31.10.10

Outros cadernos

A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.
José Saramago





Durante a Semana de ciências sociais da FSA, numa roda de conversa sobre José Saramago, a poeta Dalila Teles Veras falou sobre a vasta produção do português ganhador do Nobel, difusa por livros, jornais e até blogs. E destacou que por agora, post mortem, emerge um outro José Saramago, em doses homeopáticas.

Em substituição ao antigo O caderno de Saramago, surgem Outros cadernos de Saramago.

Todos os dias, um competente funcionário da Fundação que leva o seu nome vasculha a vasta produção do autor e de lá retira uma pílula de lucidez, que, recomenda a poeta, deveríamos tomar todos, todos os dias pela manhã, a fim de ganhar força para enfrentar o dia e a vida. Como esta que estava lá hoje, a respeito da morte.

27.10.10

Meu voto

Andei preocupado toda a semana com o fato de que não havia definido ainda meu voto: nulo ou Dilma. E ainda agora duvido. O certo é que não voto em Serra, tanto por suas conversas, quanto por suas ideias, cada vez piores. A favor de Dilma, pesa isto que disse Singer, e também isso que diz a história. Mas as conversas inocentes, sei bem que não são privilégio de José Serra e Joaquim Roriz. E com todas as limitações do governo Lula-Dilma-PT, e do sistema representativo, e desta tão falsa democracia liberal que temos, limitações amplamente conhecidas na órbita do modelo social problemático que a história nos deixou – o voto nulo aparece como uma opção justa.

De qualquer modo, o que bem pouco tem aparecido, e isso quase passou despercebido, é que na verdade, no embate Serra-Dilma, está claramente posto um embate entre neoliberalismo, de um lado, e do outro uma mistura varguismo-desenvolvimentismo-neoliberalismo, com estado forte, se é que é possível. A segunda opção aparece como menos pior, no sentido de que privatizações, pedágios, sucateamento de educação e saúde, estado mínimo, marcas evidentes do Consenso de Washington, não devem ser ampliadas. Com Serra, tudo é possível, e vale recordar o que foi a disputa pelo governo paulista, com Mercadante criticando a política mercantil de Alckmin para as rodovias, e este defendendo-a corajosamente. E ganhou a eleição em primeiro turno, sem uma proposta minimamente revolucionária para a educação em São Paulo. Parece que a sociedade inteira jogou a toalha, e todos passaram a aceitar a falência do ensino público. Como chegamos a isso? E onde chegamos... O que pode mostrar que o pensamento neoliberal fincou raízes no eleitorado paulista - que não vê nada melhor além disso, uma pena, deus...

De todo modo, votando nulo ou em Dilma, uma coisa pra mim vem ficando bem claro. Voto, de qualquer tipo, quer dizer muito pouco. As opções entre candidatos são muito parecidas. Intervém talvez mais na política, contribui mais para corrigir a direção de um povo, é mais senhor de si e da sua liberdade - não aquele que vota. Mas aquele que critica, conversa, convence, é convencido, organiza grupos, greves (ou as desaconselha, quando pareçam porralouquice), reconhece as muitas formas de opressão e faz algo, lê jornais (e duvida deles, e faz outros duvidarem também), estuda, age, vai ao extremo possível do radicalismo quando é preciso - e pode haver momentos em que este extremo não é sair às ruas, mas ficar em casa; não estar em grupos, mas estar sozinho. Inventar coisas úteis para a humanidade pode ser tão útil quanto pensar nelas. Isto tudo, esta perspectiva, creio que importa muito mais. Figuras que pensaram assim povoam os livros mesmo da história recente, e não consta que seus votos pessoais tenham tido tanta importância. Importa mais uma página que Paulo Freire escreveu do que todos os votos que tenha dado. É isto que penso ser o significado de dizer que há política além das urnas.

Se por acaso decidir ir à praia no domingo e não votar, certamente estarei de volta na segunda. E hei de trabalhar toda a semana, meses, anos. E esta vida diária, falada, ouvida, conversada, sentida, chorada, decidida, feita e retransformada todos os dias - tem muito mais valor.

