27.6.10

Notícia

Igreja Universal oferece drive-thru da oração

Comentários das pessoas:

"Pela segunda vez, na mesma semana, o florista Eugenio Ferreira dos Santos, de 47 anos, saiu do trabalho e decidiu parar por alguns minutos em frente ao templo. “Eu recebi a oração e me senti bem. Sempre que posso, passo aqui para receber a proteção divina”, comenta. Priscilla Amaral, administradora, de 24 anos, também gostou da ideia. “É ótima essa iniciativa, pois já que estou parada no trânsito, não custa nada entrar um pouco, receber a intercessão de um homem de Deus e seguir para casa abençoada”, afirma. Até mesmo motociclistas, que não costumam ficar presos em congestionamento, param por alguns minutos em frente à igreja. “É bom estar protegido, ainda mais quando se anda no trânsito de São Paulo de moto. Se todos passassem por aqui, com certeza não teríamos tantos acidentes”, afirma o motociclista Mario Reinaldo, de 40 anos."

Fonte: Iurd

Só faltou o motociclista dizer que as leis da física (força da gravidade, dois corpos não ocuparem o mesmo lugar etc.) e a dificuldade de equilíbrio em duas rodas perderam a influência sobre os acidentes de trânsito. Até quando seguiremos ostentando o título homo sapiens sapiens?

18.6.10

Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga

Quando me disseram que ele estava morto, por uma mensagem sms recebida em meio ao trânsito e à felicidade de uma sexta-feira, ficou a pairar em frente a pergunta, E agora, que faço, e era realmente um não saber o que fazer, também por uma dessas mortificações instantâneas que nos deixam provisoriamente sem alma. É estranho que alguém a quem nunca cumprimentamos e que não nos conheça, nem a mim nem à amiga que me escrevia, possa nos causar dor de perda, que vai permanecendo ainda, passadas dez horas de sua morte. Temos em comum amar José Saramago. Metonimicamente. Me veio então o imperativo de fazer uma homenagem, passou pela cabeça lhe dedicar uma oração, ideia ridícula rapidamente afastada com um abanar de orelhas, depois veio um minuto de silêncio, coisa também descartada, embora menos católica, mas igualmente supersticiosa e imprópria, porque não se poderia nunca calar o pensamento quando morre o homem que passou a vida a dizer o que pensava. Ainda morto, sua voz continuará a falar. Ad eternum. Deus terá agora uma boa companhia, desde que exista, fique claro. Imaginemos o diálogo:

"[...] assim como há milagres para o bem, também os tem havido para o mal, testemunhem-no aqueles infelizes porcos da Escritura que se lançaram ao precipício quando o Bom Jesus lhes meteu no corpo os mafarricos que no endemoninhado estavam, de que resultou padecerem martírio os inocentes animais, e só eles, pois muito maior tinha sido a queda dos anjos rebeldes, logo feitos demónios, quando do motim, e, que se saiba, não morreu nenhum, com o que não se pode perdoar a imprevidência de Deus Nosso Senhor que por essa desatenção deixou fugir a oportunidade de lhes acabar com a raça por uma vez, de bom conselho é o provérbio que previne, Quem o seu inimigo poupa, às mãos lhe morre, oxalá não venha Deus a ter de arrepender-se um dia, tarde de mais. Ainda assim, se nesse fatal instante tiver tempo de recordar a sua vida passada, esperemos que se lhe faça luz no espírito e possa compreender que nos deveria ter poupado, a todos nós, frágeis porcos e humanos, aqueles vícios, pecados e sofrimentos de insatisfação que são, diz-se, a obra e a marca do maligno. Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga."

(História do cerco de Lisboa. RJ/SP: O Globo/Folha de S.Paulo, 2003, p. 19)

11.6.10

Memórias do cárcere

Eu nunca li Michel Foucault, mas é como se o lesse todos os dias. O Estado é um poder tão abrangente, que desconfio teremos uma grande surpresa quando um dia tivermos a completa compreensão do que somos. Porque, uma vez conhecida a parcela de nós cuja construção é obra do Estado, e desconsiderada esta parte constitutiva da nossa essência, receio que, neste resto de ser, sobrará, como aquilo que naturalmente somos, muito pouco.

Diz Graciliano Ramos que, logo ao ser preso, em 1936, foi mais ou menos bem tratado pelos militares que o encarceravam na primeira prisão, em Recife. Mas, ao chegar à cela, o capitão solicitara, mais ou menos cortesmente, que prometesse não tentar comunicação com o preso vizinho, sem explicar por que. Várias semanas depois, e já sabendo que ia ser transferido para o sul, Graciliano recebe uma bolinha de papel com uma mensagem atirada pelas grades pelo vizinho, e entra na dúvida sobre responder ou não responder.

[...] aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. – "Está ali um sujeito com quem o senhor não se pode entender." – "Perfeitamente." Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior? [RJ: Record, 1996, p. 118]


É irônico que professores costumem queixar-se de que os alunos não prestam atenção. Ora, a maior coisa que a escola ensina, com efeito, e nisso todos saem escolados, é ouvir frases sem dar atenção a elas. Porque, das muitas frases que circulam cotidianamente – e que todos nós ouvimos, em tvs, revistas, jornais, outdoors, regras, leis etc. –, se lhes déssemos a devida atenção, concluiríamos não devemos ouvir nem metade. Porque desnecessárias, ilógicas ou inúteis – adjetivos também aplicáveis a mais da metade do currículo escolar. A questão é que, pensando bem, a fertilidade em horrores não é exclusividade da cadeia. É maior. Está em outro nível, do qual a cadeia faz parte: o Estado. As escolas, um braço do mesmo monstro, armam cotidianamente, proibindo recados e papéis entre carteiras, ciladas semelhantes. Sempre com o mesmo objetivo: criar covardes. Em maior ou menor grau, todos nós que passamos um dia pela escola temos propensão à covardia.

