16.6.07

Disgrafia

Descobri que sou disléxico.

O dicionário diz que a dislexia é a perturbarção da leitura causada pela dificuldade em reconhecer a correspondência entre sinais gráficos e fonemas. Isso explica algumas coisas que me aconteceram. Mas talvez eu tenha um tipo de dislexia ainda não catalogado.

Tudo começou quando a coordenadora foi examinar meus diários de classe e percebeu excesso de corretivo. Até aí tudo bem: organização nunca foi meu forte; caligrafia boa, nunca a tive; e erros em preenchimento de diário são bem comuns a neófitos. O principal é que, mesmo com as tais "rasuras", não deixei passar nada; elas eram a prova de que corrigi todos os erros. E, assim, continuei feliz.

Se até ali esse primeiro sinal não me havia causado impressão, outros dois incidentes vieram como reforço. Postar bobagens pelo orkut é um problema: ainda quando brincamos, percebem o quanto não conhecemos da nossa materna língua. E escrevi, sei-lá-por-que, "expremer" com "x". Por sorte, minha interlocutora era uma gramática, e fui admoestado sem complacência alguma. Ainda tentei argumentar que era um absurdo nossa ortografia fixar a forma "espremer" com "s", se na origem, em latim, se escrevia "exprimere". Mas o que fazia era apenas tergiversar num mundo virtual; na realidade, estava com a pulga atrás da orelha.

Eis que, então, numa sexta-feira quente, quando pensava em pós-graduação em literaturas lusófonas, quando revia velhos amigos de faculdade, quando me inscrevia para o curso do próximo semestre, notei que estava a errar demais no preenchimento da ficha. Ia me inscrever para apenas duas disciplinas e já havia consumido mais de quatro fichas. Ao fim da quinta tentativa, resignei-me. “Isso é dislexia, ou déficit de atenção”, explicou-me uma amiga. Compreendi, não sem alguma perplexidade, que meus erros não são produto do descaso, mas antes efeito de uma perturbação mental. “Mas é uma perturbação especial”, conformei-me.

Leio bem: apenas não escrevo. Pensei então em forjar o termo “disgrafia”, para significar ‘a arte de escrever incorretamente, motivada por distúrbios cerebrais que anulam a formação, a escolaridade e o conhecimento gramatical do indivíduo’. Frustrado, descobri, entretanto, que o termo já existe desde a primeira metade do século XX. E destarte, num só dia, vi que a ortografia e o nelogismo me negavam. Apesar disso, está clara a especialidade que o termo “disgrafia” tem para mim.

Tenho razoável conhecimento ortográfico e, portanto, quando escrevo incorretamente, logo percebo o erro. Mas perceber o erro a posteriori resulta em problemas: para diários de classe, que não podem ter corretivo; para scraps no orkut, que, além de não ser o território da correção gramatical, é o reino do ócio; e para fichas de inscrição, que são sempre extensas e cansativas, gente! De modo que, leitor, perdoe o texto ruim: é obra da disgrafia.

E na ficha de inscrição o país onde nasci ficou assim grafado: “Brazil”.

9.6.07

Orgulho e Preconceito

Da leitura de Orgulho e Preconceito (1813), de Jane Austen (1775-1817), ficou-me: afinal, o preconceito é de Elisabeth e o orgulho é de Darcy, ou vice-versa. Orgulhosos os dois são. Fiquei apenas tentando encontrar o preconceito em Darcy, sem chegar a resultados. Aí, outro dia, esbarrei com o filme nas estantes. Fui ver.

Um bom filme, sim senhor, ambientado no XVIII, figurino muito bem feito (e apesar da bela atuação da bela Keira Knightley, talvez o figurino merecesse mais o Oscar 2006 do que a atriz), perfeita reconstrução de cenários, luxo, pompa, circunstâncias e todas as frescuras mais a que tinham direito. As imagens são bem fiéis ao livro, sobretudo as externas, recriando toda a riqueza em jogo, castelos, mansões, laguinhos cristalinos, extensos campos verdes etc. Os diálogos, ácidos, também lá estão, em sintaxe rebuscada, associação veloz de idéias, lambuzados em ironia o tempo todo.

É claro que a história toda tem um ponto fraco: é romântica. O enredo é irreal. É inverossímel alguém como a personagem principal contrapor-se à sociedade de seu tempo, enfrentá-la, desafiá-la e, ainda assim, casar-se, como se nada fosse, ou como se não fosse aquilo que ela, Elisabeth, mais critica. É claro que ela se casa em condições especiais; casa-se por amor. E, só pra mostrar que o amor vence tudo, exatamente por não buscar isso, casa-se com um homem muito rico. Mas, ora, isso não tem consistência racional alguma. Mas, enfim, é a tal "estética romântica", cuja parte pior é não deixar rolar, nem no filme, muito menos no livro, ato algum de lascívia ou libidinosidade. Nenhum beijinho, nada. Chega a dar raiva.

Em todo caso, se o enredo parece fraco, as personagens não o são. Por isso, vale a pena ver no filme personalidades tão consistentes, como o Sr. Bennet, cuja maior diversão é provocar a mulher; a mulher, Sra. Bennet, cujo ridículo instinto de casar as filhas torna-se irritante: oferece-as aos pretendentes como se fossem putas; a filha, Elisabeth, de personalidade difícil, debochada, subversiva; as outras filhas, que são, de fato, um bando de putas; Sr. Collins, o primo, que é um chato de galochas: vive elogiando todo mundo por onde quer que passe.

Não tem como não dar razão a Elisabeth: "Minha família está claramente competindo para ver quem é mais ridículo." Nem como não dar razão a Jane Austen: era uma mulher à frente do seu tempo. E à frente de muitas pessoas do nosso tempo.