28.5.09

Lembrete sobre duas coisas:

1. A cultura da paz é, com certeza, o pior dos valores dos nossos tempos. Capitão Nascimento não é tão irracional quanto nos quer fazer parecer nosso bom senso. Ele tem razão num ponto: a hipocrisia é não só a base da nossa organização social globalizada, mas também a base do que nos constitui como seres humanos modernos. Pregando as vantagens de uma cultura de paz, dias atrás é que me dei conta da contradição que existe nisso. Precisei ouvir de uma quase criança de 12 anos que, na verdade: "v. diz que a violência não é o caminho, porque não pode dizer outra coisa; a gente entende; mas sabe que v. não acredita nisso; porque quem leva um tapa na cara, devolve; todo mundo faz isso." Pior que é verdade. Então, por que diabos continuamos a defender a paz e a justiça. Deveríamos defender sim a justiça e a paz, mas sabendo que justiça e paz não prescindem de violência para se concretizar. Não se chega à paz pela paz; chega-se à paz pela guerra, como diz o velho ditado. Então, se é mesmo isso, para que continuamos a dizer que a violência não é o caminho, quando a violência se alastra de diversas formas pelas famílias, pelas ruas, pelas diferentes classes sociais e principalmente na relação entre estas? Sim, mesmo a nós, que nos consideramos politicamente desalienados, críticos e transformadores, mesmo a nós, invisíveis, vêm ter conosco valores alheios que entranhamos e reproduzimos sem o perceber. A cultura de paz nos chega pelas escolas, pela TV, pelos jornais, pelos livros – em uma palavra, pelo Estado. Estes valores não pertencem aos cidadãos – ao contrário, os pais comumente dizem aos filhos: "não bata; mas se apanhar, não apanhe queito: reaja sempre." Então estes valores só podem pertencer àqueles que, estando no poder, controlam o Estado. É evidente que se fosse incentivada uma cultura de violência contra às injustiças, mais cedo ou mais tarde se veria que a maior delas é uma organização social em forma de pirâmide, que permite a uma pequena parcela dominar a imensa base que a sustenta, com métodos tão ou mais violentos quanto os do passado, disfarçados sob um manto de hipocrisia, que lentamente vai se assentando e se escondendo na névoa polifônica do nosso século – cuja complexidade, porém, permite-nos vislumbrá-lo em toda a sua extensão com uma simples figura geométrica.

2. É uma grande besteira depositar na escola a esperança de melhora do mundo. Enquanto ela não se dispuser a construir uma visão conjunta da realidade, a partir de alguma ciência antiga ou inédita que congregue e rearticule os conhecimentos básicos entre si – a fragmentação do saber em disciplinas inúteis, a separação das pessoas em individualismos nocivos e a divisão da humanidade em classes sociais perdurará indefinidadamente. Dos que possuem formação para atuar no ensino fundamental, só professores de história e geografia parecem dominar mecanismos de entendimento e explicação coerente do estado do mundo. Dos professores de história e geografia que existem, é ingênuo supor que todos tenham vontade ou condições de ativar todo seu aparato técnico na construção de situações reflexivas de aprendizagem de mundo; se excluírmos aqueles que possuem formação ruim, sobra uma parcela insignificante. Dos professores das outras disciplinas, majoritários, pode até haver vontade ou condições efetivas de explicar o mundo; mas, se lhes sobrar vontade (o que já é pra lá de duvidoso), faltar-lhes-á sempre formação específica e aparato técnico. O que em grande parte explica por que nunca vi um professor de matemática usar um triângulo para associá-lo à sociedade ou ao mundo. O que explica também por que grande parte da matemática e a totalidade de muitas outras ciências, como a gramática, a química ou a física, parecem aos alunos não ter aplicação prática alguma. O que mostra como o positivismo, que no XIX fragmentou o conhecimento, serviu aos interesses da elite, criando – mais que uma divisão do saber – divisórias de pensamento, tapumes da visão... antolhos. O positivismo, se Durkheim não se contentar com ser o criador do melhor dos chicotes, é talvez a mais engenhosa das criações humanas. Os seres humanos, quando no ócio, quando desatrelados do fardo que puxam, quando caminhando pelo mundo – já não olham mais para os lados.

Daí hoje se acreditar, principalmente no Brasil, que direita e esquerda não existe.

E quando olham para o amanhã, para a frente, para o futuro – já nem veem a natureza da ordem que o progresso exige. Ficam obviamente excluídos dessa cegueira nova os que naturalmente já não viam pelas doenças antigas (não há muita diferença entre um camponês medieval e as contemporâneas classes D e E): os cegos antigos (que sofrem o presente) culpam os malefícios do progresso, e vivem a reviver no presente o passado; a maior parte das pessoas que veem, como já se disse, não vive mais no presente: escolheu pensar no futuro. E isso é que é assustador. Porque, se se pensar bem, passado e futuro, na realidade, não existem; são só abstrações.

2.5.09

Em um episódio dos Simpsons, após presenciar uma catástrofe cinematográfica, causada pelas mais inesperadamente vis motivações, o diretor Seymour Skinner, com um riso a um tempo discreto e saboroso, sentenciava lentamente:

– Essa humanidade...

De tempos em tempos me vêm à mente esta cena.