30.9.10

Tese, antítese e a síntese do Paulo Skaf

Um professor meu certa vez declarou que alguma coisa aconteceu quando se transplantaram certas ideias da Europa para o Brasil. Alguma coisa aconteceu no caminho ou na aclimatação à terra brasilis, porque nem liberalismo nem socialismo – diferentes (e, em certo sentido, antípodas) projetos de sociabilidade humana – chegaram inteiros por aqui. Alguma coisa ficou perdida pelo Atlântico.

O tempo passou. E nesta campanha eleitoral saiu candidato a governador Paulo Skaf, o presidente da Fiesp. Pelo PSB. Será que em algum outro lugar do mundo um candidato da órbita liberal apresenta-se em um partido que se nomeia socialista? O fato é que Skaf, em março deste ano, sentiu-se talvez constrangido a explicar como sua personalidade burguesa poderia conviver com tais correligionários marxistas, talvez ainda mais constrangidos em apoiar um candidato com patrimônio declarado de 11 milhões de reais. Afinal, como alguém proprietário de uma casa e uma empresa (com valor de três milhões cada) pode ser socialista, num mundo onde um sexto é miserável? Skaf tentou explicar. E escreveu no começo do ano um texto em que explicava que agora capital e trabalho não mais se opõem como antes; agora, podem caminhar até juntos.

Levei o artigo, publicado no Diário do Grande ABC, ao referido professor, e fizemos a exegese do texto. Só por diversão. Clique na imagem para ampliar.

23.9.10

Futebol + culinária = jogo político

Ontem vim mais cedo pra casa, e jantei assistindo Santos e Corinthians pela Globo, um tanto preocupado com quebras de hierarquia que fazem atacantes demitir técnicos. Vitória alvinegra! E no finalzinho ainda vi, de extra, o Petkovic marcar o gol do Flamengo contra o Grêmio. Nem sabia que o iugoslavo ainda jogava! É, tenho de reconhecer que, mesmo sendo essa fonte grandiosa de alienação, o futebol – apesar de pontapés, filhadaputices do Neymar, demissões de treinadores e capitalismo em geral – ainda encanta. E o Pet também – diferentemente do Neymar, dentro e fora de campo.

Embora com a ideia dominante, tanto veiculada pela Rede Globo, de que a sociedade global está belezinha, o capitalismo é bom e o comunismo, um mal que a humanidade extirpou graças a deus – há controvérsias. E gente de valor ainda diz o contrário. Poucos, mas os melhores, diria Lenin.

O caso é que, tempos atrás, Ana Maria Braga recebeu em seu programa matinal o Pet. A banalidade com que estas mulheres cozinham na TV todos os dias faz que, não só os comeres, como elas próprias, se apresentem cada vez mais insossas e amarelas, de maneira que a apresentadora necessita sempre do colorido de um papagaio e de um convidado que dê sabor ao ambiente. Como faz costumeiramente, exibiu sua visão de mundo a partir da cozinha, isto é, a cozinha da aristocracia assalariada, classe média mais ou menos abastada. E, depois de fazer um tratado histórico, político e geográfico típico da Globo, questionou ao atacante como tinha sido viver num país tão cheio de problema como a Iugoslávia. A resposta é, no mínimo, inusitada.

18.9.10

Um comercial da Petrobras



 [...] Para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens.
Karl Marx
 
Em 1867, só uma analogia como esta poderia explicar a ideia de relações sociais entre coisas e relações reificadas entre pessoas. Afinal, ainda não havia comerciais da Petrobras. O sonho de consumo do seu carro foi descrito por alguns amigos ontem. Eu ainda não tinha visto, mas fiquei tão impressionado, que logo que pude corri para vê-lo com meus próprios olhos. As imagens confirmaram o que as palavras me fizeram pensar. Que coisa fantástica! José Saramago, pouco antes de morrer, havia dito que Marx nunca esteve tão certo como agora. Agora, o comercial, involuntariamente, sem saber traduz em imagens uma ideia que o filósofo alemão verbalizou na escrita, e reiterou continuadamente, a ponto de convertê-la num pilar de seu pensamento:

[Em relação aos homens] seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las.

