1.12.12

Uma ideia engenhosa


"Mais uma vez, brigadão pelo som. (...) Sei que é sacanagem colocar os cds assim na internet porque não compra os cds, mas existe uma tendência dos artistas ganharem mais em shows do que na venda de CDs."

Ah, os indivíduos! entrelaçados uns com os outros, produzindo suas ideias...

5.11.12

Nunca mais!

E eu juro que nunca mais, a partir de agora, me entregarei a atividades fúteis, que sejam principalmente inúteis ou intrinsecamente hipócritas, que continuem a mediocridade geral da vida, do sistema, da sociedade - que seja! - não!, eu serei definitivamente livre no futuro, que existirá sim, pelo amor de deus parem com as malditas previsões apocalípticas de fim de mundo, de catástrofe ecológica, de crise econômica - que o pior de todas essas coisas é que o mundo não acaba, a água continua a chegar nas torneiras (desde que se pague a conta), a crise econômica é só um "momento" da economia, do qual todos esperamos sair. Ah... eu estou farto. Como tenho vontade de cuspir em todos vocês e, especialmente, neste ser que tenho sido. Indigno da eletricidade que consome, da pipa empinada por Benjamin Franklin.

3.11.12

A modernidade, a escola e o tédio


A vida moderna é um tédio. Por quê? Tudo acontece sempre no mesmo ritmo, da mesma forma, do mesmo modo. E tudo o que vem depois, a seguir, é sempre alguma coisa que a gente já estava esperando. E a gente espera, espera bastante. A gente espera na fila do supermercado, a gente espera na fila de ir ao banheiro, a gente espera na fila da rua, do cinema, da festa. Por que não ficamos simplesmente em casa? Nesta fila imensa de casas que estão ao meu lado. Neste beco reto ou naquela rua curva - é sempre igual.

Se não tivéssemos sido educados, nunca viveríamos assim.

05 de junho de 2012. Uma escola. Prova da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). Oitavo ano A. Os alunos reclamam que não foram avisados. Perguntam se valerá nota, o que acontecerá se não fizerem? Informam-se sobre a duração da prova; respondo que serão três aulas. Lamentam. Perguntam o que acontecerá se acabarem antes. Digo que é inútil: melhor fazerem devagar, com calma, pois a folha de respostas só será entregue faltando 30 minutos para o final. Resmungam contrariados. Um terço da sala faltou (é antevéspera de feriado prolongado). Há grupinhos concentrados na sala vazia. Separo alguns; reclamam. Começo a ler as instruções: dizem que não precisa. Sento-me e tento resolver a questão um. Vinte minutos depois uma aluna me pergunta se deve passar a caneta, se pode deixar a lápis. Respondo que pode. Ela acabou: cruza os braços sobre a carteira e, porque desconfortável, ajunta ainda alguns materiais - cadernos e livros -, para ter melhor apoio, e dorme. Antes dela, mais uma aluna, passados dez minutos, já dormia. Com 40 minutos decorridos de prova, dez dormem, três olham fixamente um ponto à frente, um estala os dedos, um outro está inquieto e agora tenta dormir, e agora levanta a cabeça, um atrasado - que chegou às 07h50 - fez a prova em 20 minutos e agora desenha, outro lá ao fundo - dos últimos a acabar - agora rabisca a carteira, e só uma menina faz - não, esperem, ela boceja e bota a prova sob a carteira; acabou, e põe-se a esfregar a borracha na mesa, apagando os cálculos. Seu lápis cai; ela pega. Senta-se meio torta, as pernas ligeiramente voltadas pra direita, mãos lançadas sobre a mesa, cabeça a descansar, cabeços longos estendidos sobre a lateral direita da fila, um braço direito esticado, a mão já tocando a cadeira à frente, braço esquerdo dobrado, mão a apoiar o queixo - agora muda, junta os pés ao centro, endireita-se e cruza os braços na mesa, apoia a testa frontalmente sobre os antebraços - e sossega. Foi a última a acabar. São 08h20; faltam 40min para as 9h. Gabriel e Biatriza começam a conversar baixinho. Advirto-o e ele obedece, até certo ponto, pois já se virou de novo. Só entrego a folha de resposta às 9h, pensei: passo para a questão dois. Por que tenho a sensação de que fiz algo errado? 08h35 - explodem alguns focos de conversa, baixa, quase muda: mando Debbie virar-se (ela conversa com Rafaela Feitosa, que está atrás). Ela atende e vira-se, com uma cara triste e, ao mesmo tempo, engraçada, quase sorridente. Há um grande barulho de crianças pequenas, vindo do pátio. A manhã é escura, o tempo é frio: chove ou garoa agora. 08h43 - chove mais forte. Ouço o som no telhado, gordas gotas. Rafaela Feitosa vira-se outra vez para trás. Não preciso falar, ela mesma se corrige - e a Helena, colega de trás, não tem outro remédio senão dormir. Mateus Mota, à primeira carteira da fila da porta, braço esquerdo parcialmente encostado no joelho esquerdo, braço direito completamente apoiado no joelho direito, mão a segurar o queixo, olha desoladamente para o chão, triste e calado. A chuva sobre o telhado. 08h50 - entrego a folha de respostas. Luna preenche as respostas em tempo recorde: 3 minutos. 09h03 - fim da prova.

