresários. E, seus antigos camaradas de trabalho, por um dever de solidariedade, acabam comprando seus produtos. E assim os sustentam. Estes comerciantes vão ocupar um papel chave para o partido: é nestes porões insalubres de seus bares, que as direções locais se reúne, lêem jornais, discutem o movimento.

Na Alemanha, formaram-se associações de taberneiros socialistas (um partido dentro do Partido), que se tornou influente em várias questões. A Liga Berlinense dos Hospedeiros e Hoteleiros Socialistas lutou contra as “casas do povo”, projeto de bares populares, mais salubres, para a classe trabalhadora; foi contra a campanha anti-alcoólica que o Partido queria empreender em 1907, tentando educar seus membros.

Cap. IV – A necessidade de diferenciação na classe operária

Todo operário quer uma existência melhor. Isto causa: 

-Fracionamento da classe trabalhadora em categorias (funcionários de arsenais lutam por uma coisa, os da indústria têxtil por outra, etc.) e entre países (muitas vezes, um operário em um país central vive tão bem quanto um industrial de um país periférico – e, enquanto a Inglaterra avança seu domínio imperial pelo mundo, causando em dadas partes do globo superexploração da classe trabalhadora, os trabalhadores ingleses melhoravam sua condição muito acima da realidade do restante mundo proletário). Certos setores operários ganham mais poder que outros, como por exemplo, os tipógrafos na Alemanha, os lapidadores de diamante na Bélgica, os operários de arsenais militares na Inglaterra ou Itália. 

-Oposição entre categorias da classe trabalhadora: os organizados em Partido (e mais instruídos) exigem dos não-organizados (subempregados, informais etc.) solidadariedade nas greves, nas campanhas por aumento de salário. Mas muitas vezes os não-organizados já estão satisfeitos com as condições, dado terem uma história de sobrevivência em condições sempre piores. Esta solidariedade, exigida pelos organizados, não é, na contrapartida, devolvida aos não-organizados. Assim, os organizados na Alemanha lutam por bolsas de trabalho, seguro-desemprego etc. que beneficiam somente os membros do Partido; na Inglaterra, bloqueiam o ingresso de novos membros com a invenção de pesadas taxas e exigência de certificados de formação profissional; na Itália, formam panelinhas corporativas, como os operários do arsenal de Florença, que passam exigir que somente seus filhos e descendentes possam entrar no ramo.

10.11.10

Dúvida

Parece que só muito recentemente, coisa de duas décadas pra cá, é que veio se solidificando a ideia de que se deve (re)ler Marx. Na verdade, é mais ler que reler, afinal há, por incrível que pareça, textos ainda inéditos. Qualquer leitura sempre vale. Não só para alimentar "ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal", como ontologicamente define José. Mas também para compreender o que somos, e por que até aqui os homens não puderam ir ainda para além do espaço histórico que se convencionou chamar capitalismo. Só responder à primeira pergunta já bastaria para uma existência. Mas, se nem os seres humanos nem as perguntas vivem isolados, as respostas que perseguimos também se conversam.

Pode ser  revelador para nós – agora distantes de tudo – considerar o valor e o peso de uma circunstância especialíssima em torno de um téorico da altura de Lênin, líder da maior das revoluções do séc. XX. Ora, ele não pôde ler as obras da juventude de Marx, só publicadas após 1930. A ideologia alemã, os Manuscritos econômico-filosóficos, talvez nem mesmo os Grundrisse, e com certeza também não os artigos da Nova gazeta renana. É nessa fase inicial de Marx, esquecida pelos seus continuadores, que se avista uma ontologia do ser social; e é nisso que aposta Georg Lukács (1885-1971). Seu recém-lançado no Brasil Prolegômenos... vem reparar um eixo fundamental do pensamento socialista: como se pode querer fazer outra sociedade, outros homens, sem conhecer o que eles efetivamente são? E outras anomalias intelectuais, como achar que a vida resume-se a política econômica, burguesia, proletariado e o reino do capital.

Se foi miserável a realização e a utopia de uma humanidade nova no Leste Europeu, não há dúvida da estreiteza raquítica da humanidade globalizada pelo capital, fixada na ideia de homo sapiens sapiens que hoje se defende e se ensina: irracionalista, nega aquilo que lhe faz singular na natureza; individualista, imagina-se produto e fábrica só de si, em si e para si; divina mercadoria que circula – compra, aluga, aliena sua vida e, sem perceber, vai vendendo suas horas sem vivê-las; cidadão do mundo sem aldeia, pós-moderno sem passado nem futuro, consumidor do presente – realiza-se no mercado digital e mede-se a dinheiro. Nem nas atuais democracias liberais, e nem mesmo em nenhum país comunista do século XX, se fugiu a esta moldura histórica de existência, pensamento e ação. Deveria outra vez intitular-se Homo faber.

Rosa Luxemburgo bem que tentou avisar dos erros que cometia a Rússia bolchevique, restringindo liberdades, amputando sovietes, saciando a fome de terra dos camponeses. A questão é: se Lênin não tivesse sido tão preconceituoso quanto ao conceito de ontologia – entendido como o estudo daquilo que é –, o século XX teria sido o que foi?

9.11.10

Dos jornais

Hoje, na Folha, Frederico Vasconcelos, jornalisticou que "Bancos estatais patrocinam evento de juízes em resort". Em suma:

Encontro na Bahia terá palestras, oficinas de golfe e arco e flecha, jantar e show

Cada magistrado desembolsará apenas R$ 750. Terá todas as despesas pagas, exceto passagens aéreas, e poderá ocupar, de quarta-feira a sábado, apartamentos de luxo e bangalôs cujas diárias variam de R$ 900 a R$ 4.000.

 A diferença deverá ser coberta por Caixa Econômica Federal (com patrocínio de R$ 280 mil), Banco do Brasil (R$ 100 mil), Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes (R$ 60 mil), Souza Cruz, Eletrobras e Etco (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial).

********

1. O Sindicato dos combustíveis justificou que "busca aproximação com juízes para dar esclarecimentos a respeito de ações de empresas que contestam na Justiça normas da ANP [Agência Nacional do Petróleo] e desequilibram o mercado."

Hã. Uma dose admirável de cinismo, leve e moderado.

2. O Etco, por sua vez, "entende como importante apoiar iniciativas que visem a melhoria dos serviços judiciários no país".

Ah, então tá bom.

3. A Souza Cruz: o patrocínio, "feito em plena conformidade com a lei, tem o objetivo de contribuir com o debate do pensamento jurídico nacional".

Hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahah!

Só rindo. Esses caras são engraçados.

31.10.10

Outros cadernos

A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.
José Saramago





Durante a Semana de ciências sociais da FSA, numa roda de conversa sobre José Saramago, a poeta Dalila Teles Veras falou sobre a vasta produção do português ganhador do Nobel, difusa por livros, jornais e até blogs. E destacou que por agora, post mortem, emerge um outro José Saramago, em doses homeopáticas.

Em substituição ao antigo O caderno de Saramago, surgem Outros cadernos de Saramago.

Todos os dias, um competente funcionário da Fundação que leva o seu nome vasculha a vasta produção do autor e de lá retira uma pílula de lucidez, que, recomenda a poeta, deveríamos tomar todos, todos os dias pela manhã, a fim de ganhar força para enfrentar o dia e a vida. Como esta que estava lá hoje, a respeito da morte.

27.10.10

Meu voto

Andei preocupado toda a semana com o fato de que não havia definido ainda meu voto: nulo ou Dilma. E ainda agora duvido. O certo é que não voto em Serra, tanto por suas conversas, quanto por suas ideias, cada vez piores. A favor de Dilma, pesa isto que disse Singer, e também isso que diz a história. Mas as conversas inocentes, sei bem que não são privilégio de José Serra e Joaquim Roriz. E com todas as limitações do governo Lula-Dilma-PT, e do sistema representativo, e desta tão falsa democracia liberal que temos, limitações amplamente conhecidas na órbita do modelo social problemático que a história nos deixou – o voto nulo aparece como uma opção justa.

De qualquer modo, o que bem pouco tem aparecido, e isso quase passou despercebido, é que na verdade, no embate Serra-Dilma, está claramente posto um embate entre neoliberalismo, de um lado, e do outro uma mistura varguismo-desenvolvimentismo-neoliberalismo, com estado forte, se é que é possível. A segunda opção aparece como menos pior, no sentido de que privatizações, pedágios, sucateamento de educação e saúde, estado mínimo, marcas evidentes do Consenso de Washington, não devem ser ampliadas. Com Serra, tudo é possível, e vale recordar o que foi a disputa pelo governo paulista, com Mercadante criticando a política mercantil de Alckmin para as rodovias, e este defendendo-a corajosamente. E ganhou a eleição em primeiro turno, sem uma proposta minimamente revolucionária para a educação em São Paulo. Parece que a sociedade inteira jogou a toalha, e todos passaram a aceitar a falência do ensino público. Como chegamos a isso? E onde chegamos... O que pode mostrar que o pensamento neoliberal fincou raízes no eleitorado paulista - que não vê nada melhor além disso, uma pena, deus...

