20.8.10

O caso brasileiro no contexto do lulismo

Agora, com as eleições, começou a aparecer uma fala, interessantíssima, que é mais ou menos a seguinte: "gente, o Lula fez um mal danado ao país... vocês não sabem como está o nordeste, com a bolsa-família... ninguém quer mais trabalhar... aqui [sudeste], 100 reais não é nada, mas lá... um erro, um erro..." Não é preciso esticar muito o cérebro para perceber o duplo grau de miséria. Em que nível de desenvolvimento socioeconômicocultural está um lugar no qual 100 reais a mais no orçamento familiar causa a alegria de uns e a raiva de outros? Esta reação da classe média paulistana não só mostra a miséria material da população de baixíssima renda do norte e nordeste, como também a miséria espiritual das classes urbanas do sul. De onde vem isso, afinal?

São muitos os escritos sobre o caráter retrógrado da sociedade brasileira. Fala-se especialmente do pensamento atrasado da elite dirigente, da classe dominante. Vai-se ao limite de dizer que é marca do Brasil "uma burguesia especialmente despojada de 'ilusões humanitárias' " [1, aspas do autor]. Ora, mas o que seriam ilusões? Uma tentativa fracassada de "ilusão humanitária", acontecida no declínio da ditadura militar, talvez indique algumas raízes desta anomalia das Américas.

Em 1976, quando o milagre econômico da ditadura acabou, e foi ficando difícil os generais continuarem no poder, o senador fluminense Saturnino Braga, do MDB, criticava a política das exportações. Não que fosse mal exportar, mal era o ponto até onde foi o governo militar, dando "uma soma tão grande de incentivos - isenção de IPI, isenção do ICM, crédito do IPI, financiamento a juros subsidiados e outros - imposto de renda, também, que muitos economistas nossos sustentam que estamos vendendo [nossa produção] a preços inferiores aos custos internos de produção, subsidiando, portanto, o consumo de outras nações" [2, itálico meu]. Quando li este final de frase pela primeira vez, não acreditei no absurdo, que dificilmente se configura em nossa mente. Monstruosidades semelhantes já tinham levado em 2003 o sociólogo Francisco de Oliveira a apelidar o Brasil de ornitorrinco. A proposta de ruptura do ciclo é ainda hoje um tanto familiar: implantar e fazer crescer a indústria de base, de bens de capital - numa palavra, dos bens de produção. As dificuldades também eram as mesmas: fabricar equipamentos requer investir em tecnologias modernas e complexas - coisa que, naquele momento, só as multinacionais tinham. Aí o absurdo da dependência estrangeira já fica mais fácil de entender.

A proposta, a mais humana possível ali, era simples: abandonar esse modelo econômico voltado pra fora (e socialmente injusto),  por um modelo econômico voltado pra dentro. Como? Deixando de subsidiar bens de consumo duráveis (automóveis). Disso resultariam "os mesmos empregos, certamente em maior quantidade, os mesmos salários e impostos poderiam resultar do desenvolvimento maior de outras indústrias - alimentação, tecidos, confecção, calçados, mobiliário etc. que atenderiam às necessidades não de cinco milhões mas de 110 milhões de brasileiros." [3] Era isto: em meados da década de 1970, apenas 4,5% da população comprava carros; o resto não comprava comida nem livros. E, no entanto, as multinacionais eram o centro da economia. É claro que a proposta de Saturnino Braga perdeu. E ela só era humana, não tinha nada de revolucionária: era humanamente burguesa. Ela mostra uma das muitas derrotas que sofreu a parcela da burguesia nacional comprometida com um projeto de nação, feita por cidadãos, com necessidades atendidas e oportunidades para todos. E o Brasil continuou injusto, dependente, exportador, voltado pra fora etc. etc. Sobre as costas de cada pequeno brasileiro, ainda que em formação no ventre das mães, pesava, especialmente neste período, a obrigação de financiar o consumo externo, na forma de privações alimentares ou médicas. Por quê?

