30.7.10

E o caso brasileiro?

Efetivamente, como diz com muito sabor J. H. Rodrigues, “o processo histórico brasileiro é sempre não-contemporâneo”46.

Dito no espírito da problemática das formas particulares de objetivação do capitalismo que nos enforma, e das quais estivemos falando há pouco:

No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas e de tentativas – mesmo utópicas – de realizar na prática o 'cidadão' e a comunidade democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século passado e no início deste século, foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas 'pelo alto', através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformação social revolucionária – o que implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um 'grande mundo' democrático – contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada 47.

46 José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil, Civ. Brasileira, RJ, 1965, p. 70.
47 Carlos Nelson Coutinho, Literatura e humanismo, Paz e Terra, RJ, 1967, p. 142.

José Chasin, Miséria brasileira, Ad hominem, Santo André, 2000, p. 54.

20.7.10

Arte superior

O tema da CBC reapareceu tempos atrás quando um amigo curiosamente revelou-me que havia ficado apenas três meses nela. Que, enquanto fabricava balas, pensava "quem será morto por isso?". Está certo que, dentre os motivos de sua saída, pesou muito mais o fato de que seu salário era mais baixo do que o costume. E, também, teve aquela vez que uma bala explodiu, e a pólvora lhe chamuscou superficialmente o braço e parte do rosto. Nada grave. Mas esta preocupação – com o outro, com o efeito das nossas ações, com as coisas que fazemos –, ainda que tendo menos peso em sua decisão de sair da fábrica, ainda que em alguma pequena medida e em algum pouco grau, ainda assim, tudo compôs as linhas corretas e dignas do empregado que, ao ser comunicado de sua renovação de contrato, de sua aprovação no período de experiência, bartlebyanamente responde:

– Não.

– Como não? – interroga o encarregado, momentaneamente atrapalhado.

– Eu prefiro não.

– Como não?

– É que enquanto vocês me avaliavam, nestes três meses também avaliava a empresa. O caso é que vocês não passaram na experiência.

Surpreendido, o chefe olhava o papel que o empregado deveria assinar.

– Mas e o quê que eu faço com esse papel agora?

– Ora! É só escrever aí que não quero...

– Tá, mas...

(O encarregado mal sabia escrever.)

– Assim: "O funcionário não quer assinar, porque decidiu não renovar o contrato." etc. etc.

A hierarquia se invertia: surpreendido pela inversão esdrúxula, o encarregado atentamente escrevia o que o subordinado lhe ditava. Ninguém nunca tinha visto aquilo.

Estas coisas novas, inteiramente novas, que extrapolam as receitas e os costumes, que não obstante têm uma função prática, e que são reais, e apesar de reais, e mesmo reais, também deveriam ser chamadas de "arte". Uma arte superior. Que se consome enquanto se cria.

12.7.10

Fake plastic trees

Há este maldito verso
que bendiz a morte e a vida, ida e vinda,
mas não vem.
No pedaço do papel germina ainda a vontade de explodir mais explosões...
mas nada vem.

O que vem não-é-mais-verso.

Vem um plástico.
Frio...
Feio...
Fóssil...
Vem um tempo fácil,
feito horas maltratadas, produzidas, processadas,
no labor vazio,
Num imóvel trânsito.
Vem a vida.
Esterilizada.

7.7.10

Linguistas desocupados e as operações da Polícia Federal

Um grupo de cientistas desocupados se dedicaram a estudar... os nomes das operações últimas da polícia federal, dentro da área de estudos de análise do discurso, seguindo a linha de pensamento de Bakhtin, que epigrafa o estudo:

Se não esperamos nada da palavra, se sabemos
de antemão tudo o que ela pode dizer,
ela sai do diálogo e se coisifica.

