27.9.08

A arte e a literatura dos livros ensebados


No mês do centenário da morte do "mulato sabido", diria Oswald de Andrade, o Memorial de Aires veio a calhar. Uma obra menor se comparada aos clássicos, vá lá. Mas nela está sempre o Machadão, provocando leitor, pena e papel. E dizendo, assim, despretenciosamente, idéias que, mesmo novas, sua caligrafia faz parecer sempre terem existido. Ainda bem que não terei o trabalho de grifá-las desta vez.

Se na compra de livros usados ganhamos algo, superior à mísera economia do vil metal, a substância desse lucro pertence à esfera dos substantivos incontáveis, tal é a beleza que se nos vende por cinco, dez, quinze reais, não mais. Mas, mesmo incontável, é uma beleza peculiar essa, a das histórias das leituras marcadas nas margens. Sempre tive, tenho, terei preguiça de pensar, embora admire o ato. Então, se encontro anotações marginais, fico duplamente satisfeito, pela leitura feita e a interpretação roubada. Sei que a confissão é íntima, teclado, mas quase ninguém nos lê. Além do que, já sabemos: não se perde nada em parecer mau; ganha-se quase tanto como em sê-lo.

15.9.08

O fim das estradas utópicas leva desgraçadamente a becos onde circulam tartarugas. Há quem veja, e é realmente visível, o avanço na questão dos direitos humanos, na legislação, na constituição de 1988. Ainda que pareça absurdo escrever que "toda criança tem direito à vida", o absurdo não está na lei: está na história que faz as leis necessárias. Mas, se há avanços, há recuos: tais direitos já pertenceram a um plano de idéias maior, mais alto, tão alto que transpunha fronteiras nacionais. Agora, consolida-se o pensamento de um Fernando Pessoa, a dizer que não existe idéia mais abstrata que o conceito de humanidade; de concreto mesmo, só a pátria. A segunda desgraça é que nem toda pátria é concreta; é ilusória a visão dos avanços e da conquista de direitos via legislação, se ela não é cumprida, se os transgressores não são punidos. De toda maneira, a chave da sucessão de desgraças do nosso tempo está no momento quando decidimos que exigir o impossível era algo irreal.

Um morimbundo René, n'As invasões bárbaras, diz que conhecer a História vendo como fomos piores é bom para nos acalmar. Só não diz qual remédio para o enjôo que cotidianamente nos consome, levados pelos caminhos lentos da humanidade, limitados pelas horas rápidas da vida, incrédulos das veredas passadas, descrentes das trilhas futuras, chateados pelas cores cinzentas e paradas da paisagem.

6.9.08

Uma nação, um país e um povo

Era para sermos as três coisas, aparentemente sinônimas. Somos, sim, uma mistura de povos que se diz povo; oficialmente, talvez até sejamos um país, se não de fato, pelo menos de direito; mas, com certeza, não somos uma nação.

Sendo assim, não precisamos discutir temas pioritários. Sendo assim, de uns tempos para cá, nos altos poderes que nos dominam – altos, porque inacessíveis – não se fala de outra coisa senão da ilegalidade dos grampos telefônicos pela polícia. E a imprensa, tal como sempre, não diz o que deveria ser dito: que essa reação aos grampos nada mais é que uma extensão da reação ao uso de algemas; que, naturalmente, quando um grupo se sente ameaçado, reage e, mesmo se essa reação é ilegal, buscam-se meios de legalizá-la; mas que, nesse caso, como o grupinho é criminoso e minoritário, não se deveria, em função deles, legalizar nem ilegalizar nada. Mas a gente vai fazer o quê? São eles quem fazem as leis. Eles são a Lei.

É óbvio que o cidadão comum está muito pouco preocupado com grampos telefônicos. Principalmente porque não teme quase nada. O que mais teme o cidadão comum é cair na malha fina. E aqueles que a gente conhece, que conforme o caso caíram na malha ou abraçaram o leão, e são agora obrigados a pagar em multas cinco, dez, dezoito mil, de acordo com sua particular desgraça, a gente não consegue censurar essas pessoas. Como convencer um assalariado de que sonegar imposto faz mal ao país? Não. Não. Não faz. Não, perto do imposto sonegado pela corporação que lhe paga salário; não, perto de formação de quadrilha, tráfico de influência e evasão de divisas; não, perto do constante, diverso e eficaz lobby, que representa democraticamente o interesse de todos, com exceção do povo.

E, assim, os legisladores, a imprensa, o cidadão comum e a gente – cada um a sua maneira, mostramos individualmente como pudemos, em termos éticos, abandonar a idéia de um projeto de nação. Se é que algum dia tivemos um.