7.10.07

Watchmen

Há cinqüenta anos o Sputnik era lançado pelos soviéticos e a Guerra Fria tinha um de seus mais quentes capítulos. Estava marcado o início da Era Espacial. Depois, chegou-se à Lua, e diferentemente do que ocorreu nas Grandes Navegações, nenhum Camões cantou a viagem de Neil Armstrong. Por que esse descaso? É certo que não dá pra comparar os objetos. Mas parece que algo maior mudou em nossa visão. É verdade que não há mais o interesse econômico das viagens do século XVI, mas talvez a gente é que tenha ficado meio blasé mesmo. Se Júlio Verne ainda fosse vivo talvez se frustrasse com o que vieram a se tornar as viagens espaciais. Como a pena do francês nos deu em 1865 a viagem Da Terra à Lua, antes de termos, de facto, viajado, parece que as viagens na realidade não vieram a ter a mesma graça que imaginamos na ficção. Posteriomente criada, uma das mais geniais obras que retratam o período ignoram-nas: Watchmen.

Watchmen é fantástico. Lançado nos EUA entre 1986 e 1987 pela DC Comics, com arte de Dave Gibbons e argumento de Alan Moore, é a prova de que, mais cedo ou mais tarde, o gênero HQ deverá ser reconhecido como uma das mais importantes formas de arte da nossa cultura, vencendo os preconceitos iniciais, como o cinema também venceu. Em seu enredo, passado entre as décadas de 50 e 80, o terror da Guerra Fria assola o mundo e a figura do herói é posta em cheque. Afinal, o que se pode fazer quando a luta contra o mal se revela um conceito limitado, como é limitado todo maniqueísmo?

A sensação de realidade criada pela obra tem um efeito tão grandioso, que muito se aproxima à sensação que se tem da realidade absurdamente real dos heterônimos de um Fernando Pessoa. Do ponto de vista formal, é digna de todos os aplausos. Os significados multiplicam-se à medida que narrativas paralelas de diversos gêneros entrecruzam-se: trechos de diários, capítulos de livros, artigos jornalísticos e acadêmicos, relatórios policiais, entre outros. As páginas do diário de Roscharch, que aparecem logo no início, nos aproximam tão intimamente deste personagem, um tanto fascista, que enfim simpatizamos com ele. Reproduzidos meio que desinteressadamente, como para ocupar espaço (mas “com autorização do autor”), alguns capítulos da autobiografia de Hollis Mason, Sob a Máscara, revelam os bastidores da vida dos heróis pela visão do herói então aposentado. Mas a mais forte narrativa paralela são os “Contos do Cargueiro Negro”.

Citando diversas fontes, uma matéria jornalística, aparentemente sem ligação alguma com o enredo, posta entre o quinto e sexto capítulo, dizia que: “Em maio de 1960, surgia a primeira edição de um novo e extrardinário título da National Comics, atual D.C. Chamava-se CONTOS DO CARGUEIRO NEGRO.” E acrescenta que tinha por tema a pirataria e por personagens os aventureiros do mar de origem européia que infestavam o Caribe. Na história, um náufrago faz com os cadáveres dos próprios companheiros uma jangada para a salvação. O surpreendente é que já desde o terceiro capítulo vínhamos acompanhando, em metaliguagem, por sobre o ombro de um personagem secundário, leitor de quadrinhos, não só o texto mas também as ilustrações. Aos poucos, a história passa a ganhar mais espaço, preenchendo “toda a tela”, até que já não sabemos em que narrativa estamos. E faz até sentido falar em preencher “toda a tela”: é flagrante a influência do dinamismo do cinema na arte de Gibbons. Por incontáveis vezes, os quadrinhos se integram para dar uma visão geral do ambiente, embora em cada um deles a ação transcorra de maneira independente. Muito bom!

Fiquei tão impressionado com a originalidade da história do cargueiro negro que procurei sem sucesso encontrar alguma edição desse gibi, até que um respeitável conhecedor de HQ me declarou não conhecê-lo. E ficou a pergunta no ar: “Você já parou pra pensar que os contos do cargueiro negro na realidade talvez não existam?” Não. Não tinha pensado. Parece que caí como um pato na armadilha ficcional. O que não é nenhuma novidade. Sempre que leio as críticas feitas por Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, Ricardo Reis e António Mora, nas “Notas para recordação do meu mestre Caeiro”, acho absurdo imaginá-los somente como uma criação.

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