Uma das respostas tem a ver com o modo como vemos o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Quer dizer, há uma via única ou vários caminhos pelos quais cada país desenvolve o capitalismo? José Chasin apostou na última aternativa, distiguindo o caso brasileiro da via alemã (ou via prussiana), por onde também passa o caso russo, o japonês, o italiano, que já eram tardios, se comparados com Inglaterra e França (a via clássica) ou mesmo EUA. E, particularizando ainda mais o caminho brasileiro, chama-lhe via colonial. É bem parecido com o caso alemão, que Marx não se cansava de chamar miséria alemã (terreno fértil para o nazismo do século seguinte), porém com uma diferença: "o 'verdadeiro capitalismo' alemão é tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de hiper-tardio, é caudatário das economias centrais." [4, aspas e itálico do autor]

Ora, como é a via clássica ou norte-americana de desenvolvimento do capitalismo? Ela acontece de maneira rápida, por meio de revoluções nas quais a burguesia derruba com violência o velho (as relações de produção feudais ou, no caso norte-americano, talvez algum pacto colonial e, ainda, mais tarde, quem sabe, na guerra de secessão, o escravismo, que opunha estados do norte e do sul) e logo põe em seu lugar o novo (relações entre capital e trabalho assalariado). No entanto, o desenvolvimento pela via prussiana, ou russa, é lento: aqui, o novo faz alianças com o velho. Isto é, enquanto na França uma burguesia violenta faz os nobres perderem, além da cabeça, também as terras, na Alemanha a nobreza fundiária é quem vai se convertendo lentamente em burguesia, com toda a sorte de privações, desgraças e explorações sobre a massa camponesa/operária. Em suma, a via clássica traz um grande progresso social; a via tardia gera um grande custo social. É assim que José Chasin observa o caso brasileiro: embora tenha aspectos comuns à via prussiana, tem também suas singularidades.

Observação que nos conduz, portanto, à constatação não mais apenas de uma única forma particular de constituição não clássica do capitalismo, mas a mais de uma. No caso concreto, cremos se está perfeitamente autorizado a identificar duas, de tal sorte que temos, acolhíveis sob o universal das formas não clássicas de objetivação do capitalismo, a forma particular do caminho prussiano, e um outro particular, próprio aos países, ou pelo menos a alguns países (questão a ser concretamente verificada) de extração colonial. De maneira que ficam distinguidos, neste universal das formas não clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular para o progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que, conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é, nem se põe como o mesmo. [5, grifos do autor]

A partir da proposta do senador emedebista, para uma perspetiva mais ampla em termos de história, acrescente-se o seguinte:

Numa formulação mais do que esquemática, fácil é observar o caráter hiper-tardio da entificação histórica do capital industrial no Brasil. Bastaria referir que até a atualidade este processo não se completou, haja vista que a grande questão que, hoje, torna a se pôr (e que data de suas origens), é a da produção de bens de produção. Bastaria também lembrar que a industrialização, nas fronteiras nacionais, atravessou toda a primeira metade deste século em tentativas e contramarchas que não lograram ultrapassar o nível de incipiência. Considerados, pois, os casos clássicos de objetivação do modo de produção especificamente capitalista (Inglaterra, França), em face dos quais a industrialização alemã e a italiana já são tardias (datando das últimas décadas do século passado), a industrialização brasileira é hiper-tardia. [6, grifos do autor]

É preciso que o leitor, conforme adverte o autor, não leia esta diferenciação apenas cronologicamente, mas historicamente, isto é, com todas as implicações que a demora traz para a classe empresarial brasileira, entre elas, ter de enfrentar trabalhadores já maduros em luta de classes e ainda concorrer com potências industriais, numa difícil luta tanto contra o trabalho como contra os outros capitais.