Todos entregaram.

8.10.12

A social-democracia apimentada: particularidades da política em países de extração colonial


TV Cultura, vésperas da eleição de 1994, Brizola no centro do Roda Viva.



Clóvis Rossi (questionando a natureza da social-democracia, que no mundo todo envereda pelo neoliberalismo): "O sr. parece um soldadinho marchando em direção contrária ao batalhão, e acha que todo o batalhão tá errado, só o sr. tá certo." 

Leonel BrizolaSabe o que ocorre? Uma vez o Willy Brandt [1913-1992, social democrata alemão] me perguntou: Brizola, qual é o futuro da social democracia no Brasil? Digo: olha, eu acho que é um encontro com nosso destino. Porque... embora existe muita impostura. Nós já tivemos até um partido social-democrata, que era um partido dos latifundiários, era um partido das oligarquias, era o PSD. Agora surge o Partido da Social Democracia (PSDB), cheio de democratas-cristãos, porque o sr. Montoro - meu prezado amigo Montoro é um democrata cristão, de raiz, de origem. Democrata cristão? - eles lá perguntam. É, sim senhor... Então, acontece que há muita impostura no Brasil. Mas eu disse a ele: agora, Dr. Brandt, não é como aqui [Europa]. A social-democracia brasileira tem um pouco de pimenta malagueta. O sr. sabe o que é pimenta? Não. Então eu expliquei o que era pimenta. A social democracia, num país como o nosso, não pode ser igual à espanhola, nem mesmo à espanhola, muito menos à alemã. Nós, aqui, quando queremos fazer as reformas internas, nós vamos proceder e tocamos no interesse internacional. Lá não. Eles fazem o que querem internamente. Então, a social-democracia do terceiro mundo é diferente de lá.

31.8.12

Jornal de Ciências Sociais # 3

Meus amigos, meus inimigos

Leiam, gozem ou achincalhem o Jornal de Ciências Sociais - aqui vai a versão digital. Colaborei com, na seção "racismo em debate". Quem quiser o papel, eu mando.



No site do colegiado, acham-se os números anteriores.

3.8.12

O politicamente correto


Há mais ou menos 7 anos, pouco antes de o heróico Roberto Jefferson anunciar o mensalão, o governo federal brasileiro cometeu um equívoco. Não foi a compra dos parlamentares - operação tão velha e banal como o próprio dinheiro. O equívoco foi a publicação de um Manual do politicamente correto (que só é equivocado se a intenção foi, como parece, eliminar preconceitos/racismos etc. etc. por meio de ideias). A oposição - de partidos políticos a associações ruralistas, passando por setores da imprensa paulista, filósofos blasés, comediantes e blogueiros da Veja - caiu em cima. Resultado: desde então, qualquer atitude que mire algum princípio ético, real ou imaginário, posto no presente ou no futuro, é tachado de "o politicamente correto". Não fosse isso, a publicação teria sido totalmente inútil; mas, na medida em que serviu como objeto de crítica à atividade filosófica de racistas, homofóbicos, militares do alto escalão, conservadores, evangélicos, seguidores do reverendo Moon, diretores de jornalismo da Globo e a classe média do eixo Rio-SP que os assiste - toda essa gente boa - e, ainda mais, por ter se convertido em alvo comum de parlamentares machões e toda a canalhada que navega pelo caldo do capital tardio do sul, incompleto e incompletável, o "politicamente correto" terminou por produzir involuntariamente um bom motivo para mascarar os piores vícios, que, travestidos de liberalidade, insurgem-se furiosamente contra qualquer palavra em nome das regras de boa convivência ou, que vem a dar no mesmo, humanidade.