De todo modo, votando nulo ou em Dilma, uma coisa pra mim vem ficando bem claro. Voto, de qualquer tipo, quer dizer muito pouco. As opções entre candidatos são muito parecidas. Intervém talvez mais na política, contribui mais para corrigir a direção de um povo, é mais senhor de si e da sua liberdade - não aquele que vota. Mas aquele que critica, conversa, convence, é convencido, organiza grupos, greves (ou as desaconselha, quando pareçam porralouquice), reconhece as muitas formas de opressão e faz algo, lê jornais (e duvida deles, e faz outros duvidarem também), estuda, age, vai ao extremo possível do radicalismo quando é preciso - e pode haver momentos em que este extremo não é sair às ruas, mas ficar em casa; não estar em grupos, mas estar sozinho. Inventar coisas úteis para a humanidade pode ser tão útil quanto pensar nelas. Isto tudo, esta perspectiva, creio que importa muito mais. Figuras que pensaram assim povoam os livros mesmo da história recente, e não consta que seus votos pessoais tenham tido tanta importância. Importa mais uma página que Paulo Freire escreveu do que todos os votos que tenha dado. É isto que penso ser o significado de dizer que há política além das urnas.

Se por acaso decidir ir à praia no domingo e não votar, certamente estarei de volta na segunda. E hei de trabalhar toda a semana, meses, anos. E esta vida diária, falada, ouvida, conversada, sentida, chorada, decidida, feita e retransformada todos os dias - tem muito mais valor.

26.10.10

1964

Como vimos, os dogmas do  ideário de 1964 objetivam o resguardo da ordem, no sentido de conservação das estruturas essenciais do capitalismo, de preservação dos valores da ordem, da família, da propriedade e da religião cristã.  Sob este Signo, Vencerás! Assim, o bonapartismo da contra-revolução das classes dominantes uniu-se contra o “perigo vermelho”. Trata-se, em nosso caso, de desorganizar as ações de massas que se enquadravam num programa de reformas democráticas, de talhe nacional e popular, a fim de impulsionar e promover a consolidação do capitalismo subordinado, como a melhor forma de combater o comunismo. A recusa ao comunismo e a adesão ao princípio social da propriedade privada como o vetor básico do convívio social, na visão da autocracia burguesa bonapartista, está pressuposta no caráter utópico de toda negação do capitalismo. Nas concepções de Geisel, o comunismo é irrealizável porque esbarra na própria condição humana:

É uma utopia principalmente porque não considera as peculiaridades da natureza humana, que fazem do homem um eterno insatisfeito, querendo sempre mais e, na generalidade das situações, não levando em conta o bem dos seus semelhantes. Muitos não pensam assim e se deixavam levar pela doutrina comunista, aparentemente igualitária. Outros foram comunistas por recalques, por insucessos da vida, por frustrações. Quando o comunista está convencido do acerto da sua doutrina, não há ninguém que o convença do contrário. É uma doença incurável.
[GEISEL apud D’ARAUJO, M. C.; CASTRO, C. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 145-146.]

 
Ora, segundo a posição anticomunista, o perigo de esta “doença incurável” se propagar residia na própria situação miserável vivida pela maioria da população, pois, sendo assim, ela é, ao menos virtualmente/potencialmente, transformada em presa fácil da manipulação dos comunistas. A sua influência deriva, assim, da própria realidade nacional, como produto do seu atraso, das doenças, do analfabetismo, do problema social, do egoísmo das classes dominantes, da má distribuição de renda.

RAGO FILHO, Antônio. "Sob este signo, vencerás! A estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista." In: Cad. AEL, v.8, n.14/15, 2001, p. 182-3.

11.10.10

Semana de ciências sociais - 25 a 30/10

A Fundação Santo André resolveu fazer sua semana de ciências sociais em parceria com a PUC e a Cásper Líbero. Clique aqui para ver as conferências e seus respectivos palestrantes, cronograma, endereço etc. Divulgo aqui sua filipeta com a chamada para o vestibular, contrariando um preceito meu, que deriva do ódio mortal de publicidade em blogs. Afinal, a blogosfera deveria ser mais sensível à nossa existência desgraçada, e nos poupar das garras publicitárias do mercado ao menos por aqui. De resto, ajudar a vender a alguém um curso de sociologia de 400 reais é ser, no mínimo, sacana.

Porém, abro uma exceção, pela singularidade do produto, dos mais dialéticos que já vi. Isto é menos uma publicidade e mais um estudo de caso, exposto à curiosidade pública. A mercadoria em questão sofre de contradictio in adjecto: quer continuar sendo o que é, quando não há mais mercado que a realize.

Debate na Band

É engraçado o debate: Dilma reclama do uso rasteiro que Serra fez do tema do aborto, mas usa de maneira igualmente rasteira a questão das privatizações. É difícil libertar-se do estigma que a esquerda colou nas estatais privatizadas. Mas as estatais não necessariamente são boas. Cada caso é único.

Privatizar a Petrobras seria, considerando o papel estratégico do petróleo para a indústria, abrir mão do controle do Estado sobre o capitalismo. Um erro! Em suma, petróleo não se privatiza; é a matéria-prima de todas as matérias-primas. Também é justo que se indigne com a venda da Vale do Rio Doce a preço de banana. Mas pode-se parar por aí. O capital estatal nunca teria como ampliar e baratear o custo e o atendimento da telefonia fixa, como, por exemplo, a Telefonica fez em São Paulo. Ok, agora bilhões e bilhões saem do país para a sede da multinacional na Espanha, mas o serviço ao cidadão melhorou bastante. Esta melhora só pôde acontecer porque o capital privado concorrencial apareceu e fez o que normalmente faz, aumentando a parcela constante (máquinas, equipamentos, informatização) e chicoteando a parcela variável (trabalho) da composição orgânica do capital. Aumentou a exploração da força de trabalho, rebaixou salários de técnicos, precarizou a situação do trabalhador - é verdade. Mas expandiu os postos de trabalho no setor e investiu pesadamente em capital constante, universalizando a linha telefônica muito antes de a classe pobre ter celular - e isto também é verdade. Desenvolveu-se um setor pouco desenvolvido, criou-se riqueza, e isto é bom: agora, quando o povo se levantar para tomar o que é seu, haverá realmente o que socializar.

O que se decide na questão das estatais é entre duas alternativas: se vai se extrair mais mais-valia, com o capital privado, ou menos mais-valia, com o capital estatal. De qualquer modo, o caminho pró-estatização, tão defendido por setores do PT, não abole a mais-valia, nem caminha para o socialismo, como se iludem alguns. Pelo contrário, é bem possível que entrave, na medida em que o capital estagnado das estatais, não concorrencial, não desenvolve forças produtivas, não se obriga a expandir-se, nem sequer forma proletariado significativo. Num país como o nosso, especialmente como o que FHC herdou de Collor, era talvez necessário redizer o que disse Lênin sobre o estado da Rússia no começo do século passado: "Aqui, o povo não sofre com o capitalismo; sofremos pela falta dele." Fazer socialismo com isso, a história mostrou como é.

Não podemos nos queixar de tudo. Se houve uma coisa sincera no debate, foi dita por Serra, a respeito da Dilma: "Estou surpreso com tanta agressividade." É bom que tenha ficado, assim empatamos. Porque, se com a questão das estatais podemos fazer todo esse arrazoado, a respeito do aborto não há o que dizer: a rasteirice serrista, por resvalar no obscurantismo, é muito superior (ou inferior?) à reação da candidata do governo. E surpreende justamente por vir do partido que sempre se declarou desideologizado, técnico, moderno, racional.

6.10.10

Dois pesos...

Alguém concorda comigo. Era exatamente isso! Vou lembrar de ficar tranquilo da próxima vez. É só esperar: alguém com mais capacidade acaba vindo e dizendo melhor e mais bonito.

5.10.10

Conversas inocentes

Engraçado. De repente, a lama escura da política ficou mais clara.

1 - Primeiro, Joaquim Roriz é barrado pelo Ficha Limpa, e tenta recurso no TRE. Perde, e o caso vai ao Supremo Tribunal Federal. Preocupado com o resultado, procura tirar do caso o juiz Carlos Ayres Brito, cujo genro é Adriano Borges. Roriz procura este último e, numa inocente conversa, pede que o defenda. Isto faria com que, no momento do julgamento, Brito fosse obrigado a declarar-se impedido de votar. Ao negociar as cláusulas do contrato de defesa, situação que vaza em vídeo na imprensa (Folha, 01/10), Roriz comenta que com a saída de Brito o caso está ganho, sugerindo que já sabia de antemão que teria favoráveis a si os votos de Gilmar Mendes, José Antonio Dias Toffoli, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cesar Peluso. O genro (em quem Brito não mais confia, segundo confidências que fez a amigos) não vê problema algum na negociação, e quer ganhar 1 milhão. Roriz acha caro. O contrato acabou não se firmando, Adriano Borges não entrou na jogada e Brito desimpedido teve atuação destacada no julgamento, empatando a votação em 5 a 5, com seu voto pró-ficha limpa. E, assim, impediu que se derrubasse de vez o cadáver semivivo do projeto de lei popular. Que ficou pra ser enterrado ou ressuscitado só Deus sabe quando - tendo nisso destino muito pior que o de Lázaro, que não consta nas escrituras ter passado por esta desgraçada condição de alma não nascida, à espera do Salvador.