No dia 1º de maio de 1890, em Londres, Friedrich Engels escrevia o prefácio a uma nova edição alemã do Manifesto comunista. Estava empolgadíssimo com o crescente movimento proletário e fazia uma rápida restrospectiva: " 'Proletários de todos os países, uni-vos!' Somente algumas vozes responderam quando lançamos estas palavras ao mundo, há quarenta e dois anos (...)". "Entretanto, a 28 de setembro de 1864, proletários da maior parte dos países da Europa Ocidental reuniram-se na Associação Internacional dos Trabalhadores (...)". "No momento em que escrevo estas linhas, o proletariado europeu e americano passa em revista as suas forças, mobilizadas pela primeira vez num único exército, sob uma única bandeira e por um único objetivo imediato: a fixação legal da jornada de trabalho de oito horas (...)".

Ao final, recordava o companheiro morto há sete anos: "Ah! estivesse Marx a meu lado para ver isso com seus próprios olhos!"

Que ninguém duvide da força da linguagem, especialmente esta linguagem verbal, cujos criadores, os homens, em dado estágio da história elevaram a uma forma duradoura e grandiloquente: a escrita. Hoje, 120 anos depois daquele prefácio, nem Marx nem Engels precisam estar vivos para ver o mundo. Eles continuam a enxergá-lo, agora, por nossos olhos. É bem verdade que a classe trabalhadora é hoje diversa e as perspectivas humanas nunca foram tão pobres, tanto prática quanto teoricamente, em contraste com um século XIX tão rico. Conquistamos as oito horas de trabalho e paramos nisso (sem perceber que levamos cada vez mais trabalho pra casa). Mastigamos ainda talvez os efeitos do XX, este século tão desastroso em tantos sentidos.

Se a perspectiva de um mundo socialista é cada vez menor, se a humanidade cessou de buscar a emancipação humana, se está ausente a figura revolucionária – mesmo que no país mais rico aumentem os pobres e no resto do mundo a miséria e a fome atinjam 1 bilhão –, de modo algum a leitura marxiana do capitalismo era errada. Este olhar do carro para o posto de gasolina foi perfeitamente previsto, no primeiro capítulo do Capital:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características objetivas dos próprios produtos de trabalho como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

 
Ninguém conheceu tão bem o capitalismo e suas possibilidades quanto Karl Marx. A realidade mesma está a mostrar isso, todos os dias. O que escrevemos aqui... ora, está muito aquém do que escrevia Engels. Ele não só reconhecia o mérito intelectual do amigo, como também via, na prática, a força criativa e transformadora das pessoas, buscando forjar relações sociais novas, ainda mais justas. Hoje, temos muito menos.


Também, que esperar de um mundo onde comunistas, tão logo tomam o poder, implantam ditaduras sobre o proletariado em lugar de ditaduras do proletariado sobre a burguesia? Que esperar de projetos socialistas que não souberam nunca, porque não tentaram, conviver com democracia de trabalhadores? A resposta, e o resultado destes fracassos, é simples: um mundo de ditaduras de coisas sobre pessoas.

Por isso, aos [produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.

Um mundo onde as mercadorias têm sonhos próprios à sua espécie, e seus donos não.

10.9.10

Sobre a arrogância - II


Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim
 Saramago, Ensaio sobre a lucidez.


E fui andando, dizendo a mim mesmo que precisava de trabalho, dinheiro etc.

Mas ia indo contrafeito. Eles não podiam fazer isso comigo: não deviam fazer isso com ninguém! E o nosso tempo livre, quem se arroga o direito de manobrá-lo como bem entende? E eu tenho compromissos... tenho aulas à noite. Está certo que hoje não haveria nada, ia ficar em casa lendo Flaubert. Mas... e se eu morrer semana que vem e nunca mais puder ler Flaubert? Flaubert era mais importante que qualquer outra coisa – e roubaram-me descaradamente. Olhei o relógio e notei um atraso de 30 minutos. Maldição! Odeio atrasos. Culpei-me por não sair mais cedo de casa. Pensei que, se pontual, àquela hora já estaria com políticos gordos e risonhos, sentados à mesa, num ambiente abafado, cadeiras encostando na gente, pessoas apertadas, mal-estar, discursos os mais cretinos e sorrisos os mais falsos, completa separação entre realidade e pensamento, atenção forçada, bocejos e whisky quente... Devia ir em frente, mas virei à esquerda; dei uma, duas voltas no quarteirão. Não podia ir.