Desde então, apontar o racismo, armar-se contra a violência, denunciar a injustiça, exigir a verdade dos cadáveres desaparecidos, defender direitos humanos (como o aborto), dar pão a pobre (inda mais, a pobre nortista) - tudo é "a ditadura do politicamente correto", que cerceia a liberdade de ser vil. A reação ao "politicamente correto" é a reação do politicamente errado. É o conservador em barbas revolucionárias, é o atraso elevado à vanguarda, é a moralidade dos imorais, é a sagração dos instintos sujos. Nesta reconversão dos valores, Ali Kamel escreveu que "Não somos racistas": Arnaldo Jabour aplaudiu. E até a Inquisição foi beneficiada, no verbete Isabel I de Castela: "Seu legado também tem um lado mais politicamente incorreto: favoreceu a inquisição espanhola (esta que não era uma instituição da Igreja) e foi responsável pela expulsão dos judeus da Espanha em 1492 (Decreto de Alhambra)" (grifo meu). Nem a Wikipédia escapou do ardil oposicionista. De um lado, o politicamente correto torna-se desprezível e, de outro, o desprezível suaviza-se até o purgatório do "políticamente incorreto". Donde se conclui que a revivescência de valores tipicamente de direita não é privilégio da Europa. Se levada ao extremo tal re-valorização, a revolta contra um parlamentar corrupto não tem mais valor algum: aquela, por ser desprezível; este, por não ser tão desprezível assim.

É singular o caminho do PT. Sob orientação neokantiana, movido a revoltas contra a corrupção, estrela vermelha das CPIs - em defesa da ética nasceu um partido, já glorioso na origem, já operário, já de esquerda, porém renovada, isto é, não marxista. Pra botar ordem na coisa. E perde-se neste labirinto da moral. Há alguma coisa errada neste caminho, que, como o manual, deve ter sido repleto de boas intenções, tanto em gênese como em desenvolvimento, gerando embora produtos tristes e mesquinhos.

7.7.12

 Água, amendoim, chocolate... quê que vai ser, patrão?
 Nada hoje.
"Patrão"... O comércio vespertino em semáforos e os insultos de classe: odeio tudo isso.

3.7.12

A escola

Retrato-me - antes que seja tarde - e nego o que disse.

As bobagens sobre paz e guerra não merecem comentário. As sobre educação sim. O problema aí é outro: está na unidade teoria-prática. Melhor dizendo, na disjunção entre as duas, o que, no limite, resulta na eliminação da primeira, cotidianamente. Com isto, em vez de simplificar as coisas,  a grandeza da questão eleva-se a um complexo problemático. Que, se por um lado, dificulta a solução (que agora tem de ser global), por outro não envereda pela pobre estrada das soluções parciais, cujos efeitos tem necessariamente de ser parciais, efêmeros e paliativos. Também, corrige a miopia de se enxergar a escola como ilha sagrada, descolada do restante da sociedade - que é, na realidade, todos os demais indivíduos, igualmente seccionados teórico-praticamente, em maior ou menor grau. Em contrapartida, se ela é parte dos males, também é parte da solução: fica assim reposta a escola como lugar de depósito de esperanças. Desde que não se faça nela a já muito conhecida "educação bancária".