2- Joaquim Roriz, preocupado com eventual desfecho ruim, troca de lugar com a mulher, Weslian Roriz. A candidata, nos debates, não apresenta proposta alguma, responde para tudo que montará "uma assessoria técnica", chama o oponente Agnelo de Agnaldo, diz que vai "defender a corrupção" e, uma vez eleita, quem mandará será ela, embora possa ser "orientada" pelo marido. Em suma, é uma pobre pessoa que mal sabe o que faz, e o que fazem dela. Demonstrou ser incompetente na arte, hoje disseminada, de se deixar manipular por marqueteiros – mas tal ato nobre foi involuntário.


3 - Enquanto isso, na Sala de Justiça, o PT percebe que deu um tiro no pé: ano passado ajudou a aprovar uma lei que prejudica a votação em Dilma. A lei exige inocentemente, na hora de votar, dois documentos a brasileiros, incluindo nordestinos que mal têm o que comer. Então, o partido entrou com recurso contra si próprio no STF. A Suprema Corte faz o que dela se espera, a votação avança e vai derrubando o obstáculo injustificável ao voto do subproletariado. Então, Serra liga para Gilmar Mendes e os dois conversam inocentemente, como informou a Folha em 30/09. Mendes, imediatamente, embora já estivesse numericamente derrotado, pede vistas do processo, adiando a decisão por tempo indeterminado e deixando muita gente de cabelo em pé. No dia seguinte, finalmente, Mendes vota, e a novela acaba.

Conclusão: 1 - Ricardo Lewandovski, Carlos Ayres Brito, Carmén Lúcia, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa não são comprados de Roriz. 2 - Tirica está longe de ser o pior da eleição em 2010 – talvez seja um dos melhores, tendo por único defeito não saber ler. 3 - Gilmar Mendes parece ter um círculo de amizades bastante amplo, de José Serra a Joaquim Roriz, e a amplitude de seu círculo social parece proporcional à do seu cinismo.

30.9.10

Tese, antítese e a síntese do Paulo Skaf

Um professor meu certa vez declarou que alguma coisa aconteceu quando se transplantaram certas ideias da Europa para o Brasil. Alguma coisa aconteceu no caminho ou na aclimatação à terra brasilis, porque nem liberalismo nem socialismo – diferentes (e, em certo sentido, antípodas) projetos de sociabilidade humana – chegaram inteiros por aqui. Alguma coisa ficou perdida pelo Atlântico.

O tempo passou. E nesta campanha eleitoral saiu candidato a governador Paulo Skaf, o presidente da Fiesp. Pelo PSB. Será que em algum outro lugar do mundo um candidato da órbita liberal apresenta-se em um partido que se nomeia socialista? O fato é que Skaf, em março deste ano, sentiu-se talvez constrangido a explicar como sua personalidade burguesa poderia conviver com tais correligionários marxistas, talvez ainda mais constrangidos em apoiar um candidato com patrimônio declarado de 11 milhões de reais. Afinal, como alguém proprietário de uma casa e uma empresa (com valor de três milhões cada) pode ser socialista, num mundo onde um sexto é miserável? Skaf tentou explicar. E escreveu no começo do ano um texto em que explicava que agora capital e trabalho não mais se opõem como antes; agora, podem caminhar até juntos.

Levei o artigo, publicado no Diário do Grande ABC, ao referido professor, e fizemos a exegese do texto. Só por diversão. Clique na imagem para ampliar.

23.9.10

Futebol + culinária = jogo político

Ontem vim mais cedo pra casa, e jantei assistindo Santos e Corinthians pela Globo, um tanto preocupado com quebras de hierarquia que fazem atacantes demitir técnicos. Vitória alvinegra! E no finalzinho ainda vi, de extra, o Petkovic marcar o gol do Flamengo contra o Grêmio. Nem sabia que o iugoslavo ainda jogava! É, tenho de reconhecer que, mesmo sendo essa fonte grandiosa de alienação, o futebol – apesar de pontapés, filhadaputices do Neymar, demissões de treinadores e capitalismo em geral – ainda encanta. E o Pet também – diferentemente do Neymar, dentro e fora de campo.

Embora com a ideia dominante, tanto veiculada pela Rede Globo, de que a sociedade global está belezinha, o capitalismo é bom e o comunismo, um mal que a humanidade extirpou graças a deus – há controvérsias. E gente de valor ainda diz o contrário. Poucos, mas os melhores, diria Lenin.

O caso é que, tempos atrás, Ana Maria Braga recebeu em seu programa matinal o Pet. A banalidade com que estas mulheres cozinham na TV todos os dias faz que, não só os comeres, como elas próprias, se apresentem cada vez mais insossas e amarelas, de maneira que a apresentadora necessita sempre do colorido de um papagaio e de um convidado que dê sabor ao ambiente. Como faz costumeiramente, exibiu sua visão de mundo a partir da cozinha, isto é, a cozinha da aristocracia assalariada, classe média mais ou menos abastada. E, depois de fazer um tratado histórico, político e geográfico típico da Globo, questionou ao atacante como tinha sido viver num país tão cheio de problema como a Iugoslávia. A resposta é, no mínimo, inusitada.

18.9.10

Um comercial da Petrobras



 [...] Para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens.
Karl Marx
 
Em 1867, só uma analogia como esta poderia explicar a ideia de relações sociais entre coisas e relações reificadas entre pessoas. Afinal, ainda não havia comerciais da Petrobras. O sonho de consumo do seu carro foi descrito por alguns amigos ontem. Eu ainda não tinha visto, mas fiquei tão impressionado, que logo que pude corri para vê-lo com meus próprios olhos. As imagens confirmaram o que as palavras me fizeram pensar. Que coisa fantástica! José Saramago, pouco antes de morrer, havia dito que Marx nunca esteve tão certo como agora. Agora, o comercial, involuntariamente, sem saber traduz em imagens uma ideia que o filósofo alemão verbalizou na escrita, e reiterou continuadamente, a ponto de convertê-la num pilar de seu pensamento:

[Em relação aos homens] seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las.

No dia 1º de maio de 1890, em Londres, Friedrich Engels escrevia o prefácio a uma nova edição alemã do Manifesto comunista. Estava empolgadíssimo com o crescente movimento proletário e fazia uma rápida restrospectiva: " 'Proletários de todos os países, uni-vos!' Somente algumas vozes responderam quando lançamos estas palavras ao mundo, há quarenta e dois anos (...)". "Entretanto, a 28 de setembro de 1864, proletários da maior parte dos países da Europa Ocidental reuniram-se na Associação Internacional dos Trabalhadores (...)". "No momento em que escrevo estas linhas, o proletariado europeu e americano passa em revista as suas forças, mobilizadas pela primeira vez num único exército, sob uma única bandeira e por um único objetivo imediato: a fixação legal da jornada de trabalho de oito horas (...)".

Ao final, recordava o companheiro morto há sete anos: "Ah! estivesse Marx a meu lado para ver isso com seus próprios olhos!"

Que ninguém duvide da força da linguagem, especialmente esta linguagem verbal, cujos criadores, os homens, em dado estágio da história elevaram a uma forma duradoura e grandiloquente: a escrita. Hoje, 120 anos depois daquele prefácio, nem Marx nem Engels precisam estar vivos para ver o mundo. Eles continuam a enxergá-lo, agora, por nossos olhos. É bem verdade que a classe trabalhadora é hoje diversa e as perspectivas humanas nunca foram tão pobres, tanto prática quanto teoricamente, em contraste com um século XIX tão rico. Conquistamos as oito horas de trabalho e paramos nisso (sem perceber que levamos cada vez mais trabalho pra casa). Mastigamos ainda talvez os efeitos do XX, este século tão desastroso em tantos sentidos.

Se a perspectiva de um mundo socialista é cada vez menor, se a humanidade cessou de buscar a emancipação humana, se está ausente a figura revolucionária – mesmo que no país mais rico aumentem os pobres e no resto do mundo a miséria e a fome atinjam 1 bilhão –, de modo algum a leitura marxiana do capitalismo era errada. Este olhar do carro para o posto de gasolina foi perfeitamente previsto, no primeiro capítulo do Capital:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características objetivas dos próprios produtos de trabalho como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

 
Ninguém conheceu tão bem o capitalismo e suas possibilidades quanto Karl Marx. A realidade mesma está a mostrar isso, todos os dias. O que escrevemos aqui... ora, está muito aquém do que escrevia Engels. Ele não só reconhecia o mérito intelectual do amigo, como também via, na prática, a força criativa e transformadora das pessoas, buscando forjar relações sociais novas, ainda mais justas. Hoje, temos muito menos.