Enquanto a industrialização tardia se efetiva num quadro histórico em que o proletariado já travou suas primeiras batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios coloniais já se configurou, a industrialização hiper-tardia se realiza já no quadro da acumulação monopolista avançada, no tempo em que guerras imperialistas já foram travadas, e numa configuração mundial em que a perspectiva do trabalho já se materializou na ocupação do poder de estado em parcela das unidades nacionais que compõem o conjunto internacional. Ainda mais, a industrialização tardia, apesar de retardatária, é autônoma, enquanto a híper-tardia, além de seu atraso no tempo, dando-se em países de extração colonial, é realizada sem que estes tenham deixado de ser subordinados das economias centrais. [7]

Deste processo, pode-se imaginar o que resulta: burguesia covarde e proletariado superexplorado (além do que seria a exploração normal). Ressalte-se o caráter débil da primeira em se construir sobre o esqueleto da economia agroexportadora, que "exportava seu excedente", descartando portanto "uma acumulação que se cristalizasse na máquina". [8] As consequências são patéticas.

A burguesia industrial brasileira teve que se contentar com fatias de reinado no colegiado dos pactos, e acumular sob a proteção do estado e o olho guloso do capital estrangeiro. Existência estranha se se raciocina com a imagem da redentora clássica do "ancien régime". Mas outra coisa não é a nossa heroína nacional, em foto 3x4, com data no peito para colar em documento de identidade. [9]

A superexploração do trabalho aparece como resultado inevitável do modelo econômico voltado para fora. A forma de acumulação de capital realiza-se sob a tutela do capital internacional, que sai altamente remunerado deste processo produtivo, sem prejuízo do lucro da burguesia nacional: o prejuízo é do trabalho. O esforço exportador aparece combinado com "a produção de bens de consumo duráveis (automóveis, eletro-eletrônicos e correlatos); para seu consumo é estruturado, internamente, um mercado privilegiado e reduzido. É o pacto com o segmento alto das camadas médias." [10] Ou seja, para o mal da população trabalhadora de renda baixa, a produção se organiza nacionalmente de maneira a distribuir desigualmente a riqueza, e o nosso autor faz questão de enfatizar essa injusta distribuição derivada da articulação produtiva.

Para que tal mecânica funcione, nas condições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o concurso de dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência de mão-de-obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional. [11]

Ora, quando se diz que "ninguém quer mais trabalhar no nordeste" é preciso saber perceber quem está dizendo isto. Se é a população do nordeste quem está a assistir a este fenômeno calamitoso de ociosidade generalizada, temos uma informação. Mas se estamos a ouvir a reação indignada de fração da burguesia nacional, especialmente fundiária, que viu o preço da mão-de-obra costumeiramente barata repentinamente esfumar-se nos anos do governo Lula – neste caso, temos outra informação. O fenômeno pode se dever a fatores além do Programa Bolsa Família (PBF).

Se no Norte-Nordeste o PBF fez surgir setores antes inexistentes, como clínicas dentárias para pobres, o aquecimento destas pequenas economias pode ter gerado uma gama de oportunidades de trabalho que permite mesmo ao camponês mais pobre recusar-se a arrancar tocos de sol a sol em troca de um quilo de arroz, meio quilo de café e alpercatas - no conhecido sistema de crédito em comércio que geralmente pertence ao patrão, resultando quase sempre em o trabalhador dever salário ao fim do mês, em vez de recebê-lo. Por outro lado, aqui em São Paulo de uns tempos pra cá passou a aparecer, vez ou outra, ainda raras, placas de "precisa-se" para garçons, cozinheiros, caixas etc., donde se conlui que: a) o grau de exigência para contratação está muito alto; ou b) o povo deixou de ser trouxa e passou a valorizar o valor imensurável de sua força de trabalho.

