30.1.07

Lembrança

Batia o frio soprando gelado na branca janela
Quando ela chegou,
e tomamos café com bolachas.

Falou-me do tempo frio de antes
Dos chãos que pisaram seus pés infantis
Do clima que muda sempre constante
Do quente que morre nas coisas que ficam...

Lembrou cousas há muito esquecidas
Teve saudades do que nunca foi
E confundiram-se-lhe os livros e a vida...

Já te vais, perguntei
Já me vou, adeus...

E não lembramos mais.

27.1.07

Lapa

João do Rio, Rosinha, Villa Lobos, Noel Rosa, Manuel Bandeira, Madame Satã, Portinari, Di Cavalcanti

Rio. Não a cidade das ensolaradas praias copacanas, das toscas novelas da classe medíocre. Mais... Os dias de Glória. A Fundição Progresso. A antiga rua de Mata-cavalos. O aqueduto. As rodas boêmias. Numa parede pintados Manuel Bandeira, Noel Rosa, João do Rio, Di Cavalcanti, Portinari, Madame Satã... Resta saber como os reuniram, se o segundo tinha só onze anos quando morreu o terceiro, mas, ora, está-se a ver que é liberdade artística, e basta pensar que as ruas são alternativas... e as noites, da Lapa. Aos pés dos arcos entrecruzam-se histórias, tempos, cores, classes, línguas, músicas... As rodas de samba na rua. Aqui, a igreja cuja torre levou um estrondo de canhão, à esquerda uma parede exibe, talvez, uma releitura de Debret, ali uma rua-território de muitas tribos, vamos indo nela, lá estão mendigos, e as meninas mais belas, lá estão as rodas de samba, já se sente cheiro de maconha, adiante queda-se, imóvel, a polícia, sofrendo o calor em seus uniformes, aclimatada à carioca vida, hipnotizada por um vai-e-vem, de malandros, de meninas, de crianças pobres, de turistas vários nas estreitas ruas, acolá se vê a Joaquim Silva, vamos indo pela Manoel Carneiro, vê-se bem destes degraus azulejados, aquele casal alemão adentra o Restaurante Ximenes, observam, não entendem a língua do menu, pedem quatro cervejas (pensando em longnecks), ok, lá vem o garçom intrépido, abridor à mão, quatro garrafas de 550ml, ploc, ploc, ploc, ploc... entreolham-se admirados com a fartura tupiniquim os filhos de Oropa (sobre lâmpada antiqüíssima há ainda uma goteira, cai agora uma água de torneira surreal, presa ao teto, as gotas faíscam no ar), por aquele beco vê-se ainda ao longe a beleza das construções, das janelas em paredes de trompe l’oeil, finda 17 de novembro de 2006, não esperaremos muito, não tarda a hora de ir ao Circo Voador. Rio. Rio. Rio...

25.1.07

Ritual

À meia-noite duma noite quente, lia numa antiga Seleções o registro de uma tradição oral pré-colombiana que havia sido recolhida por Mário de Andrade, na Amazônia peruana. A matéria trazia fotos de pés pintados que, afirmava-se, eram de Macunaíma. Fui lendo interessado, pois não sabia que eles tinham passado por outros países sul-americanos, e quando notei fui alucinogenamente inserto no ritual descrito pela lenda. Invocava a deusa Inanna e dançava pedindo fartura na colheita:

Eh, terra de Inanna

Eh, eh, terra onde corre leite e mel

Eh, eh, eh, adoçai minha boca, minha terra

Fiquei meio desconfiado. Mas fui seguindo fielmente as instruções, dizia-se que era preciso repetir a dança três vezes, cantando, sob uma palmeira-anã. Fui dizendo aquele mantra, e o curioso é que comecei a acreditar naquilo de repente e de repente: choveu torrencialmente sobre minha cabeça, do alto da copa da palmeira, leite, mel e abelhas. As abelhas eram mansas e não picavam. Fiquei assim, entre incrédulo e melado, e fui repetindo novamente o ritual, porque ainda não havia chegado à terceira vez e tive medo de desagradar aos deuses e abelhas, e vacas eventuais:

Eh, terra de Inanna

Eh, eh, terra onde corre leite e mel

Eh, eh, eh, adoçai minha boca, minha terra

E antes mesmo que pudesse chegar ao último verso, fui violentamente trazido para o meu quarto e tudo que vi foi a escuridão da noite. Ri aquele riso safado, zombando da credulidade dos nativos e camponeses amazonenses que preservaram oralmente esse ritual. E ainda ri do Mário, que foi escrever. Ham! E, quando ia caminhando à cozinha, pouco antes da porta, fui tragado pelo solo, agarrei-me desesperadamente ao criado-mudo e assim fiquei, enterrado ao chão até o peito, e só a muito custo pude soerguer-me. Fui acender a luz. Escuro. Fui pra sala. Escuro. Nenhuma lâmpada funcionava. Tive calafrios e comecei a pressentir a ocorrência sobrenatural do incompreensível. Resolvi sair do apartamento. Abri a porta e, assombrado, tive a visão translúcida de uma realidade nova: a parede, ao lado esquerdo dos umbrais, exactamente onde o sulco da fechadura encerrava minha segurança, abria-se e ia, formando duas retas semi-paralelas que se afastavam gradualmente e deixavam-me entrever, entre elas, um abismo, um espaço inexplorado nas minhas cotidianas passagens e, dentro, lá estava a mesma escuridão do quarto. Fui falar com o síndico: expus minhas desconfianças e ele disse que faria uma reunião em caráter de urgência. Achei esquisito. Era já madrugada: duas horas. Vieram mulheres evangélicas. Vieram céticos. Vieram espíritas. Vieram materialistas. Veio a desgraçada da dona Hermínia, do 98. Conversamos. E ficamos toda aquela madrugada tomando café e descascando feijão, contando histórias, rindo, naquela sala ampla do térreo, onde ocorriam as reuniões. O feijão havia sido doado ao condomínio, mas não estava descascado, não sei por que, desconfio de negócios mais escusos que esse nesta gestão. “Cavalo dado não se olha os dentes”, foi a desculpa. Então, fizemos uma roda em volta dum lençol sobre o qual pusemos as vagens, e cada um puxava um pouco para si, junto à borda. Era fácil descascar feijão com os vizinhos, contar histórias e tomar café, e por um minuto a desconfiança riu sarcástica para minha alma, até que um reincidente calafrio caminhou lentamente nalgumas frações de segundo por minha espinha, e senti carnalmente que já havia vivido, falado, recordado, sentido e comemorado tudo aquilo antes. Déjà-vu. E só-deus-sabe como tardou o amanhecer.

24.1.07

Khaled Hosseini e O caçador de pipas

“Eu me tornei o que sou hoje aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975.”

A verdade é que torci o nariz quando ouvi falar dele. Imaginei que era qualquer best sellerzinho como O Código Da Vinci etc., o qual nem li nem tenho vontade. Sei lá por quê. Ou sei. É besteira, mas é sempre o pensamento de que tudo o que é sucesso de vendas não presta, o que, sendo ou não verdadeiro, não deixa de ser uma visão pretensamente elitista. Em todo caso, continuo olhando torto o Dan Brown.

Já não é mais o caso de Khaled. Tanto torci o nariz, que, talvez pra sacanear, me deram de natal, com dedicatória e tudo, e “caraleo! agora vou ter que ler”, e fui começando, embirrado. Mas devorei em uma semana as 360 páginas: a história é boa. Agora vem uma apropriação de idéias: Outro dia, na Folha, Contardo Calligaris escreveu que “a leitura nos faz conhecer particularidades do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista.” Sim, a história de Amir contribui para o romance, e isso é também pelo interesse que geram as biografias profundamente afetadas pelo curso da História, sempre cheia de guerras. Aliás, o romance, que tem como cenários Afeganistão, Paquistão e EUA, lugares que Khaled conhece bem, é, em certo sentido, autobiográfico. Mas é bom dizer que a leitura nos faz conhecer muuuuuuintas particularidades do Afeganistão, e isso não pode ser relegado a segundo plano.

Uma delas é exatamente o idioma, ou os idiomas. Do árabe, pashtu, farsi, urdu, tadjique, sei lá, uma série de palavras vão aparecendo ao longo do livro, sem nota de rodapé, sem tradução, nem nada: noor, baba, naan, laaf, namaz... O leitor é que tem de intuir o significado, e a maioria dá pra fazer tranqüilamente pelo contexto. As outras, mais difíceis, o autor ajuda traduzindo logo à frente. E algumas, que ele esqueceu, a gente fica sem saber, que também já é querer saber demais. O engraçado é que a tradicional saudação muçulmana salaam alaykum, ‘a paz esteja contigo’, repete-se regularmente, e cada vez que eu a lia era como se já a conhecesse, soava muito familiar. Fui olhar no dicionário, claro. E o bom e novo Houaiss registra o aportuguesamento salamaleque, que, gozado, também significa ‘cumprimento exagerado, polidez afetada’. Mas continuei na mesma. Até que de repente, zás, num nostálgico recuo temporal me vi a mim de novo, infantil, vendo tv, ouvindo uma mulher que usava véu, contava histórias e ia embora num tapete voador, logo após dizer salaam alaykum. A mulher devia ser Sherazade e o programa, Rá Tim Bum. Lembrando isso, amaldiçoei o tempo que passa, idealizei a infância, condenei a programação infantil atual etc.