Também, que esperar de um mundo onde comunistas, tão logo tomam o poder, implantam ditaduras sobre o proletariado em lugar de ditaduras do proletariado sobre a burguesia? Que esperar de projetos socialistas que não souberam nunca, porque não tentaram, conviver com democracia de trabalhadores? A resposta, e o resultado destes fracassos, é simples: um mundo de ditaduras de coisas sobre pessoas.

Por isso, aos [produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.

Um mundo onde as mercadorias têm sonhos próprios à sua espécie, e seus donos não.

10.9.10

Sobre a arrogância - II


Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim
 Saramago, Ensaio sobre a lucidez.


E fui andando, dizendo a mim mesmo que precisava de trabalho, dinheiro etc.

Mas ia indo contrafeito. Eles não podiam fazer isso comigo: não deviam fazer isso com ninguém! E o nosso tempo livre, quem se arroga o direito de manobrá-lo como bem entende? E eu tenho compromissos... tenho aulas à noite. Está certo que hoje não haveria nada, ia ficar em casa lendo Flaubert. Mas... e se eu morrer semana que vem e nunca mais puder ler Flaubert? Flaubert era mais importante que qualquer outra coisa – e roubaram-me descaradamente. Olhei o relógio e notei um atraso de 30 minutos. Maldição! Odeio atrasos. Culpei-me por não sair mais cedo de casa. Pensei que, se pontual, àquela hora já estaria com políticos gordos e risonhos, sentados à mesa, num ambiente abafado, cadeiras encostando na gente, pessoas apertadas, mal-estar, discursos os mais cretinos e sorrisos os mais falsos, completa separação entre realidade e pensamento, atenção forçada, bocejos e whisky quente... Devia ir em frente, mas virei à esquerda; dei uma, duas voltas no quarteirão. Não podia ir.

Não ia. Já estava a uns quatro quarteirões, mas... ora, amanhã entraria na sala da chefe e diria com todas as letras por que não fui! Escute aqui, dona Fulana, achei autoritária a natureza do convite, que não oferecia a opção não, perniciosa a seleção de destinatários, que eram somente os com cargo de confiança, para não falar da perversidade do uso do pessoal público para fins partidários, prejudicial à liberdade política do indivíduo e nociva à sociedade em geral. Provavelmente, achar-me-iam um ingrato, que assim paga os favores passados, sujeitinho, só olha para o próprio umbigo, você viu?, fica de olho nele... Paciência. Estava resolvido. Entrei num franz café e passei o resto da noite lendo Madame Bovary. E fui dormir inteiro, reconciliado comigo e com a physis.

No dia seguinte, fechei o semblante e passei o dia armado, deliciosamente em guerra, esperando a primeira pergunta a respeito. Passou o dia e chegou a noite nova, e iniciou-se outro dia, e findou uma semana. É já sexta-feira. E ninguém pergunta nada.

8.9.10

Sobre a arrogância

Devo ter superestimado minha integridade moral, pois, mesmo sem saber para o que era convidado, em um belo entardecer de setembro, quando queria dizer não, disse sim.

Tudo começou no início de 2010, quando, funcionário público municipal que era, aceitei acumular às minhas funções ordinárias uma função "comissionada", uma espécie de cargo de confiança infinitesimal, de quase nenhum valor profissional, mas que, enfim, trazia alguma compensação financeira. Nem atentei que se tratava de ano eleitoral. O castigo veio devagar, subterrâneo como o passar dos meses. E na semana passada, enquanto almoçava, ouvi de uma colega em situação similar o comentário: "Nosso cargo é político, infelizmente. Semana que vem, por exemplo, v. vai ter que ir a uma reunião que não quer." Ri-me dela. Falava com uma naturalidade que me chocou. Ouvi sem dar importância, um pouco ferido pelo descaso com que tratavam meu livre-arbítrio. Hoje, pela manhã, outro colega explicou: "Hoje o prefeito faz aquela reunião de apoio ao candidato a governador." "Você vai?", perguntei. "Sim, vou, Fulano de Tal me pediu, e eu antes já lhe pedi tantas coisas. Sacumé?" Dei de ombros. Cada um sabe de si. E fingi que não sabia de nada ou, se muito, fazia parte de uma grande brincadeira. Parecia uma brincadeira! Ora, então um prefeito de um grande centro urbano lá vai convocar servidor público para apoiar seu candidato de preferência?! Era só o que faltava!

Ao fim da tarde, recebi uma ligação perguntando se eu ia. E caiu a ficha: a coisa era séria. Enquanto falava fui me lembrando de um programa da CBN dias atrás, no qual Max Gehringer lia a carta de um ouvinte reclamando que na empresa onde trabalhava, no interior, os patrões apoiam um candidato e coagem os empregados a fazer campanha política favorável, com a gota d'água de o empregado em questão não gostar do candidato apoiado. Max Gehringer concluía dizendo ser este um caso em que todo mundo sabe o que fazer, mas do qual ninguém quer fazer parte. Achei vergonhosa a reclamação e cínica a conclusão. Vergonhosa a falta de coragem do reclamante em não se levantar, em não enfrentar tão grande indignidade, em omitir os nomes dos bois, mal denunciando, assim tão timidamente, semelhante canalhice eleitoral e, sem dúvida, de opressão do capital sobre o trabalho. Cínica a conclusão do locutor, que se absteve de qualquer crítica a podridão da moderna sociedade brasileira, tão caduca e rebaixada, e delegou às consciências individuais o papel ativo, como se fosse um problema de natureza puramente privada, e não pública. E agora me via numa situação que ansiei por passar, para provar que comigo não, que é facílimo resolver o caso, que o que falta é um pouco de coragem e menos cinismo.

Por algum tempo a recordação deste fato radiofônico masturbou-me o ego com a destreza de uma puta, que eu procurava sempre que tinha vontade de me amar e ser feliz. Até este outro dia, quando, ao ser perguntado se ia – a lugar desconhecido, a evento de natureza  ignorada, a reunião de objetivos obscuros, temperados pela lama fedorenta da propaganda eleitoral –, respondi automaticamente que sim. Compreendia epifanicamente o ouvinte, o locutor, meus colegas, meus irmãos. E fui andando, dizendo a mim mesmo que, até então, tinha sido radical demais.

20.8.10

O caso brasileiro no contexto do lulismo

Agora, com as eleições, começou a aparecer uma fala, interessantíssima, que é mais ou menos a seguinte: "gente, o Lula fez um mal danado ao país... vocês não sabem como está o nordeste, com a bolsa-família... ninguém quer mais trabalhar... aqui [sudeste], 100 reais não é nada, mas lá... um erro, um erro..." Não é preciso esticar muito o cérebro para perceber o duplo grau de miséria. Em que nível de desenvolvimento socioeconômicocultural está um lugar no qual 100 reais a mais no orçamento familiar causa a alegria de uns e a raiva de outros? Esta reação da classe média paulistana não só mostra a miséria material da população de baixíssima renda do norte e nordeste, como também a miséria espiritual das classes urbanas do sul. De onde vem isso, afinal?

São muitos os escritos sobre o caráter retrógrado da sociedade brasileira. Fala-se especialmente do pensamento atrasado da elite dirigente, da classe dominante. Vai-se ao limite de dizer que é marca do Brasil "uma burguesia especialmente despojada de 'ilusões humanitárias' " [1, aspas do autor]. Ora, mas o que seriam ilusões? Uma tentativa fracassada de "ilusão humanitária", acontecida no declínio da ditadura militar, talvez indique algumas raízes desta anomalia das Américas.

Em 1976, quando o milagre econômico da ditadura acabou, e foi ficando difícil os generais continuarem no poder, o senador fluminense Saturnino Braga, do MDB, criticava a política das exportações. Não que fosse mal exportar, mal era o ponto até onde foi o governo militar, dando "uma soma tão grande de incentivos - isenção de IPI, isenção do ICM, crédito do IPI, financiamento a juros subsidiados e outros - imposto de renda, também, que muitos economistas nossos sustentam que estamos vendendo [nossa produção] a preços inferiores aos custos internos de produção, subsidiando, portanto, o consumo de outras nações" [2, itálico meu]. Quando li este final de frase pela primeira vez, não acreditei no absurdo, que dificilmente se configura em nossa mente. Monstruosidades semelhantes já tinham levado em 2003 o sociólogo Francisco de Oliveira a apelidar o Brasil de ornitorrinco. A proposta de ruptura do ciclo é ainda hoje um tanto familiar: implantar e fazer crescer a indústria de base, de bens de capital - numa palavra, dos bens de produção. As dificuldades também eram as mesmas: fabricar equipamentos requer investir em tecnologias modernas e complexas - coisa que, naquele momento, só as multinacionais tinham. Aí o absurdo da dependência estrangeira já fica mais fácil de entender.