O pior de tudo é que não posso me orgulhar de ter percebido isso. Vejo claramente, neste momento vital, a mesma possibilidade de comunicação, de solidariedade, de transgressão... e hesito. Que falta para fazer o que quero? Uma inércia maior que mim me amarra ao que sou e ao que faço. Ando num deserto de pronomes oblíquos sem nenhuma gota de eu. E sigo, ouvindo frases a que não dou atenção, calando a voz interior que me tortura, sendo uma vez mais o mesmo. E sinto que não estou só. Bom? Não, mas deveria ser, porque não fui educado para me sentir bem sozinho: fui produzido em série. Feliz?

7.6.10

Aham!!!

Hoje é um dia histórico. Luiz Felipé Pondé mostrou quem é. Em suma, um reformador da lógica, desde que Aristóteles a fundou. Vai parecer que eu estou pegando no pé do menino, mas hoje, na Folha, seu texto foi demais.

Começou defendendo a liberdade de pensamento:

"O que você faria se algum professor pregasse o evangelho ao seu filho na faculdade? Provavelmente você lançaria mão de argumentos do tipo que os intelectuais lançam contra o ensino religioso: 'O Estado é laico e blá-blá-blá... porque a liberdade de pensamento blá-blá-blá...' "

Depois, atacou a liberdade de pensamento:

 "Pergunto-me por que não proíbem professores de pregar o marxismo em sala de aula e toda aquela bobagem de luta de classes e sociedade sem lógica do capital? Isso não passa de uma crendice [...]"

Por fim, mostrou quanto conhece sobre a crendice da qual fala:

"[...] torturam-se alunos todos os dias com pregações vazias como essas, que apenas atrapalham a formação deles, fazendo-os crer que, de fato, 'haverá outro mundo quando o McDonald"s fechar e o mundo inteiro ficar igual a Cuba'."

Ele crê que conhece o país e o mundo onde está, quando apenas está neles, sem vê-los de fato. Vejamos:

1. Ele faz crer que há muitos professores marxistas, quando na verdade mal se veem os marxistas entre estruturalistas, funcionalistas, evolucionistas e marxistas-recauchutados à Maximillian Weber [isso pra falar só no ensino básico; na faculdade, a coisa só piora: a quantidade de cursos técnicos ou a-históricos é tão grande, que o marxismo fica restrito às poucas ciências que lhe servem de objeto. Mas, ainda assim, é raríssimo achar um curso com orientação marxista. O que se encontra é um ou outro professor isolado, o que conta pouco.]

2. Que havendo estas quatro correntes de pensamento, proibindo uma e preservando as outras três, por sinal dominantes (basta ver a grade do ensino básico, com supremacia horária discutível das linguagens [português e matemática] e ciências naturais [biologia, física, química], e tempo minúsculamente ridículo para as ciências da sociedade), presta-se um grande serviço à ciência.

3. Que Cuba, Coreia do Norte, China e Vietnã têm ainda alguma coisa de marxistas.

Eu, na verdade, sei que ele não fez mais que uma crítica em forma de brincadeira. Mas saiu tão superficial, chula, rebaixada, que, ainda brincadeira, a falta de sutileza, de fineza no humor revela em grande medida, sem prejuízo de algum pequeno ressentimento escondido e guardado, um vasto universo de ignorância, só posso crer que proposital, por parte do autor. Francamente.

Eu, cá por mim, não sou contra perspectiva alguma nas escolas. Por mim, eu formaria os alunos com todas as visões possíveis. Que eles escolham para si dentre todas, inclusive o criacionismo, qual explica melhor a realidade. Qual o problema?

1.6.10

Ciência


"Acho as ciências humanas incertas e inúteis."
Luiz Felipe Pondé*

Faz algum tempo, nasceu um discurso. Deve ter sido chocado no XIX, quebrou a casca dos ovos no começo do XX e veio serpenteando até nossos dias. Esgueirou-se sinuosamente por entre duas guerras mundiais, a grande crise de 29, nazismo, fascismo, stalinismo, bombas atômicas, guerra fria, homem na lua, ditaduras militares, crise, queda e construção de muros, neoliberalismo, crise. Avançando sub-repticiamente, em ziguezagues, alcançou o status de verdade e alojou-se nas mentes, mesmo as mais inteligentes. Aí foi onde, ironicamente, criou as raízes mais profundas. Arrastando-se pelo chão, andando, movendo-se tortuosamente, elevou-se a uma categoria pura e plena: a das ideias ornadas de lama, limbo, musgos e superstições.

Há um bom tempo ouvimos que "a ciência falhou em promover bem-estar à  humanidade"; que "a fé nesta ciência revelou-se um erro".

Pondé parafraseia Pascal, que, referindo-se a Descartes, provavelmente louvava a matemática, sempre exata na quantificação do vasto e grande mundo, em contraposição à filosofia, sempre incerta, apesar da simples tarefa de desvendar como funcionam as pequenas relações humanas. Há nisso mais ideologia política e religião do que, propriamente, ciência. Afinal, falhou a ciência ou falharam os homens de ciência? É importante revelar o tempo todo o que somos: agentes. Se o resultado de nossa atuação acarreta prejuízos, deve-se apontar quais sejam. Principalmente quando se sente um rebaixamento aviltante da espiritualidade – de dimensões humanas que se perdem. O funcionamento de um mundo humano depende de descobrirmos a causa magna de seu movimento, para adequá-lo a nossos desejos.

Ao longo do século XX o grosso da produção científica teve em vista este objetivo? Que significam os bilhões das naves espaciais de ontem e de hoje?

*Folha, ilustrada, 31/05