A unidade teórico-prática na escola se dá de maneira bastante difícil atualmente – e falo primeiro do que é, para depois falar do que deve ser. Na verdade, a unidade inexiste. Porque a relação social de ensino-aprendizagem é realizada sob a forma da alienação (no sentido de 'compra-e-venda' de trabalho), ordenada por instituições do Estado ou da iniciativa privada, orientada para vagos princípios morais cada vez mais contraproducentes à realização do humano, porque pautados por valores, leis e órgãos do Estado, sabidamente instituição de classe – num momento em que é flagrante a crise da escola, da família, dos indivíduos, da sociedade em geral, refletindo não mais que as crises do capital e seus produtos. Curiosamente, o sistema se mantém de pé. Mas a situação da escola, como do mundo, é calamitosa. Se estamos pensando numa relação social de ensino-aprendizagem para além destas instituições, a coisa pode mudar de figura. Mas, aqui, restrinjo-me à educação institucionalizada, especialmente a básica-pública. Disse lá atrás que a relação ocorre sob a forma da alienação porque os professores são assalariados, em geral. Portanto, ao ensinar, seu fim último é o salário (e não poderia ser de outra maneira nesta forma social) – dando-se uma unidade prático-teórica das mais mesquinhas e apequenadas (se se considera que o produto da escola não é o mesmo produto da fábrica de automóveis), pois muitas vezes unir prática e teoria verdadeiras na escola é contrapor-se à própria instituição, pondo em risco o pescoço; em suma, a relação social de ensino-aprendizagem vira uma relação social mercantil, onde o fim último não é o aluno, mas outra coisa. Se a coisa se atenua no ensino superior (e deve contribuir para isso a presença ali de subjetividades mais desenvolvidas - mas não acredito numa cisão tão profunda), no ciclo básico ganha feições horrendas. Isto me parece um nó a ser desatado: se não se resolve primeiro, e mesmo que só venha a se desatar por último, todos os primeiros passos devem estar a ele subordinados e tê-lo como guia.

É preciso em primeiro lugar ter claro que – e entramos no que deve ser – a ação humana é teleológica (orientada para um fim). Há em voga estreitas concepções de escola que mandam apenas fornecer mão de  obra para o mercado - o que frequentemente põe perguntas como: pra que serve ler poesia? Se a concepção de formação quer ir além disso, não pode ter o professor outro objetivo que não a formação integral, a realização multilateral das potencialidades humanas. Tudo isto já foi inclusive elevado até à forma de lei, diretrizes e discursos escolares. Falta agora realizá-lo no mundo sensível. Depois, tendo em vista a especificidade do material a ser formado, será preciso, para que haja formação integral do aluno, situações de ensino-aprendizagem que lhe permitam agir teleologicamente, unindo palavras e ações. Por falar nisso, será preciso conceder ao aluno a liberdade de falar e agir. Isto eu ainda não vejo posto, e é pressuposto de tudo o mais. Aqui entra uma outra face do problema teoria-prática: o aluno é forçado a estar na escola. Por vezes, resiste ao ambiente, ao aprender e até ao próprio ato de pensar. Isto traz consequências danosas à escola e aos professores. Não é necessário que todos resistam; a atividade de uma pequena parcela pode se propagar em situações como essas, gerando até mesmo resistências passivas nos demais indivíduos. Constantemente, o discurso dos professores orienta-se no sentido de burlar o pensamento do aluno, convencendo-o de que este suposto mal é na verdade um bem - que ele, ignorante, ainda não pode ver - mas vai ver um dia. Nessa hora, costuma aparecer o "mercado de trabalho".

Para conceder ao aluno liberdade de pensar e agir, dentro da imposição da educação universal pelo Estado, impõe-se o pensar estratégias, o colecionar instrumentos e meios para tal fim, no limitado espaço escolar da sala de aula. Para nós, aparece aí a resistência do material real às nossas intenções ideais. Como superá-la? A pesquisa, a leitura, o intercâmbio e a produção teórico-pedagógica vão ajudar muito, mas não bastam, porque se põem num nível muito geral e universal. É preciso conhecer a realidade singular e suas particularidades; eu acredito que o registro dos problemas e obstáculos cotidianos permite tomar consciência deles: a sua escrita no momento em que ocorrem e a sua leitura posterior, já num momento de reflexão, contribuem sobremaneira à unidade prático-teórica. Este ponto é mais simples de resolver; o primeiro é mais difícil, porque professor não tem tempo de ler e efetivamente não lê sobre o que faz e o que é. Este é o pior dos nós, porque é feio. Quando ocorrem as escritas e as leituras, também não se encontra espaço para troca de experiências: não há tempo ou condições subjetivo-objetivas. Permanecendo isolado, nada se altera. Trata-se de outro nó, menos ruim, mas igualmente apertado.

24.6.12

Arte



Sem título
André Pereira de Oliveira
Aerografia, tinta acrílica
Fafil - Centro Universitário Fundação Santo André (junho/2012)

13.6.12

O bonito e o bom


... e isso, senhoras e senhores, é o que eu tinha a dizer sobre África nesta noite.
 Bem, agora a mesa está aberta a perguntas.
 Eu... eu queria saber o seguinte: e a escravidão? Cê num falou disso.
 Ah, não, mas isso já se falou demais. Agora o que a gente tem de falar da África é o que ela tem de BO-NI-TO: os reis, as civilizações, a cultura, a arte... É tanta coisa, é um universo tão grande, que a gente não precisa ficar repetindo esse passado. O quê que a África tem de bom? Essa é a pergunta.