A proposta, a mais humana possível ali, era simples: abandonar esse modelo econômico voltado pra fora (e socialmente injusto),  por um modelo econômico voltado pra dentro. Como? Deixando de subsidiar bens de consumo duráveis (automóveis). Disso resultariam "os mesmos empregos, certamente em maior quantidade, os mesmos salários e impostos poderiam resultar do desenvolvimento maior de outras indústrias - alimentação, tecidos, confecção, calçados, mobiliário etc. que atenderiam às necessidades não de cinco milhões mas de 110 milhões de brasileiros." [3] Era isto: em meados da década de 1970, apenas 4,5% da população comprava carros; o resto não comprava comida nem livros. E, no entanto, as multinacionais eram o centro da economia. É claro que a proposta de Saturnino Braga perdeu. E ela só era humana, não tinha nada de revolucionária: era humanamente burguesa. Ela mostra uma das muitas derrotas que sofreu a parcela da burguesia nacional comprometida com um projeto de nação, feita por cidadãos, com necessidades atendidas e oportunidades para todos. E o Brasil continuou injusto, dependente, exportador, voltado pra fora etc. etc. Sobre as costas de cada pequeno brasileiro, ainda que em formação no ventre das mães, pesava, especialmente neste período, a obrigação de financiar o consumo externo, na forma de privações alimentares ou médicas. Por quê?

Uma das respostas tem a ver com o modo como vemos o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Quer dizer, há uma via única ou vários caminhos pelos quais cada país desenvolve o capitalismo? José Chasin apostou na última aternativa, distiguindo o caso brasileiro da via alemã (ou via prussiana), por onde também passa o caso russo, o japonês, o italiano, que já eram tardios, se comparados com Inglaterra e França (a via clássica) ou mesmo EUA. E, particularizando ainda mais o caminho brasileiro, chama-lhe via colonial. É bem parecido com o caso alemão, que Marx não se cansava de chamar miséria alemã (terreno fértil para o nazismo do século seguinte), porém com uma diferença: "o 'verdadeiro capitalismo' alemão é tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de hiper-tardio, é caudatário das economias centrais." [4, aspas e itálico do autor]

Ora, como é a via clássica ou norte-americana de desenvolvimento do capitalismo? Ela acontece de maneira rápida, por meio de revoluções nas quais a burguesia derruba com violência o velho (as relações de produção feudais ou, no caso norte-americano, talvez algum pacto colonial e, ainda, mais tarde, quem sabe, na guerra de secessão, o escravismo, que opunha estados do norte e do sul) e logo põe em seu lugar o novo (relações entre capital e trabalho assalariado). No entanto, o desenvolvimento pela via prussiana, ou russa, é lento: aqui, o novo faz alianças com o velho. Isto é, enquanto na França uma burguesia violenta faz os nobres perderem, além da cabeça, também as terras, na Alemanha a nobreza fundiária é quem vai se convertendo lentamente em burguesia, com toda a sorte de privações, desgraças e explorações sobre a massa camponesa/operária. Em suma, a via clássica traz um grande progresso social; a via tardia gera um grande custo social. É assim que José Chasin observa o caso brasileiro: embora tenha aspectos comuns à via prussiana, tem também suas singularidades.

Observação que nos conduz, portanto, à constatação não mais apenas de uma única forma particular de constituição não clássica do capitalismo, mas a mais de uma. No caso concreto, cremos se está perfeitamente autorizado a identificar duas, de tal sorte que temos, acolhíveis sob o universal das formas não clássicas de objetivação do capitalismo, a forma particular do caminho prussiano, e um outro particular, próprio aos países, ou pelo menos a alguns países (questão a ser concretamente verificada) de extração colonial. De maneira que ficam distinguidos, neste universal das formas não clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular para o progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que, conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é, nem se põe como o mesmo. [5, grifos do autor]

A partir da proposta do senador emedebista, para uma perspetiva mais ampla em termos de história, acrescente-se o seguinte:

Numa formulação mais do que esquemática, fácil é observar o caráter hiper-tardio da entificação histórica do capital industrial no Brasil. Bastaria referir que até a atualidade este processo não se completou, haja vista que a grande questão que, hoje, torna a se pôr (e que data de suas origens), é a da produção de bens de produção. Bastaria também lembrar que a industrialização, nas fronteiras nacionais, atravessou toda a primeira metade deste século em tentativas e contramarchas que não lograram ultrapassar o nível de incipiência. Considerados, pois, os casos clássicos de objetivação do modo de produção especificamente capitalista (Inglaterra, França), em face dos quais a industrialização alemã e a italiana já são tardias (datando das últimas décadas do século passado), a industrialização brasileira é hiper-tardia. [6, grifos do autor]

É preciso que o leitor, conforme adverte o autor, não leia esta diferenciação apenas cronologicamente, mas historicamente, isto é, com todas as implicações que a demora traz para a classe empresarial brasileira, entre elas, ter de enfrentar trabalhadores já maduros em luta de classes e ainda concorrer com potências industriais, numa difícil luta tanto contra o trabalho como contra os outros capitais.

Enquanto a industrialização tardia se efetiva num quadro histórico em que o proletariado já travou suas primeiras batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios coloniais já se configurou, a industrialização hiper-tardia se realiza já no quadro da acumulação monopolista avançada, no tempo em que guerras imperialistas já foram travadas, e numa configuração mundial em que a perspectiva do trabalho já se materializou na ocupação do poder de estado em parcela das unidades nacionais que compõem o conjunto internacional. Ainda mais, a industrialização tardia, apesar de retardatária, é autônoma, enquanto a híper-tardia, além de seu atraso no tempo, dando-se em países de extração colonial, é realizada sem que estes tenham deixado de ser subordinados das economias centrais. [7]

Deste processo, pode-se imaginar o que resulta: burguesia covarde e proletariado superexplorado (além do que seria a exploração normal). Ressalte-se o caráter débil da primeira em se construir sobre o esqueleto da economia agroexportadora, que "exportava seu excedente", descartando portanto "uma acumulação que se cristalizasse na máquina". [8] As consequências são patéticas.

A burguesia industrial brasileira teve que se contentar com fatias de reinado no colegiado dos pactos, e acumular sob a proteção do estado e o olho guloso do capital estrangeiro. Existência estranha se se raciocina com a imagem da redentora clássica do "ancien régime". Mas outra coisa não é a nossa heroína nacional, em foto 3x4, com data no peito para colar em documento de identidade. [9]

A superexploração do trabalho aparece como resultado inevitável do modelo econômico voltado para fora. A forma de acumulação de capital realiza-se sob a tutela do capital internacional, que sai altamente remunerado deste processo produtivo, sem prejuízo do lucro da burguesia nacional: o prejuízo é do trabalho. O esforço exportador aparece combinado com "a produção de bens de consumo duráveis (automóveis, eletro-eletrônicos e correlatos); para seu consumo é estruturado, internamente, um mercado privilegiado e reduzido. É o pacto com o segmento alto das camadas médias." [10] Ou seja, para o mal da população trabalhadora de renda baixa, a produção se organiza nacionalmente de maneira a distribuir desigualmente a riqueza, e o nosso autor faz questão de enfatizar essa injusta distribuição derivada da articulação produtiva.

Para que tal mecânica funcione, nas condições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o concurso de dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência de mão-de-obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional. [11]

Ora, quando se diz que "ninguém quer mais trabalhar no nordeste" é preciso saber perceber quem está dizendo isto. Se é a população do nordeste quem está a assistir a este fenômeno calamitoso de ociosidade generalizada, temos uma informação. Mas se estamos a ouvir a reação indignada de fração da burguesia nacional, especialmente fundiária, que viu o preço da mão-de-obra costumeiramente barata repentinamente esfumar-se nos anos do governo Lula – neste caso, temos outra informação. O fenômeno pode se dever a fatores além do Programa Bolsa Família (PBF).

Se no Norte-Nordeste o PBF fez surgir setores antes inexistentes, como clínicas dentárias para pobres, o aquecimento destas pequenas economias pode ter gerado uma gama de oportunidades de trabalho que permite mesmo ao camponês mais pobre recusar-se a arrancar tocos de sol a sol em troca de um quilo de arroz, meio quilo de café e alpercatas - no conhecido sistema de crédito em comércio que geralmente pertence ao patrão, resultando quase sempre em o trabalhador dever salário ao fim do mês, em vez de recebê-lo. Por outro lado, aqui em São Paulo de uns tempos pra cá passou a aparecer, vez ou outra, ainda raras, placas de "precisa-se" para garçons, cozinheiros, caixas etc., donde se conlui que: a) o grau de exigência para contratação está muito alto; ou b) o povo deixou de ser trouxa e passou a valorizar o valor imensurável de sua força de trabalho.