Daí se explica o choramingo da classe média, "cansada" do descaso a que vem sendo submetida. Isto pode significar que reproduzem a queixa da fração burguesa proprietária de terras, que se vê prejudicada com a ascensão da qualidade de vida e o fim da servidão tropical, bem como da correspondente corveia, como também explica a base de sustentação do governo Lula tanto pela fração da burguesia nacional beneficiada pela explosão do mercado interno, como também pelos subproletários repentinamente banhados por um leve feixe luminoso de inédita dignidade e guiados não pela liberdade de peito nu, como a viu Delacroix, mas por um ex-operário coberto de barbas. Isto talvez indique o laço entre a facilidade como acionistas da Oi entram e saem do Palácio do Planalto, com a facilidade de aquisição de telefones celulares por brasileiros de qualquer classe social. Resta saber, a partir destes elementos, se teria havido de fato um realinhamento do sistema produtivo nacional e efetiva instalação do setor produtivo de bens popular-operários, como alimentação, calçados, roupas etc. E se o celular, neste estágio histórico, teria se convertido, como outras mercadorias, de bem suntuoso em bem popular-operário.

[1] José Chasin. Miséria brasileira. Ad hominem: Santo André, 2000, p. 34.
[2] Saturnino Braga. "Proposta de modelo econômico e político para o Brasil", versão condensada e publicada pela Folha de S. Paulo, em 26/06/1977, 4º caderno, p. 41. Apud José Chasin. Op. cit., p. 27.
[3] Saturnino Braga. Op. cit., p. 41. Apud José Chasin. Op. cit., p. 33.
[4] José Chasin. Op. cit., p. 17.
[5] Ibidem.
[6] José Chasin. Op. cit., p. 34.
[7] Ibidem.
[8] Francisco de Oliveira. A economia da dependência imperfeita. RJ: Ed. Graal, 1977, p. 116. Apud José Chasin. Op. cit., p. 35.
[9] José Chasin. Op. cit., p. 35.
[10] José Chasin. Op. cit., p. 85.
[11] Ibidem.

15.8.10

André Singer e As raízes sociais e ideológicas do lulismo

Costuma-se dizer, em tom de piada, que o Brasil é o único país onde pobre é de direita. Ora, isto é meia verdade, mas não chega à verdade. Afinal, o conservadorismo dos pobres não é privilégio do Brasil. Quando escreveu O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx notou fenômeno semelhante na França de 1848.

O fato é que eu já tinha lido este artigo de André Singer, a respeito do lulismo, graças ao Luiz Nassif que o havia mostrado no seu blog no começo deste ano. Mas só agora é que pude fazer uma leitura correta, percebendo os fios sutis das ideias tecidas no texto, discutindo com o autor, lendo os outros com quem ele discute. A conclusão é que a leitura que faz o Singer, sem prejuízo de que tenha sido porta-voz do Lula no primeiro mandato (talvez isso tenha ajudado mais que atrapalhado), é muito coerente. E já vem de alguns anos. Parece mesmo ter começado com o pai, Paul Singer, que em 1980 notou, para além da clássica categoria "proletária", uma classe "subproletária" na particularidade da objetivação capitalista do Brasil. Seriam subproletários aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. Estão nessa categoria “empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes.” E esta gente é: 1) numerosa, metade da população; 2) de direita, por absurdo que pareça.

Diz Singer:

"O tripé formado pela Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos programas especíicos, resultaram em uma diminuição significativa da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. É isso que Marcelo Neri chama de 'o Real de Lula': 'No biênio 1993-1995 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria cai 18,47% e, no período 2003-2005, a mesma cai 19,18%.' "

"O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo programa de classe", ou, pelo menos, de uma fração dela.

Viu-se que, enquanto eleitores de escolaridade superior se dividem igualmente entre esquerda, direita e centro (em torno de 31%), os de baixa escolaridade preferem a direita (44%). Não se avançou a construção de uma hegemonia político-cultural de esquerda. “Em que pese o sucesso do PT e da CUT, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, uma fração de classe particularmente difícil de organizar.” Excetuando casos como o MST, o subproletariado tende a ser organizado desde cima, como observou Marx em 1848 a respeito dos camponeses franceses e como o faz agora Lula. “Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações.