Bakhtin

O artigo Palavras em operação: um dizer como trabalho, no trabalho e sobre o trabalho, publicada na Revista da Abralin, mostra como é sutil a ideologia, que vai ressignificando as palavras. E quase nunca nos damos conta dessas ressignificações, que dirá da ideologia propriamente. No caso em questão, é óbvio que, num primeiro momento, os policiais fazem juízo de valor dos alvos investigados no momento quando nomeiam as operações. O que pode escapar é que esse juízo, em si uma interpretação, é retransmitida, num segundo momento, para toda a população pela imprensa, a grande transmissora da ideologia. Só, que no caso em questão, também ela transmite, ainda que não queira, uma interpretação que não é dela, no momento quando divulga o nome da operação - que pode até ser contraideológica.

3.7.10

Vale (do Rio Doce)

O sudeste do Canadá, próximo à fronteira com os EUA, vive uma situação inusitada: trabalhadores do primeiro mundo em greve contra uma poderosa multinacional... brasileira. Há já bastante tempo.

A Vale vive o drama de toda empresa. Para fazer dinheiro, precisa que alguém entre chão adentro e de lá retire o níquel, que ela, Vale, vende lucrativamente a metalúrgicas fabricantes de anticorrosivos para aço, como ela mesma diz. O mesmo para o ouro, dos circuitos de computador; a prata, das velas de ignição; o cobre, dos fios elétricos; o basalto, dos trilhos ferroviários; o cobalto, nas baterias de lítio; o paládio, das obturações dentárias; o rutênio, dos chips eletrônicos; o ródio, dos conectores elétricos; o irídio, das agulhas de injeção – para acumular capital, precisa sempre alguém que trabalhe.

Em março, o Estadão informava que:

A Vale Inco, uma subsidiária da Vale, vai contratar trabalhadores terceirizados para contornar o problema dos funcionários em greve da companhia enquanto reinicia as atividades de mineração de níquel em Ontário, no Canadá, disse Cory McPhee, porta-voz da empresa.

Engraçado o jornal mencionar que a Vale tem um "problema" com a força de trabalho, tão necessária à sua acumulação de lucros, e esquecer os "problemas" enfrentados pelos mineiros que, logo após a Vale adquirir a canadense Inco (a compra ocorreu em 2006), viram mudar seus planos de aposentadoria e um bônus salarial, agora rebaixado, medida justificada pela queda nos preços do níquel. Mais à frente, o jornal deixa a entender que o sindicato exige demais. Mas, em algum vermelho lugar, questionaram: 

"Digo que, se eles têm alguma dúvida se eu mereço o meu salário, é só entrarem debaixo da terra para verem como o trabalho é duro e perigoso."

Hoje, a Folha noticiou que a greve fez um ano. E mais: 

Tudo indica que um acordo está próximo, mas não apagará os problemas dos últimos meses, quando a cidade de 150 mil habitantes, a 380 km de Toronto, viu episódios de violência e processos judiciais mútuos que transformaram a empresa em símbolo local de "ganância corporativa".

Embora o teor desta reportagem da Folha seja menos parcial na cobertura, toda vez que conflitos de classe aparecem, no geral a imprensa mostra o que ela é: classista. Na verdade, está cada vez mais difícil sustentar o mito de uma pátria, para qualquer das classes em disputa, sejam trabalhadores ou empresários. Isto na prática. No plano das ideias, segue a mesma xenofobia de sempre. Por aí, disseram que:

Pessoas que conhecem bem a situação disseram que o estilo hierárquico de administração da Vale entrou em choque com a abordagem mais consensual da Inco, enquanto a inesperada compra encontrou resistência e ressentimento por parte da indústria canadense, mais acostumada a adquirir mineradoras brasileiras.

Já há muito o pensamento socialista, seja ele anarquista ou comunista, havia percebido o non-sense de assalariados se aferrarem a ideia de pátria. As multinacionais já sabem muito bem disso. A imprensa vai aprendendo. Os governos são uma contradição, ora indo na contramão da história, ora forçados a seguir com ela, muito a contragosto e com todos os sacrifícios, como faz agora a Grécia, e como logo farão Portugal, Espanha, Alemanha e EUA. Vai devagar, mas a tendência é que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo perceba a mesma coisa: a aldeia global continua dividida em classes.