Daí se explica o choramingo da classe média, "cansada" do descaso a que vem sendo submetida. Isto pode significar que reproduzem a queixa da fração burguesa proprietária de terras, que se vê prejudicada com a ascensão da qualidade de vida e o fim da servidão tropical, bem como da correspondente corveia, como também explica a base de sustentação do governo Lula tanto pela fração da burguesia nacional beneficiada pela explosão do mercado interno, como também pelos subproletários repentinamente banhados por um leve feixe luminoso de inédita dignidade e guiados não pela liberdade de peito nu, como a viu Delacroix, mas por um ex-operário coberto de barbas. Isto talvez indique o laço entre a facilidade como acionistas da Oi entram e saem do Palácio do Planalto, com a facilidade de aquisição de telefones celulares por brasileiros de qualquer classe social. Resta saber, a partir destes elementos, se teria havido de fato um realinhamento do sistema produtivo nacional e efetiva instalação do setor produtivo de bens popular-operários, como alimentação, calçados, roupas etc. E se o celular, neste estágio histórico, teria se convertido, como outras mercadorias, de bem suntuoso em bem popular-operário.

[1] José Chasin. Miséria brasileira. Ad hominem: Santo André, 2000, p. 34.
[2] Saturnino Braga. "Proposta de modelo econômico e político para o Brasil", versão condensada e publicada pela Folha de S. Paulo, em 26/06/1977, 4º caderno, p. 41. Apud José Chasin. Op. cit., p. 27.
[3] Saturnino Braga. Op. cit., p. 41. Apud José Chasin. Op. cit., p. 33.
[4] José Chasin. Op. cit., p. 17.
[5] Ibidem.
[6] José Chasin. Op. cit., p. 34.
[7] Ibidem.
[8] Francisco de Oliveira. A economia da dependência imperfeita. RJ: Ed. Graal, 1977, p. 116. Apud José Chasin. Op. cit., p. 35.
[9] José Chasin. Op. cit., p. 35.
[10] José Chasin. Op. cit., p. 85.
[11] Ibidem.

15.8.10

André Singer e As raízes sociais e ideológicas do lulismo

Costuma-se dizer, em tom de piada, que o Brasil é o único país onde pobre é de direita. Ora, isto é meia verdade, mas não chega à verdade. Afinal, o conservadorismo dos pobres não é privilégio do Brasil. Quando escreveu O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx notou fenômeno semelhante na França de 1848.

O fato é que eu já tinha lido este artigo de André Singer, a respeito do lulismo, graças ao Luiz Nassif que o havia mostrado no seu blog no começo deste ano. Mas só agora é que pude fazer uma leitura correta, percebendo os fios sutis das ideias tecidas no texto, discutindo com o autor, lendo os outros com quem ele discute. A conclusão é que a leitura que faz o Singer, sem prejuízo de que tenha sido porta-voz do Lula no primeiro mandato (talvez isso tenha ajudado mais que atrapalhado), é muito coerente. E já vem de alguns anos. Parece mesmo ter começado com o pai, Paul Singer, que em 1980 notou, para além da clássica categoria "proletária", uma classe "subproletária" na particularidade da objetivação capitalista do Brasil. Seriam subproletários aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. Estão nessa categoria “empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes.” E esta gente é: 1) numerosa, metade da população; 2) de direita, por absurdo que pareça.

Diz Singer:

"O tripé formado pela Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos programas especíicos, resultaram em uma diminuição significativa da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. É isso que Marcelo Neri chama de 'o Real de Lula': 'No biênio 1993-1995 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria cai 18,47% e, no período 2003-2005, a mesma cai 19,18%.' "

"O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo programa de classe", ou, pelo menos, de uma fração dela.

Viu-se que, enquanto eleitores de escolaridade superior se dividem igualmente entre esquerda, direita e centro (em torno de 31%), os de baixa escolaridade preferem a direita (44%). Não se avançou a construção de uma hegemonia político-cultural de esquerda. “Em que pese o sucesso do PT e da CUT, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, uma fração de classe particularmente difícil de organizar.” Excetuando casos como o MST, o subproletariado tende a ser organizado desde cima, como observou Marx em 1848 a respeito dos camponeses franceses e como o faz agora Lula. “Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações.

O popular que havia ficado fora de moda, seja pela retórica da modernização, ao centro, seja pelo discurso de classe, à esquerda, está de volta. Diferentemente da experiência peessedebista, o 'Real de Lula' veio acompanhado de uma mensagem que faz sentido para os de menor renda: pela primeira vez o Estado brasileiro olha para os mais frágeis e, portanto, se popularizou. Essa é a razão pela qual o presidente insiste que 'nunca na história deste país… etc. etc.'. Irritados, os supostos 'formadores de opinião' não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e insistem na tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade, mas ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire outro sentido.

O relativo desinteresse de Lula pelos 'formadores de opinião' significa que o realinhamento tirou centralidade dos estratos médios, que eram mais importantes no alinhamento anterior.

Em suma, vale a pena a leitura.

13.8.10

O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. [...] É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinariamente física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa.

[...]

De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma mercadoria? Evidentemente, dessa forma mesmo. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio de sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho.

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

[...]

Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. [...] Por isso, aos [produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.

[...]

[As grandezas de valor da mercadoria] variam sempre, independentemente da vontade, da previsão e da ação dos que trocam. Seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las. [...] A determinação da grandeza de valor pelo tempo de trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias.

[...]

Tais formas constituem pois as categorias da economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas para as condições de produção desse modo social de produção, historicamente determinado, a produção de mercadorias. Todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda magia e fantasmagoria que enevoa os produtos de trabalho na base da produção de mercadorias, desaparece, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção.

[...]

O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo de produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado. Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são o produto natural de uma evolução histórica longa e penosa.

(Karl Marx. O capital, vol. I, livro primeiro. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. 1, p. 70-3, 76.)

11.8.10

Estranhamento

Domingo fui passar o cartão de débito e não passou. Defeito na máquina, moço. Então, fui ao banco, pegar dinheiro vivo. Lá na agência, frente aos caixas, vejo uma cena que não me sai da memória.

Era uma pintura. Era a desolação humana, a melancolia, a prostração física e espiritual. Era Guernica mais O grito. Eram seres humanos mortos, desalmalizados.

É que os caixas eletrônicos também estavam parados. Com o sistema fora do ar, pessoas que encontrei, cabisbaixas, pareciam perdidas. Sem vida. Inda mais num domingo, lamentavam. Alguém tinha que pegá-las pela mão, apontar o caminho, fazer algo. E elas só não tinham dinheiro! Engraçado como essas cenas se nos apresentam e se reproduzem, com a naturalidade de um respiração. Quando alguém denuncia o quadro absurdo da nossa existência, cérebros automatizados ouvem entendendo bem mas olham vendo figuras inversas, como se aqueles é que estivessem fora da realidade. De fato, saímos dela - uma realidade cega -, ao olhar o que somos - cegos. E perdemos pouco. Porque nós construímos estas monstruosidades, que, embora inanimadas – neste caso, o dinheiro, mas em geral a mercadoria –, parecem ter vida própria, ou melhor, nossa vida.

Como um sujeito que, tempos atrás, após um acidente destruiu o carro. Tinha arranhões pelo corpo e mancava de uma perna, e chorava à beira da estrada, em criança. Repetia sempre: "Meu carro, meu carro..." Também vem a cena do sujeito no banco, bancário, com a arma na cabeça, a relutar sobre entregar/não entregar o dinheiro. E acaba entregando, que fazer. Os homens maus se vão, mulheres trêmulas, velhinhos nervosos. E o funcionário, ausente, olhando o chão fixamente, balançando duvidosamente a cabeça, distante, quando solta o que lhe vai na alma: "Isso vai dar um problema na contabilidade..."

Faz tempo que deixamos de caminhar, para seguirmos arrastados por forças que sem nós não existiriam.

30.7.10

E o caso brasileiro?

Efetivamente, como diz com muito sabor J. H. Rodrigues, “o processo histórico brasileiro é sempre não-contemporâneo”46.

Dito no espírito da problemática das formas particulares de objetivação do capitalismo que nos enforma, e das quais estivemos falando há pouco:

No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas e de tentativas – mesmo utópicas – de realizar na prática o 'cidadão' e a comunidade democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século passado e no início deste século, foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas 'pelo alto', através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformação social revolucionária – o que implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um 'grande mundo' democrático – contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada 47.

46 José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil, Civ. Brasileira, RJ, 1965, p. 70.
47 Carlos Nelson Coutinho, Literatura e humanismo, Paz e Terra, RJ, 1967, p. 142.

José Chasin, Miséria brasileira, Ad hominem, Santo André, 2000, p. 54.

20.7.10

Arte superior

O tema da CBC reapareceu tempos atrás quando um amigo curiosamente revelou-me que havia ficado apenas três meses nela. Que, enquanto fabricava balas, pensava "quem será morto por isso?". Está certo que, dentre os motivos de sua saída, pesou muito mais o fato de que seu salário era mais baixo do que o costume. E, também, teve aquela vez que uma bala explodiu, e a pólvora lhe chamuscou superficialmente o braço e parte do rosto. Nada grave. Mas esta preocupação – com o outro, com o efeito das nossas ações, com as coisas que fazemos –, ainda que tendo menos peso em sua decisão de sair da fábrica, ainda que em alguma pequena medida e em algum pouco grau, ainda assim, tudo compôs as linhas corretas e dignas do empregado que, ao ser comunicado de sua renovação de contrato, de sua aprovação no período de experiência, bartlebyanamente responde:

– Não.