26.10.10

1964

Como vimos, os dogmas do  ideário de 1964 objetivam o resguardo da ordem, no sentido de conservação das estruturas essenciais do capitalismo, de preservação dos valores da ordem, da família, da propriedade e da religião cristã.  Sob este Signo, Vencerás! Assim, o bonapartismo da contra-revolução das classes dominantes uniu-se contra o “perigo vermelho”. Trata-se, em nosso caso, de desorganizar as ações de massas que se enquadravam num programa de reformas democráticas, de talhe nacional e popular, a fim de impulsionar e promover a consolidação do capitalismo subordinado, como a melhor forma de combater o comunismo. A recusa ao comunismo e a adesão ao princípio social da propriedade privada como o vetor básico do convívio social, na visão da autocracia burguesa bonapartista, está pressuposta no caráter utópico de toda negação do capitalismo. Nas concepções de Geisel, o comunismo é irrealizável porque esbarra na própria condição humana:

É uma utopia principalmente porque não considera as peculiaridades da natureza humana, que fazem do homem um eterno insatisfeito, querendo sempre mais e, na generalidade das situações, não levando em conta o bem dos seus semelhantes. Muitos não pensam assim e se deixavam levar pela doutrina comunista, aparentemente igualitária. Outros foram comunistas por recalques, por insucessos da vida, por frustrações. Quando o comunista está convencido do acerto da sua doutrina, não há ninguém que o convença do contrário. É uma doença incurável.
[GEISEL apud D’ARAUJO, M. C.; CASTRO, C. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 145-146.]

 
Ora, segundo a posição anticomunista, o perigo de esta “doença incurável” se propagar residia na própria situação miserável vivida pela maioria da população, pois, sendo assim, ela é, ao menos virtualmente/potencialmente, transformada em presa fácil da manipulação dos comunistas. A sua influência deriva, assim, da própria realidade nacional, como produto do seu atraso, das doenças, do analfabetismo, do problema social, do egoísmo das classes dominantes, da má distribuição de renda.

RAGO FILHO, Antônio. "Sob este signo, vencerás! A estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista." In: Cad. AEL, v.8, n.14/15, 2001, p. 182-3.

11.10.10

Semana de ciências sociais - 25 a 30/10

A Fundação Santo André resolveu fazer sua semana de ciências sociais em parceria com a PUC e a Cásper Líbero. Clique aqui para ver as conferências e seus respectivos palestrantes, cronograma, endereço etc. Divulgo aqui sua filipeta com a chamada para o vestibular, contrariando um preceito meu, que deriva do ódio mortal de publicidade em blogs. Afinal, a blogosfera deveria ser mais sensível à nossa existência desgraçada, e nos poupar das garras publicitárias do mercado ao menos por aqui. De resto, ajudar a vender a alguém um curso de sociologia de 400 reais é ser, no mínimo, sacana.

Porém, abro uma exceção, pela singularidade do produto, dos mais dialéticos que já vi. Isto é menos uma publicidade e mais um estudo de caso, exposto à curiosidade pública. A mercadoria em questão sofre de contradictio in adjecto: quer continuar sendo o que é, quando não há mais mercado que a realize.

Debate na Band

É engraçado o debate: Dilma reclama do uso rasteiro que Serra fez do tema do aborto, mas usa de maneira igualmente rasteira a questão das privatizações. É difícil libertar-se do estigma que a esquerda colou nas estatais privatizadas. Mas as estatais não necessariamente são boas. Cada caso é único.

Privatizar a Petrobras seria, considerando o papel estratégico do petróleo para a indústria, abrir mão do controle do Estado sobre o capitalismo. Um erro! Em suma, petróleo não se privatiza; é a matéria-prima de todas as matérias-primas. Também é justo que se indigne com a venda da Vale do Rio Doce a preço de banana. Mas pode-se parar por aí. O capital estatal nunca teria como ampliar e baratear o custo e o atendimento da telefonia fixa, como, por exemplo, a Telefonica fez em São Paulo. Ok, agora bilhões e bilhões saem do país para a sede da multinacional na Espanha, mas o serviço ao cidadão melhorou bastante. Esta melhora só pôde acontecer porque o capital privado concorrencial apareceu e fez o que normalmente faz, aumentando a parcela constante (máquinas, equipamentos, informatização) e chicoteando a parcela variável (trabalho) da composição orgânica do capital. Aumentou a exploração da força de trabalho, rebaixou salários de técnicos, precarizou a situação do trabalhador - é verdade. Mas expandiu os postos de trabalho no setor e investiu pesadamente em capital constante, universalizando a linha telefônica muito antes de a classe pobre ter celular - e isto também é verdade. Desenvolveu-se um setor pouco desenvolvido, criou-se riqueza, e isto é bom: agora, quando o povo se levantar para tomar o que é seu, haverá realmente o que socializar.

O que se decide na questão das estatais é entre duas alternativas: se vai se extrair mais mais-valia, com o capital privado, ou menos mais-valia, com o capital estatal. De qualquer modo, o caminho pró-estatização, tão defendido por setores do PT, não abole a mais-valia, nem caminha para o socialismo, como se iludem alguns. Pelo contrário, é bem possível que entrave, na medida em que o capital estagnado das estatais, não concorrencial, não desenvolve forças produtivas, não se obriga a expandir-se, nem sequer forma proletariado significativo. Num país como o nosso, especialmente como o que FHC herdou de Collor, era talvez necessário redizer o que disse Lênin sobre o estado da Rússia no começo do século passado: "Aqui, o povo não sofre com o capitalismo; sofremos pela falta dele." Fazer socialismo com isso, a história mostrou como é.