O popular que havia ficado fora de moda, seja pela retórica da modernização, ao centro, seja pelo discurso de classe, à esquerda, está de volta. Diferentemente da experiência peessedebista, o 'Real de Lula' veio acompanhado de uma mensagem que faz sentido para os de menor renda: pela primeira vez o Estado brasileiro olha para os mais frágeis e, portanto, se popularizou. Essa é a razão pela qual o presidente insiste que 'nunca na história deste país… etc. etc.'. Irritados, os supostos 'formadores de opinião' não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e insistem na tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade, mas ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire outro sentido.

O relativo desinteresse de Lula pelos 'formadores de opinião' significa que o realinhamento tirou centralidade dos estratos médios, que eram mais importantes no alinhamento anterior.

Em suma, vale a pena a leitura.

13.8.10

O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. [...] É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinariamente física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa.

[...]

De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma mercadoria? Evidentemente, dessa forma mesmo. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio de sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho.

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

[...]

Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. [...] Por isso, aos [produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.

[...]

[As grandezas de valor da mercadoria] variam sempre, independentemente da vontade, da previsão e da ação dos que trocam. Seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las. [...] A determinação da grandeza de valor pelo tempo de trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias.

[...]

Tais formas constituem pois as categorias da economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas para as condições de produção desse modo social de produção, historicamente determinado, a produção de mercadorias. Todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda magia e fantasmagoria que enevoa os produtos de trabalho na base da produção de mercadorias, desaparece, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção.

[...]

O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo de produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado. Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são o produto natural de uma evolução histórica longa e penosa.

(Karl Marx. O capital, vol. I, livro primeiro. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. 1, p. 70-3, 76.)

11.8.10

Estranhamento

Domingo fui passar o cartão de débito e não passou. Defeito na máquina, moço. Então, fui ao banco, pegar dinheiro vivo. Lá na agência, frente aos caixas, vejo uma cena que não me sai da memória.

Era uma pintura. Era a desolação humana, a melancolia, a prostração física e espiritual. Era Guernica mais O grito. Eram seres humanos mortos, desalmalizados.

É que os caixas eletrônicos também estavam parados. Com o sistema fora do ar, pessoas que encontrei, cabisbaixas, pareciam perdidas. Sem vida. Inda mais num domingo, lamentavam. Alguém tinha que pegá-las pela mão, apontar o caminho, fazer algo. E elas só não tinham dinheiro! Engraçado como essas cenas se nos apresentam e se reproduzem, com a naturalidade de um respiração. Quando alguém denuncia o quadro absurdo da nossa existência, cérebros automatizados ouvem entendendo bem mas olham vendo figuras inversas, como se aqueles é que estivessem fora da realidade. De fato, saímos dela - uma realidade cega -, ao olhar o que somos - cegos. E perdemos pouco. Porque nós construímos estas monstruosidades, que, embora inanimadas – neste caso, o dinheiro, mas em geral a mercadoria –, parecem ter vida própria, ou melhor, nossa vida.

Como um sujeito que, tempos atrás, após um acidente destruiu o carro. Tinha arranhões pelo corpo e mancava de uma perna, e chorava à beira da estrada, em criança. Repetia sempre: "Meu carro, meu carro..." Também vem a cena do sujeito no banco, bancário, com a arma na cabeça, a relutar sobre entregar/não entregar o dinheiro. E acaba entregando, que fazer. Os homens maus se vão, mulheres trêmulas, velhinhos nervosos. E o funcionário, ausente, olhando o chão fixamente, balançando duvidosamente a cabeça, distante, quando solta o que lhe vai na alma: "Isso vai dar um problema na contabilidade..."

Faz tempo que deixamos de caminhar, para seguirmos arrastados por forças que sem nós não existiriam.