– Como não? – interroga o encarregado, momentaneamente atrapalhado.

– Eu prefiro não.

– Como não?

– É que enquanto vocês me avaliavam, nestes três meses também avaliava a empresa. O caso é que vocês não passaram na experiência.

Surpreendido, o chefe olhava o papel que o empregado deveria assinar.

– Mas e o quê que eu faço com esse papel agora?

– Ora! É só escrever aí que não quero...

– Tá, mas...

(O encarregado mal sabia escrever.)

– Assim: "O funcionário não quer assinar, porque decidiu não renovar o contrato." etc. etc.

A hierarquia se invertia: surpreendido pela inversão esdrúxula, o encarregado atentamente escrevia o que o subordinado lhe ditava. Ninguém nunca tinha visto aquilo.

Estas coisas novas, inteiramente novas, que extrapolam as receitas e os costumes, que não obstante têm uma função prática, e que são reais, e apesar de reais, e mesmo reais, também deveriam ser chamadas de "arte". Uma arte superior. Que se consome enquanto se cria.

12.7.10

Fake plastic trees

Há este maldito verso
que bendiz a morte e a vida, ida e vinda,
mas não vem.
No pedaço do papel germina ainda a vontade de explodir mais explosões...
mas nada vem.

O que vem não-é-mais-verso.

Vem um plástico.
Frio...
Feio...
Fóssil...
Vem um tempo fácil,
feito horas maltratadas, produzidas, processadas,
no labor vazio,
Num imóvel trânsito.
Vem a vida.
Esterilizada.

7.7.10

Linguistas desocupados e as operações da Polícia Federal

Um grupo de cientistas desocupados se dedicaram a estudar... os nomes das operações últimas da polícia federal, dentro da área de estudos de análise do discurso, seguindo a linha de pensamento de Bakhtin, que epigrafa o estudo:

Se não esperamos nada da palavra, se sabemos
de antemão tudo o que ela pode dizer,
ela sai do diálogo e se coisifica.

Bakhtin

O artigo Palavras em operação: um dizer como trabalho, no trabalho e sobre o trabalho, publicada na Revista da Abralin, mostra como é sutil a ideologia, que vai ressignificando as palavras. E quase nunca nos damos conta dessas ressignificações, que dirá da ideologia propriamente. No caso em questão, é óbvio que, num primeiro momento, os policiais fazem juízo de valor dos alvos investigados no momento quando nomeiam as operações. O que pode escapar é que esse juízo, em si uma interpretação, é retransmitida, num segundo momento, para toda a população pela imprensa, a grande transmissora da ideologia. Só, que no caso em questão, também ela transmite, ainda que não queira, uma interpretação que não é dela, no momento quando divulga o nome da operação - que pode até ser contraideológica.

3.7.10

Vale (do Rio Doce)

O sudeste do Canadá, próximo à fronteira com os EUA, vive uma situação inusitada: trabalhadores do primeiro mundo em greve contra uma poderosa multinacional... brasileira. Há já bastante tempo.

A Vale vive o drama de toda empresa. Para fazer dinheiro, precisa que alguém entre chão adentro e de lá retire o níquel, que ela, Vale, vende lucrativamente a metalúrgicas fabricantes de anticorrosivos para aço, como ela mesma diz. O mesmo para o ouro, dos circuitos de computador; a prata, das velas de ignição; o cobre, dos fios elétricos; o basalto, dos trilhos ferroviários; o cobalto, nas baterias de lítio; o paládio, das obturações dentárias; o rutênio, dos chips eletrônicos; o ródio, dos conectores elétricos; o irídio, das agulhas de injeção – para acumular capital, precisa sempre alguém que trabalhe.

Em março, o Estadão informava que:

A Vale Inco, uma subsidiária da Vale, vai contratar trabalhadores terceirizados para contornar o problema dos funcionários em greve da companhia enquanto reinicia as atividades de mineração de níquel em Ontário, no Canadá, disse Cory McPhee, porta-voz da empresa.

Engraçado o jornal mencionar que a Vale tem um "problema" com a força de trabalho, tão necessária à sua acumulação de lucros, e esquecer os "problemas" enfrentados pelos mineiros que, logo após a Vale adquirir a canadense Inco (a compra ocorreu em 2006), viram mudar seus planos de aposentadoria e um bônus salarial, agora rebaixado, medida justificada pela queda nos preços do níquel. Mais à frente, o jornal deixa a entender que o sindicato exige demais. Mas, em algum vermelho lugar, questionaram: 

"Digo que, se eles têm alguma dúvida se eu mereço o meu salário, é só entrarem debaixo da terra para verem como o trabalho é duro e perigoso."

Hoje, a Folha noticiou que a greve fez um ano. E mais: 

Tudo indica que um acordo está próximo, mas não apagará os problemas dos últimos meses, quando a cidade de 150 mil habitantes, a 380 km de Toronto, viu episódios de violência e processos judiciais mútuos que transformaram a empresa em símbolo local de "ganância corporativa".

Embora o teor desta reportagem da Folha seja menos parcial na cobertura, toda vez que conflitos de classe aparecem, no geral a imprensa mostra o que ela é: classista. Na verdade, está cada vez mais difícil sustentar o mito de uma pátria, para qualquer das classes em disputa, sejam trabalhadores ou empresários. Isto na prática. No plano das ideias, segue a mesma xenofobia de sempre. Por aí, disseram que:

Pessoas que conhecem bem a situação disseram que o estilo hierárquico de administração da Vale entrou em choque com a abordagem mais consensual da Inco, enquanto a inesperada compra encontrou resistência e ressentimento por parte da indústria canadense, mais acostumada a adquirir mineradoras brasileiras.

Já há muito o pensamento socialista, seja ele anarquista ou comunista, havia percebido o non-sense de assalariados se aferrarem a ideia de pátria. As multinacionais já sabem muito bem disso. A imprensa vai aprendendo. Os governos são uma contradição, ora indo na contramão da história, ora forçados a seguir com ela, muito a contragosto e com todos os sacrifícios, como faz agora a Grécia, e como logo farão Portugal, Espanha, Alemanha e EUA. Vai devagar, mas a tendência é que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo perceba a mesma coisa: a aldeia global continua dividida em classes.

27.6.10

Notícia

Igreja Universal oferece drive-thru da oração

Comentários das pessoas:

"Pela segunda vez, na mesma semana, o florista Eugenio Ferreira dos Santos, de 47 anos, saiu do trabalho e decidiu parar por alguns minutos em frente ao templo. “Eu recebi a oração e me senti bem. Sempre que posso, passo aqui para receber a proteção divina”, comenta. Priscilla Amaral, administradora, de 24 anos, também gostou da ideia. “É ótima essa iniciativa, pois já que estou parada no trânsito, não custa nada entrar um pouco, receber a intercessão de um homem de Deus e seguir para casa abençoada”, afirma. Até mesmo motociclistas, que não costumam ficar presos em congestionamento, param por alguns minutos em frente à igreja. “É bom estar protegido, ainda mais quando se anda no trânsito de São Paulo de moto. Se todos passassem por aqui, com certeza não teríamos tantos acidentes”, afirma o motociclista Mario Reinaldo, de 40 anos."

Fonte: Iurd

Só faltou o motociclista dizer que as leis da física (força da gravidade, dois corpos não ocuparem o mesmo lugar etc.) e a dificuldade de equilíbrio em duas rodas perderam a influência sobre os acidentes de trânsito. Até quando seguiremos ostentando o título homo sapiens sapiens?