Não ia. Já estava a uns quatro quarteirões, mas... ora, amanhã entraria na sala da chefe e diria com todas as letras por que não fui! Escute aqui, dona Fulana, achei autoritária a natureza do convite, que não oferecia a opção não, perniciosa a seleção de destinatários, que eram somente os com cargo de confiança, para não falar da perversidade do uso do pessoal público para fins partidários, prejudicial à liberdade política do indivíduo e nociva à sociedade em geral. Provavelmente, achar-me-iam um ingrato, que assim paga os favores passados, sujeitinho, só olha para o próprio umbigo, você viu?, fica de olho nele... Paciência. Estava resolvido. Entrei num franz café e passei o resto da noite lendo Madame Bovary. E fui dormir inteiro, reconciliado comigo e com a physis.

No dia seguinte, fechei o semblante e passei o dia armado, deliciosamente em guerra, esperando a primeira pergunta a respeito. Passou o dia e chegou a noite nova, e iniciou-se outro dia, e findou uma semana. É já sexta-feira. E ninguém pergunta nada.

8.9.10

Sobre a arrogância

Devo ter superestimado minha integridade moral, pois, mesmo sem saber para o que era convidado, em um belo entardecer de setembro, quando queria dizer não, disse sim.

Tudo começou no início de 2010, quando, funcionário público municipal que era, aceitei acumular às minhas funções ordinárias uma função "comissionada", uma espécie de cargo de confiança infinitesimal, de quase nenhum valor profissional, mas que, enfim, trazia alguma compensação financeira. Nem atentei que se tratava de ano eleitoral. O castigo veio devagar, subterrâneo como o passar dos meses. E na semana passada, enquanto almoçava, ouvi de uma colega em situação similar o comentário: "Nosso cargo é político, infelizmente. Semana que vem, por exemplo, v. vai ter que ir a uma reunião que não quer." Ri-me dela. Falava com uma naturalidade que me chocou. Ouvi sem dar importância, um pouco ferido pelo descaso com que tratavam meu livre-arbítrio. Hoje, pela manhã, outro colega explicou: "Hoje o prefeito faz aquela reunião de apoio ao candidato a governador." "Você vai?", perguntei. "Sim, vou, Fulano de Tal me pediu, e eu antes já lhe pedi tantas coisas. Sacumé?" Dei de ombros. Cada um sabe de si. E fingi que não sabia de nada ou, se muito, fazia parte de uma grande brincadeira. Parecia uma brincadeira! Ora, então um prefeito de um grande centro urbano lá vai convocar servidor público para apoiar seu candidato de preferência?! Era só o que faltava!

Ao fim da tarde, recebi uma ligação perguntando se eu ia. E caiu a ficha: a coisa era séria. Enquanto falava fui me lembrando de um programa da CBN dias atrás, no qual Max Gehringer lia a carta de um ouvinte reclamando que na empresa onde trabalhava, no interior, os patrões apoiam um candidato e coagem os empregados a fazer campanha política favorável, com a gota d'água de o empregado em questão não gostar do candidato apoiado. Max Gehringer concluía dizendo ser este um caso em que todo mundo sabe o que fazer, mas do qual ninguém quer fazer parte. Achei vergonhosa a reclamação e cínica a conclusão. Vergonhosa a falta de coragem do reclamante em não se levantar, em não enfrentar tão grande indignidade, em omitir os nomes dos bois, mal denunciando, assim tão timidamente, semelhante canalhice eleitoral e, sem dúvida, de opressão do capital sobre o trabalho. Cínica a conclusão do locutor, que se absteve de qualquer crítica a podridão da moderna sociedade brasileira, tão caduca e rebaixada, e delegou às consciências individuais o papel ativo, como se fosse um problema de natureza puramente privada, e não pública. E agora me via numa situação que ansiei por passar, para provar que comigo não, que é facílimo resolver o caso, que o que falta é um pouco de coragem e menos cinismo.

Por algum tempo a recordação deste fato radiofônico masturbou-me o ego com a destreza de uma puta, que eu procurava sempre que tinha vontade de me amar e ser feliz. Até este outro dia, quando, ao ser perguntado se ia – a lugar desconhecido, a evento de natureza  ignorada, a reunião de objetivos obscuros, temperados pela lama fedorenta da propaganda eleitoral –, respondi automaticamente que sim. Compreendia epifanicamente o ouvinte, o locutor, meus colegas, meus irmãos. E fui andando, dizendo a mim mesmo que, até então, tinha sido radical demais.