E é isso. O romance, do ponto de vista formal, parece que não traz mais nenhuma novidade. Estilo simples, narrativa predominantemente linear, continuidade, contextualização, idéias claras, nada dessas viageiras da pós-modernidade a que estamos nos acostumando. A desconstrução dos valores estéticos tradicionais deve ter um limite. E isso deve ser o que pensa Khaled: com a primeira frase do livro, que é aquela epígrafe, ele anuncia os dois pontos de tensão da história: os bons tempos, no passado; e as lembranças, no presente. E, com muito cuidado, faz Amir caminhar nesta ponte temporal, mas tem tanto cuidado, que a linearidade é o que vai predominar, apesar das idas e vindas. O fato é que a simplicidade do seu estilo, que muitas vezes traça retratos bem crus, é uma coisa muito boa: reserva sempre o espaço pruma piadinha prosaica e o momento bom para a expressão poética, dois extremos que agradam todo tipo de leitor. E tudo acaba ficando no seu lugar, com cara de casa simples da roça, chapéu na parede, panela no fogo, fumaça na chaminé. Em suma, é um livro sem salamaleques.

23.1.07

a vida... a vida anda em transportes coletivos

A minha vida é bem normalzinha, um porre. Mas de vez em quando acontecem umas coisas bizarras, que até vale a pena vivê-la.

Dias atrás estava num assento de corredor, pouco depois da metade, já próximo à porta traseira. E entrou uma família, mãe, duas filhas, o pai vinha atrás. Sentaram-se num dos primeiros bancos a mãe e uma das meninas: a outra olhava-me insistentemente. Quatro anos? olhos negros, pequenos dentes, branquinhos, cabelo ao ombro. E, do nada, começou a chorar e, chorando, caminhou pelo corredor e, caminhando, falava comigo. Trazia aquele brilho nos olhos que não é feito apenas de lágrimas. Era um sofrimento, uma dor, uma saudade, sei lá, eu senti, e senti aquela mão que me tocou o braço e aquele rosto triste e aquela voz clara e infantil, pai, pai, pai. A mãe ficou envergonhada. Eu fiquei paralisado (nem quis ver a cara da mãe!). O pai ficou sem graça. Éramos parecidos. A cor morena. O cabelo curto. A mesma camisa vermelha. Pegou a criança e sentaram-se a minha frente. Ela, chorava. Percurso infeliz. Durante toda a viagem, a curtos intervalos, a pequena voltava-se, confusa, mostrando-me o rosto ainda molhado, ainda soluços, um olhar tão triste, era como se dissesse, porque não me abraça, não fala comigo, não diz, filha, minha filha. O pai estava tão incomodado, que, lá pelas tantas, inda teve a indelicadeza de perguntar à mãe: “Você teve algum caso?” Desci aterrado.

E ainda me pergunto: será?

“Há ordens a que obedecemos com prazer”

– ?

– Vai ou não?

– Mas eu tento-que-tento e num consigo entender esse negócio de pronome relativo, prô?

– Se você estudasse mais...

– Ai, prô, mas eu tento, eu tento, Deus tá vendo...

– Olha, é mais ou menos o seguinte: a palavra “ordens” já tem um compromisso: é complemento, objeto direto de “haver”, na primeira oração. É como um casamento deles. Mas aí, acontece o seguinte: essa palavra é muito danadinha, muito cheiinha de fogo, quer-porque-quer pular a cerca, ir pra outra oração, completar o sentido de “obedecer”, e isso é praticamente uma traição. Diriam os religiosos Estevam e Sônia Hernandes: “isso é um sacrilégio!”. Mas dá-se um jeito, ela vai, num tem conversa não, quando mulher quer dar, num tem marido que segure. E como você sabe, o verbo “obedecer” é transitivo indireto , e está lá na segunda oração, bonito, solteiro, com a sua “preposiçãozinha” preparada, doidinho pra pegar o complemento verbal do vizinho, chifrando-o, por assim dizer. Mas há um problema: o vizinho, “haver”, não pode descobrir nada. Então, “ordens” vai, se disfarça de “que”, se traveste, se entrega como complemento ao verbo “obedecer”, vira “objeto indireto” dele, usando o laranja do pronome relativo, e ninguém nem num percebe nada. Só a gente, que é gramático, tá vendo essa senvergonhice toda, claro. O resto das pessoas comuns (médicos, engenheiros, donas-de-casa) nem vê nada. Apenas falam a língua, usando essas estruturas pecaminosas do pronome relativo. E sabemos todos, inconscientemente, que a palavra “ordens” tanto completa o sentido de “há” como o sentido de “obedecemos”, mas nem se imagina os estratagemas de que ela usa pra estar nos dois lugares ao mesmo tempo e consumar sua traição, conspurcando os nossos valores cristãos. Isso é um absurdo!

– Aaaaaaahhh! Com sacanagem eu entendi.
Fazer o quê. Caí neste mundo.

Mas é por pouco tempo. É só até juntar um dinheiro, comprar uma casa, publicar um livro, ir ao Programa do Jô escandalizá-los a todos com a minha vida, e aí, sim, largo-a. No auge.