18.6.10

Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga

Quando me disseram que ele estava morto, por uma mensagem sms recebida em meio ao trânsito e à felicidade de uma sexta-feira, ficou a pairar em frente a pergunta, E agora, que faço, e era realmente um não saber o que fazer, também por uma dessas mortificações instantâneas que nos deixam provisoriamente sem alma. É estranho que alguém a quem nunca cumprimentamos e que não nos conheça, nem a mim nem à amiga que me escrevia, possa nos causar dor de perda, que vai permanecendo ainda, passadas dez horas de sua morte. Temos em comum amar José Saramago. Metonimicamente. Me veio então o imperativo de fazer uma homenagem, passou pela cabeça lhe dedicar uma oração, ideia ridícula rapidamente afastada com um abanar de orelhas, depois veio um minuto de silêncio, coisa também descartada, embora menos católica, mas igualmente supersticiosa e imprópria, porque não se poderia nunca calar o pensamento quando morre o homem que passou a vida a dizer o que pensava. Ainda morto, sua voz continuará a falar. Ad eternum. Deus terá agora uma boa companhia, desde que exista, fique claro. Imaginemos o diálogo:

"[...] assim como há milagres para o bem, também os tem havido para o mal, testemunhem-no aqueles infelizes porcos da Escritura que se lançaram ao precipício quando o Bom Jesus lhes meteu no corpo os mafarricos que no endemoninhado estavam, de que resultou padecerem martírio os inocentes animais, e só eles, pois muito maior tinha sido a queda dos anjos rebeldes, logo feitos demónios, quando do motim, e, que se saiba, não morreu nenhum, com o que não se pode perdoar a imprevidência de Deus Nosso Senhor que por essa desatenção deixou fugir a oportunidade de lhes acabar com a raça por uma vez, de bom conselho é o provérbio que previne, Quem o seu inimigo poupa, às mãos lhe morre, oxalá não venha Deus a ter de arrepender-se um dia, tarde de mais. Ainda assim, se nesse fatal instante tiver tempo de recordar a sua vida passada, esperemos que se lhe faça luz no espírito e possa compreender que nos deveria ter poupado, a todos nós, frágeis porcos e humanos, aqueles vícios, pecados e sofrimentos de insatisfação que são, diz-se, a obra e a marca do maligno. Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga."

(História do cerco de Lisboa. RJ/SP: O Globo/Folha de S.Paulo, 2003, p. 19)

11.6.10

Memórias do cárcere

Eu nunca li Michel Foucault, mas é como se o lesse todos os dias. O Estado é um poder tão abrangente, que desconfio teremos uma grande surpresa quando um dia tivermos a completa compreensão do que somos. Porque, uma vez conhecida a parcela de nós cuja construção é obra do Estado, e desconsiderada esta parte constitutiva da nossa essência, receio que, neste resto de ser, sobrará, como aquilo que naturalmente somos, muito pouco.

Diz Graciliano Ramos que, logo ao ser preso, em 1936, foi mais ou menos bem tratado pelos militares que o encarceravam na primeira prisão, em Recife. Mas, ao chegar à cela, o capitão solicitara, mais ou menos cortesmente, que prometesse não tentar comunicação com o preso vizinho, sem explicar por que. Várias semanas depois, e já sabendo que ia ser transferido para o sul, Graciliano recebe uma bolinha de papel com uma mensagem atirada pelas grades pelo vizinho, e entra na dúvida sobre responder ou não responder.

[...] aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. – "Está ali um sujeito com quem o senhor não se pode entender." – "Perfeitamente." Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior? [RJ: Record, 1996, p. 118]


É irônico que professores costumem queixar-se de que os alunos não prestam atenção. Ora, a maior coisa que a escola ensina, com efeito, e nisso todos saem escolados, é ouvir frases sem dar atenção a elas. Porque, das muitas frases que circulam cotidianamente – e que todos nós ouvimos, em tvs, revistas, jornais, outdoors, regras, leis etc. –, se lhes déssemos a devida atenção, concluiríamos não devemos ouvir nem metade. Porque desnecessárias, ilógicas ou inúteis – adjetivos também aplicáveis a mais da metade do currículo escolar. A questão é que, pensando bem, a fertilidade em horrores não é exclusividade da cadeia. É maior. Está em outro nível, do qual a cadeia faz parte: o Estado. As escolas, um braço do mesmo monstro, armam cotidianamente, proibindo recados e papéis entre carteiras, ciladas semelhantes. Sempre com o mesmo objetivo: criar covardes. Em maior ou menor grau, todos nós que passamos um dia pela escola temos propensão à covardia.

O pior de tudo é que não posso me orgulhar de ter percebido isso. Vejo claramente, neste momento vital, a mesma possibilidade de comunicação, de solidariedade, de transgressão... e hesito. Que falta para fazer o que quero? Uma inércia maior que mim me amarra ao que sou e ao que faço. Ando num deserto de pronomes oblíquos sem nenhuma gota de eu. E sigo, ouvindo frases a que não dou atenção, calando a voz interior que me tortura, sendo uma vez mais o mesmo. E sinto que não estou só. Bom? Não, mas deveria ser, porque não fui educado para me sentir bem sozinho: fui produzido em série. Feliz?

7.6.10

Aham!!!

Hoje é um dia histórico. Luiz Felipé Pondé mostrou quem é. Em suma, um reformador da lógica, desde que Aristóteles a fundou. Vai parecer que eu estou pegando no pé do menino, mas hoje, na Folha, seu texto foi demais.

Começou defendendo a liberdade de pensamento:

"O que você faria se algum professor pregasse o evangelho ao seu filho na faculdade? Provavelmente você lançaria mão de argumentos do tipo que os intelectuais lançam contra o ensino religioso: 'O Estado é laico e blá-blá-blá... porque a liberdade de pensamento blá-blá-blá...' "

Depois, atacou a liberdade de pensamento:

 "Pergunto-me por que não proíbem professores de pregar o marxismo em sala de aula e toda aquela bobagem de luta de classes e sociedade sem lógica do capital? Isso não passa de uma crendice [...]"

Por fim, mostrou quanto conhece sobre a crendice da qual fala:

"[...] torturam-se alunos todos os dias com pregações vazias como essas, que apenas atrapalham a formação deles, fazendo-os crer que, de fato, 'haverá outro mundo quando o McDonald"s fechar e o mundo inteiro ficar igual a Cuba'."

Ele crê que conhece o país e o mundo onde está, quando apenas está neles, sem vê-los de fato. Vejamos:

1. Ele faz crer que há muitos professores marxistas, quando na verdade mal se veem os marxistas entre estruturalistas, funcionalistas, evolucionistas e marxistas-recauchutados à Maximillian Weber [isso pra falar só no ensino básico; na faculdade, a coisa só piora: a quantidade de cursos técnicos ou a-históricos é tão grande, que o marxismo fica restrito às poucas ciências que lhe servem de objeto. Mas, ainda assim, é raríssimo achar um curso com orientação marxista. O que se encontra é um ou outro professor isolado, o que conta pouco.]

2. Que havendo estas quatro correntes de pensamento, proibindo uma e preservando as outras três, por sinal dominantes (basta ver a grade do ensino básico, com supremacia horária discutível das linguagens [português e matemática] e ciências naturais [biologia, física, química], e tempo minúsculamente ridículo para as ciências da sociedade), presta-se um grande serviço à ciência.

3. Que Cuba, Coreia do Norte, China e Vietnã têm ainda alguma coisa de marxistas.

Eu, na verdade, sei que ele não fez mais que uma crítica em forma de brincadeira. Mas saiu tão superficial, chula, rebaixada, que, ainda brincadeira, a falta de sutileza, de fineza no humor revela em grande medida, sem prejuízo de algum pequeno ressentimento escondido e guardado, um vasto universo de ignorância, só posso crer que proposital, por parte do autor. Francamente.

Eu, cá por mim, não sou contra perspectiva alguma nas escolas. Por mim, eu formaria os alunos com todas as visões possíveis. Que eles escolham para si dentre todas, inclusive o criacionismo, qual explica melhor a realidade. Qual o problema?

1.6.10

Ciência


"Acho as ciências humanas incertas e inúteis."
Luiz Felipe Pondé*

Faz algum tempo, nasceu um discurso. Deve ter sido chocado no XIX, quebrou a casca dos ovos no começo do XX e veio serpenteando até nossos dias. Esgueirou-se sinuosamente por entre duas guerras mundiais, a grande crise de 29, nazismo, fascismo, stalinismo, bombas atômicas, guerra fria, homem na lua, ditaduras militares, crise, queda e construção de muros, neoliberalismo, crise. Avançando sub-repticiamente, em ziguezagues, alcançou o status de verdade e alojou-se nas mentes, mesmo as mais inteligentes. Aí foi onde, ironicamente, criou as raízes mais profundas. Arrastando-se pelo chão, andando, movendo-se tortuosamente, elevou-se a uma categoria pura e plena: a das ideias ornadas de lama, limbo, musgos e superstições.

Há um bom tempo ouvimos que "a ciência falhou em promover bem-estar à  humanidade"; que "a fé nesta ciência revelou-se um erro".

Pondé parafraseia Pascal, que, referindo-se a Descartes, provavelmente louvava a matemática, sempre exata na quantificação do vasto e grande mundo, em contraposição à filosofia, sempre incerta, apesar da simples tarefa de desvendar como funcionam as pequenas relações humanas. Há nisso mais ideologia política e religião do que, propriamente, ciência. Afinal, falhou a ciência ou falharam os homens de ciência? É importante revelar o tempo todo o que somos: agentes. Se o resultado de nossa atuação acarreta prejuízos, deve-se apontar quais sejam. Principalmente quando se sente um rebaixamento aviltante da espiritualidade – de dimensões humanas que se perdem. O funcionamento de um mundo humano depende de descobrirmos a causa magna de seu movimento, para adequá-lo a nossos desejos.

Ao longo do século XX o grosso da produção científica teve em vista este objetivo? Que significam os bilhões das naves espaciais de ontem e de hoje?

*Folha, ilustrada, 31/05