Não podemos nos queixar de tudo. Se houve uma coisa sincera no debate, foi dita por Serra, a respeito da Dilma: "Estou surpreso com tanta agressividade." É bom que tenha ficado, assim empatamos. Porque, se com a questão das estatais podemos fazer todo esse arrazoado, a respeito do aborto não há o que dizer: a rasteirice serrista, por resvalar no obscurantismo, é muito superior (ou inferior?) à reação da candidata do governo. E surpreende justamente por vir do partido que sempre se declarou desideologizado, técnico, moderno, racional.

6.10.10

Dois pesos...

Alguém concorda comigo. Era exatamente isso! Vou lembrar de ficar tranquilo da próxima vez. É só esperar: alguém com mais capacidade acaba vindo e dizendo melhor e mais bonito.

5.10.10

Conversas inocentes

Engraçado. De repente, a lama escura da política ficou mais clara.

1 - Primeiro, Joaquim Roriz é barrado pelo Ficha Limpa, e tenta recurso no TRE. Perde, e o caso vai ao Supremo Tribunal Federal. Preocupado com o resultado, procura tirar do caso o juiz Carlos Ayres Brito, cujo genro é Adriano Borges. Roriz procura este último e, numa inocente conversa, pede que o defenda. Isto faria com que, no momento do julgamento, Brito fosse obrigado a declarar-se impedido de votar. Ao negociar as cláusulas do contrato de defesa, situação que vaza em vídeo na imprensa (Folha, 01/10), Roriz comenta que com a saída de Brito o caso está ganho, sugerindo que já sabia de antemão que teria favoráveis a si os votos de Gilmar Mendes, José Antonio Dias Toffoli, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cesar Peluso. O genro (em quem Brito não mais confia, segundo confidências que fez a amigos) não vê problema algum na negociação, e quer ganhar 1 milhão. Roriz acha caro. O contrato acabou não se firmando, Adriano Borges não entrou na jogada e Brito desimpedido teve atuação destacada no julgamento, empatando a votação em 5 a 5, com seu voto pró-ficha limpa. E, assim, impediu que se derrubasse de vez o cadáver semivivo do projeto de lei popular. Que ficou pra ser enterrado ou ressuscitado só Deus sabe quando - tendo nisso destino muito pior que o de Lázaro, que não consta nas escrituras ter passado por esta desgraçada condição de alma não nascida, à espera do Salvador.

2- Joaquim Roriz, preocupado com eventual desfecho ruim, troca de lugar com a mulher, Weslian Roriz. A candidata, nos debates, não apresenta proposta alguma, responde para tudo que montará "uma assessoria técnica", chama o oponente Agnelo de Agnaldo, diz que vai "defender a corrupção" e, uma vez eleita, quem mandará será ela, embora possa ser "orientada" pelo marido. Em suma, é uma pobre pessoa que mal sabe o que faz, e o que fazem dela. Demonstrou ser incompetente na arte, hoje disseminada, de se deixar manipular por marqueteiros – mas tal ato nobre foi involuntário.


3 - Enquanto isso, na Sala de Justiça, o PT percebe que deu um tiro no pé: ano passado ajudou a aprovar uma lei que prejudica a votação em Dilma. A lei exige inocentemente, na hora de votar, dois documentos a brasileiros, incluindo nordestinos que mal têm o que comer. Então, o partido entrou com recurso contra si próprio no STF. A Suprema Corte faz o que dela se espera, a votação avança e vai derrubando o obstáculo injustificável ao voto do subproletariado. Então, Serra liga para Gilmar Mendes e os dois conversam inocentemente, como informou a Folha em 30/09. Mendes, imediatamente, embora já estivesse numericamente derrotado, pede vistas do processo, adiando a decisão por tempo indeterminado e deixando muita gente de cabelo em pé. No dia seguinte, finalmente, Mendes vota, e a novela acaba.

Conclusão: 1 - Ricardo Lewandovski, Carlos Ayres Brito, Carmén Lúcia, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa não são comprados de Roriz. 2 - Tirica está longe de ser o pior da eleição em 2010 – talvez seja um dos melhores, tendo por único defeito não saber ler. 3 - Gilmar Mendes parece ter um círculo de amizades bastante amplo, de José Serra a Joaquim Roriz, e a amplitude de seu círculo social parece proporcional à do seu cinismo.