24.10.07

O Senado Federal em 24 de outubro de 2007

Realmente, o cenário político brasileiro está desolador. Já nem mais pela corrupção, já nem pela inépcia, já nem pela descrença generalizada. Refalar o mesmo é o pior. No entanto, o que se vê dia a dia é a mesma lenga-lenga do governo, que nunca na história desta república fez tanto como fala que fez. A oposição não fica atrás, e é a mesma lenga-lenga de que o governo atual só vem mantendo as bases e programas do governo FHC.

Ainda bem que ainda restam os políticos folclóricos. Mão Santa (PMDB-PI) é um espécime em extinção. E dá gosto vê-lo, seja no plenário, seja na presidência do Senado. Hoje fez três coisas dignas de nota: a) citou Fernando Pessoa como o nariz, dizendo que "só não vale a pena, se a alma é pequena"; b) alertou o petista Eduardo Suplicy sobre o risco de cair numa "emboscada tucana", quando este em meio ao discurso cedia a palavra aos senadores Arthur virgílio e Flexa Ribeiro (e era mesmo uma cilada); c) depois de tanta falação destes últimos, renomeou os "tucanos" de "papagaios", para alegria do plenário.

O engraçado é que ninguém se ofende. E isso porque o PMDB pertence ao bloco governista. Outro dia o senador do Rio Grande do Norte José Agripino Maia mostrou-se ofendidíssimo só porque Lula referiu-se aos integrantes do partido dele, os democratas, como "demos". "Não são demos! São os democratas!" Ora, se não é o Mão Santa já nem se pode mais brincar em Brasília.

20.10.07

Duas coisas sobre Tropa de Elite

1 - O filme é bom. A gente sempre resiste bobamente às coisas que se popularizam. Mas o que Amarante diz sobre isso e o sucesso é a verdade.

2 - Já estava na hora de alguém pôr o dedo na ferida da classe média. No trabalho de Kátia Lund e João Moreira Salles, que é claramente a base do filme, aparece a queixa da polícia: "Eles vão e consomem drogas, financiam a compra de armamentos pelos traficantes e depois reclamam da violência." Não dá pra não entender a vontade de descer o cacete em todos os hipócritas que depois vão participar de passeatas pela paz.

16.10.07

até quando seguiremos
bebendo essa bebedeira,
e dizendo essas besteiras
em que não acreditamos?

até quando, até quando,
sorriremos estes dentes,
ficaremos firmes, crentes
no futuro, ou no melhor...

onde está a alegria,
essa mesma, passageira,
que cada vez é mais rara...

onde está a poesia...
onde estão as velhas caras...

pra que tanto trabalhar?
pra ter títulos reluzentes?
eu só quero em dias quentes
ter cerveja pra tomar

beber em praias distantes
rir para os dias chuvosos
tocar sons melodiosos
enrolar para acordar
nada ver: somente olhar...
divagar em pensamento
andar lento, e com preguiça...

e não marchar a calçada
das ruas que vão pra nada

7.10.07

Watchmen

Há cinqüenta anos o Sputnik era lançado pelos soviéticos e a Guerra Fria tinha um de seus mais quentes capítulos. Estava marcado o início da Era Espacial. Depois, chegou-se à Lua, e diferentemente do que ocorreu nas Grandes Navegações, nenhum Camões cantou a viagem de Neil Armstrong. Por que esse descaso? É certo que não dá pra comparar os objetos. Mas parece que algo maior mudou em nossa visão. É verdade que não há mais o interesse econômico das viagens do século XVI, mas talvez a gente é que tenha ficado meio blasé mesmo. Se Júlio Verne ainda fosse vivo talvez se frustrasse com o que vieram a se tornar as viagens espaciais. Como a pena do francês nos deu em 1865 a viagem Da Terra à Lua, antes de termos, de facto, viajado, parece que as viagens na realidade não vieram a ter a mesma graça que imaginamos na ficção. Posteriomente criada, uma das mais geniais obras que retratam o período ignoram-nas: Watchmen.

Watchmen é fantástico. Lançado nos EUA entre 1986 e 1987 pela DC Comics, com arte de Dave Gibbons e argumento de Alan Moore, é a prova de que, mais cedo ou mais tarde, o gênero HQ deverá ser reconhecido como uma das mais importantes formas de arte da nossa cultura, vencendo os preconceitos iniciais, como o cinema também venceu. Em seu enredo, passado entre as décadas de 50 e 80, o terror da Guerra Fria assola o mundo e a figura do herói é posta em cheque. Afinal, o que se pode fazer quando a luta contra o mal se revela um conceito limitado, como é limitado todo maniqueísmo?

A sensação de realidade criada pela obra tem um efeito tão grandioso, que muito se aproxima à sensação que se tem da realidade absurdamente real dos heterônimos de um Fernando Pessoa. Do ponto de vista formal, é digna de todos os aplausos. Os significados multiplicam-se à medida que narrativas paralelas de diversos gêneros entrecruzam-se: trechos de diários, capítulos de livros, artigos jornalísticos e acadêmicos, relatórios policiais, entre outros. As páginas do diário de Roscharch, que aparecem logo no início, nos aproximam tão intimamente deste personagem, um tanto fascista, que enfim simpatizamos com ele. Reproduzidos meio que desinteressadamente, como para ocupar espaço (mas “com autorização do autor”), alguns capítulos da autobiografia de Hollis Mason, Sob a Máscara, revelam os bastidores da vida dos heróis pela visão do herói então aposentado. Mas a mais forte narrativa paralela são os “Contos do Cargueiro Negro”.

Citando diversas fontes, uma matéria jornalística, aparentemente sem ligação alguma com o enredo, posta entre o quinto e sexto capítulo, dizia que: “Em maio de 1960, surgia a primeira edição de um novo e extrardinário título da National Comics, atual D.C. Chamava-se CONTOS DO CARGUEIRO NEGRO.” E acrescenta que tinha por tema a pirataria e por personagens os aventureiros do mar de origem européia que infestavam o Caribe. Na história, um náufrago faz com os cadáveres dos próprios companheiros uma jangada para a salvação. O surpreendente é que já desde o terceiro capítulo vínhamos acompanhando, em metaliguagem, por sobre o ombro de um personagem secundário, leitor de quadrinhos, não só o texto mas também as ilustrações. Aos poucos, a história passa a ganhar mais espaço, preenchendo “toda a tela”, até que já não sabemos em que narrativa estamos. E faz até sentido falar em preencher “toda a tela”: é flagrante a influência do dinamismo do cinema na arte de Gibbons. Por incontáveis vezes, os quadrinhos se integram para dar uma visão geral do ambiente, embora em cada um deles a ação transcorra de maneira independente. Muito bom!

Fiquei tão impressionado com a originalidade da história do cargueiro negro que procurei sem sucesso encontrar alguma edição desse gibi, até que um respeitável conhecedor de HQ me declarou não conhecê-lo. E ficou a pergunta no ar: “Você já parou pra pensar que os contos do cargueiro negro na realidade talvez não existam?” Não. Não tinha pensado. Parece que caí como um pato na armadilha ficcional. O que não é nenhuma novidade. Sempre que leio as críticas feitas por Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, Ricardo Reis e António Mora, nas “Notas para recordação do meu mestre Caeiro”, acho absurdo imaginá-los somente como uma criação.