8.6.12

O preconceito e o autêntico sinal da nossa época

"(...) Esta assim chamada razão dá maior valor, em contraste com a verdadeira, ao sentimento ou pressentimento interior, e desta maneira o subjetivo torna-se a medida do valor, isto é, uma opinião individual como cada qual é capaz de formar. Tal convicção individual não é, portanto, mais do que a opinião, a qual assim se converte na mais alta finalidade para os homens.

(...) Indiscutivelmente, a convicção individual é o fato último e absolutamente essencial que a razão e a sua filosofia, do ponto de vista subjetivo, reclamam para o conhecimento. Existe, porém, diferença entre a convicção baseada em estados subjetivos - isto é, sentimentos, aspirações, intuições, etc. - e a convicção que brota do pensamento e da compreensão do conceito e da natureza do objeto. No primeiro caso, a convicção não passa de mera opinião.

Esta oposição entre opinião e verdade, que se delineou claramente, encontramo-la já na cultura do período socrático-platônico (período de decadência da vida grega), como o antagonismo revelado por Platão entre opinião (dóxa) e ciência (epistéme). Idêntica oposição topamos ao tempo da decadência da vida pública e política romana, no reinado de Augusto e mais tarde quando campeavam triunfantes o epicurismo e a indiferença em matéria filosófica. Neste sentido, quando Cristo disse: Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade, Pilatos responde: Que é a verdade? A resposta é dada com ares de superioridade e significa: sabemos bem o que é essa verdade: uma coisa que conhecemos; mas fomos ainda além: sabemos que se não pode falar de conhecimento da verdade; é ilusão que já vencemos. Quem assim fala passou, de fato, para além da verdade.

(...) Para o homem franco a verdade permanecerá sempre uma palavra de suma importância. No que respeita, portanto, ao asserto de que a verdade não se pode conhecer, (...) se se aceita este pressuposto (...), não se pode compreender por que motivo o homem se ocupa ainda de filosofia (...)."

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. "Introdução à história da filosofia". Abril cultural, p.336-7 (Os pensadores).

A quem trate Hegel como cachorro morto, fica a advertência: ele está cada vez mais vivo.

6.6.12

Índice de valor de uso do livro


... e, por todas estas razões, senhoras e senhores alunos, recomendamos enfaticamente que leiam o livro, com calma e sem pressa, até porque estamos ainda no início de junho, e vocês poderão ler nas férias.
 É um piadista.
 Nas férias eu viajo...
 É obrigado a ler esse livro?
 Por quê que a gente tem que comprar? Tá errado isso daí.
 Pra quê que eu tenho que ler isso?
 Pode sair pro intervalo, sor?

A alienação do signo

Quando a gente é pequeno e lê no ônibus: "FALAR COM O MOTORISTA SÓ O INDISPENSÁVEL", pode pensar que "indispensável" é o nome do cobrador, e que este é o único autorizado a "falar". Ou quando ouve cantar: "O cravo brigou com a rosa / debaixo de uma latada", eu por exemplo pensava: "coitados, além de brigando, alguém ainda vai lá e dá uma latada neles?!" E não era nada disso, mais tarde descobri o significado. Mas, agora, com a gente grande... Querem nos fazer esquecer tudo o que aprendemos? E foi pensando nisso que me vi a mim, tão realista e sério - a devanear entre prateleiras de supermercado, perdido em déjà vu, segurando um alimento da marca carrefour que por alguma razão se chama "pão caseiro". Deve ser a tal arbitrariedade do signo linguístico.

Daí cheguei a uma pergunta terrível: haverá um mercado de palavras?

25.4.12

Propriedades

a Décio Sá (in memoriam)

Eu não tenho casa:
aluguel é 30 dias.
A liberdade é pouca:
acaba onde começa a sua.
A propriedade de meu carro é duvidosa:
a obsolescência programada lhe corrói.
Também não tenho amigos:
ritmos de trabalho, de trânsito, de tráfego
- de informações, mercadorias e serviços -
a intensidade da vida moderna os rouba de mim.
Cada poro do tempo se ocupa e me atravessa.
Meu corpo anda à espera de um tiro.

