27.12.11

Por que Portugal deu errado?

Nos séculos XIV e XV houve uma crise monetária mundial. Valendo-se da sua marinha e da aliança com a Inglaterra, Portugal partiu em busca de ouro, especiarias e escravos, compensando a sua escassez de dinheiro e gente.

Nesse processo fortaleceu-se uma nobreza que se tornou parasitária. A burguesia mercantil – composta majoritariamente por judeus – foi expulsa ou enfraquecida e não se realizou a passagem ao capitalismo, que fortaleceria a economia interna da nação. Esse sistema não criou raízes estruturais para sustentar a economia em crescimento. Ao se revelar a pequenez de Portugal ante o gigantismo da empresa, sua expansão passou a ser mero inchaço. E se esboroou sem aproveitar – ou sem ter feito sequer – a acumulação de capitais necessária ao desenvolvimento do capitalismo. O descobrimento do Brasil foi o ponto ascendente desse processo. Depois começou o declínio do comércio exterior português, que se tornará deficiente. E Portugal passará a viver da sua colônia, dividindo-a e finalmente perdendo-a para a Inglaterra.

(...)
Portanto, a descoberta do Brasil foi consequência da expansão marítima portuguesa, quando a Europa evoluía do feudalismo ao capitalismo e Portugal não conseguiu encontrar a passagem que estimularia o desenvolvimento do “seu” capitalismo. Por não encontrá-la, foi vítima do processo, transformando-se em um anacronismo que a exploração colonialista não pôde superar – antes complicou, como duzentos anos depois o marquês de Pombal viu com clareza.

CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil. Cap II, "A saga marítima". Cortez. No prelo.

24.12.11

Sobre a bomba do momento

Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador. Mas, nos anos 1990, o que hoje é estigma era então condição inexorável para ser aceito na modernidade. O discurso tucano, hoje omisso quanto ao passado, possuía a arrogância dos donos da verdade. Mas está tudo registrado.


RIBEIRO JR., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: geração editorial, 2011, p.36 (Col. história agora; vol. 5)

O grifo é meu. Embora as privatizações tenham varrido a América Latina, o Brasil entrou na modernidade - e entrou bem. Sem prejuízo das falcatruas e roubos ao patrimônio público - nas quais, conforme o livro, José Serra foi ilustre co-participante -, as privatizações escondem talvez alguma coisa positiva, no caso do Brasil, e extremamente negativa, no caso de Argentina e outros países. Que entraram mal nesse início de século.

12.12.11

Brincadeira de deus


















escavadeira bagger 288, da empresa Krupp AG (atual ThyssenKrupp)




(...) as terríveis massas de ferro que precisavam ser forjadas, soldadas, cortadas, furadas e moldadas exigiam, por sua vez, máquinas ciclópicas, cuja criação não era possível à construção manufatureira de máquinas.

A grande indústria teve, portanto, de apoderar-se de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas.

(...) veremos reaparecer o instrumento artesanal, mas em dimensão ciclópica. A parte operante da perfuratriz, por exemplo, é uma broca monstruosa, movida por uma máquina a vapor e sem a qual, por sua vez, não poderiam ser produzidos os cilindros das grandes máquinas a vapor e das prensas hidráulicas. O torno mecânico é o renascimento ciclópico do torno comum de pedal; a máquina de aplainar, um carpinteiro de ferro, que trabalha o ferro com as mesmas ferramentas com que o carpinteiro trabalha a madeira; a ferramenta que, nos estaleiros londrinos, corta as chapas é uma gigantesca navalha de barbear; a ferramenta da tesoura mecânica, que corta ferro como corta pano a tesoura do alfaiate, uma monstruosa tesoura; e o martelo a vapor opera com uma cabeça comum de martelo, mas de peso tal que nem mesmo Thor conseguiria brandi-lo.

(O capital, livro I, tomo II, Cap. XIII - "Maquinaria e grande indústria". Abril (Os economistas), pp.14-17)

6.12.11

...quem precisa de inimigos?

Não tenho nada contra meu mundo. Tenho até muitos amigos e, por ignorar deles qual seja o grande ou o melhor, corro o risco de não ter amigo algum. Contudo, minha companheira me acompanha e me ajuda, sobretudo quando desanimo e caio; sinto que somos grandes amigos. Mas isto se poderia dizer trata-se de amizade especial ou, até, vulgar, uma vez generalizado o casamento. Mas as pessoas me ajudam, às vezes retribuo um sorriso e, descartado o que há de ruim, mais as relações sociais etc. - toda vez que aprendo, ou amo, ou me embriago, sinto orgulho da espécie.

Com os avanços medicinais, incrementos de higiene, dietas de proteína, crescimento do mercado interno, lulismo e aumento na longevidade do brasileiro -, a única coisa que incomoda é ter tudo isso pra viver e todo esse trabalho em ficar vivo; e tão pouco tempo para desfrutar disso, deles, dela. Porque, ainda que eu trabalhe menos, e sempre mais, para escândalo de minhas colegas de trabalho - que temem ver-me reduzido à penúria -, não obrigo nem posso orientar meus amigos a semelhante resolução. Não me admira fracassar nesta empresa megalomaníaca.

O que me admira e constrange e deprime é sequer convencê-los de que não é saudável trabalhar em mais de um lugar, todos os dias, sacrificando em nome do transporte seu horário de almoço. Se é que é saudável falar quando se come, mesmo aí a reunião é prejudicada - e tanto pior pra mim, que, versado só em letras, tinha muito a dividir com um amigo matemático. Mas hoje ele não pode comer. É preciso correr. E se, no trânsito, outro vem e pára, e bebe comigo após tanto tempo, e me diz que devo desistir do homem, que o egoísmo é inato, que a natureza humana é imutável - eu não tenho nada a dizer. Seria inútil reviver a poesia de John Donne, já lembrada pelo Hemingway: no man is an island. Porque vamos mesmo sendo ilhas - no salgado oceano do trabalho, do consumo e da desilusão.

O que não me impede de gritar, emputecido e gasto, que se roubam meus amigos, sou duplamente agredido e náufrago; que a miséria deles é a minha miséria elevada à constelação das potências.