Eu só tenho a palavra.

18.4.12

Uma tarde

06 de março. 18h. Uma tarde lendo e-mails, respondendo palavras. Sem cigarros. Meu deus, que faço da vida. Essa vontade de fumar. E ler... Viciado? Não, não posso sair agora, é preciso pelo menos concluir uma leitura. Nada que se compare a um leitor de orellhas, mas vou me tornando esse desgraçado leitor de primeiros capítulos. Que, no fim, só escreve relatórios... Crise de abstinência... Ou a bunda amassada? De mais a mais, a cabeça cheia do vazio dos cálculos. A boca sêca, o pulmão pede fumaça, um carpe diem rebrilhante como nome de puteiro luz na mente. É tempo de embriagar-se? 30 anos jogados no lixo. Nem um título, nem um livro, nada. Nenhuma resposta ao que a humanidade deu, ou vendeu. Mesmo a mim, que será do título, do livro, sem mercado de trabalho, feiras, viagens... Não será a ausência de resposta o equivalente da nossa miséria? Não. A pobreza, a virtude, o vício deve ser só meu, como tudo. Ah, se eu soubesse o que fazer...

14.2.12

Sobre a capetização do marxismo

Sobre isto, pediram-me uma opinião. Embora gratíssimo pela inclusão, não tenho lucidez para discutir isso. O ceticismo tem rondado até o modo como desço as escadas, cumprimento as pessoas ou escovo os dentes. Desconfio de todos os caminhos e propostas, e não tenho nada melhor a propor. A estratificação da classe trabalhadora em infindas gradações e matizes complicou a coisa. Isto deve ter causado a existência de uma infinidade de seitas políticas. O indivíduo é cada vez mais só, livre, autônomo e desligado da classe. O pensamento, acompanhando o movimento geral, parece ter se fragmentado também nas melhores cabeças, e um olhar unificado tornou-se impossível. "Pensar consigo mesmo, se não é inteiramente impossível, exige pelo menos bastante coragem. E os telemóveis, permanentemente ligados, mesmo nas reuniões de amigos, impedem qualquer conversa continuada. Até durante o acto de defecar, tradicionalmente propício à meditação, em que todas as pessoas reproduziam a atitude, e sem dúvida o espírito, do celebérrimo Pensador de Rodin, o livre curso das ideias passou a ser obstruído pela intromissão do telemóvel."* A desordem das ideias determina e é determinada pela "maldita práxis". O estudo ocupa um espaço relativamente infinitesimal em nossas vidas, premidas pela busca da mercadoria essencial, que contém em si todas as outras. Os nossos cacos, que somos, e os cacos de pensamento que temos - eu não digo que signifiquem o fim da espécie, mas bem podem vir a ser o nosso fim, o fim de uma época ou o fim dos ideais elevados que viemos alevantando. Para o momento convém o estoicismo - mas isto é francamente ruim, e vocês logo perceberiam a fraude. Serve tão somente como um plástico entre os ovos.

*João Bernardo. “Algumas reflexões acerca do livro ‘Democracia Totalitária’ ”. PREC. Põe, Rapa, Empurra, Cai. Nº zero, Nov. 2005. Disponível em: http://grupogetrama.blogspot.com/2009/02/sobre-o-democracia-totalitaria.html Acesso em: 21 nov. 11.

5.1.12

Conversa com os mortos

 “Chegando a noite, de volta à casa, entro no meu escritório: e na porta dispo as minhas roupas cotidianas, sujas de barro e de lama, e visto as roupas de corte ou de cerimônia, e, vestido decentemente, penetro na antiga convivência dos grandes homens do passado; por eles acolhido com bondade, nutro-me daquele alimento que é o único que me é apropriado e para o qual nasci. Não me envergonho de falar com eles, e lhes pergunto da razão das suas ações, e eles humanamente me respondem; e não sinto durante quatro horas aborrecimento algum, esqueço todos os desgostos, não temo a pobreza, não me perturba a morte: transfundo-me neles por completo.”

Maquiavel. Carta a Francesco Vettori (10/12/1513) Apud Chasin. O futuro ausente: para a crítica da política e o resgate da emancipação humana. Ad hominem. N. 1, tomo III – Política. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, pág. 221.