2.1.10

Boris Casoy, o valor das coisas e a intolerância com piadas

Sobre a gafe do Boris, já por estas horas, e com a velocidade deste mundo internético, muito já se disse e admoestou-se e criticou-se e exigiu-se a demissão do âncora. O que não pode haver é surpresa: desde muito, muitos eram os rumores sobre o caráter do Boris; é perfeitamente adequado ao perfil do homem que, segundo especialistas, integrou no regime militar o chamado ccc, comando de caça aos comunistas.

O que chama a atenção é o exemplo duplo que ele dá de desintegridade existencial e estreiteza intelectual. Tentando fugir do moralismo, não vai bem criticar o ato, nem lhe negar as desculpas. O problema é menos deste homem que do tempo que o fez homem. A questão é achar a causa disso, não seus efeitos. ?É lá possível que alguém, no ar, desenhe uma linha de atuação extremamente moralista, fazendo da "vergonha" uma sua bandeira, e, paralelamente, fora do ar, faça piadas deste tipo? Sim, é perfeitamente possível, e a prova aí está. Faz lembrar uma definição que ouvi certa vez: o hipócrita é aquele que ostenta virtudes sem possuí-las; porque, se as possuísse, não teria por que as ostentar. A hipocrisia é uma marca do nosso tempo e, tal qual assinalaram pensadores hoje tidos como ultrapassados, suas razões são econômicas. E, para nosso mal, não é típica do Boris; é típica de todos nós, em alguma medida. E, talvez, nem seja bom nomear isso como "hipocrisia", afinal, agora fomos incluídos. O fato é que, toda vez que se baixa a vigilância, ela aparece. Não é um exercício fácil: somos educados para ser, na falta de um adjetivo melhor, hipócritas. Somos educados a considerar todas as profissões, sem exceção, importantes e valorosas, e a declarar isso, mesmo sabendo que, no fundo, no fundo, não são ou, pelo menos, não parecem ser. O que traz outro problema: como não são? A resposta é ambígua: são e não são. São importantes do ponto de vista funcional: uma cidade não existe sem garis; mas são extremamente desvalorizadas do ponto de vista econômico: muitos podem ser garis, logo, o salário é baixo.

A lei da oferta e da procura exerce em nosso imaginário um poder maior do que supomos ter. Raramente relacionamos estes dois fatos: 1) achamos os jornalistas mais importantes que os garis; 2) a oferta de jornalistas é menor que a de garis, que é enorme: até você pode ser um.

Vivemos numa sociedade que precisa, como todo sistema, que indivíduos atuem como diferentes peças – o valor de uso dos trabalhos é igual para todos, portanto; mas, como essa atuação envolve a escolha das peças em diferentes castas, resta que sobram peças para funções simples e rareiam peças em funções complexas, sobretudo as que exigem modelação técnico-científica – então o valor de troca dos trabalhos aumenta ou diminui na mesma razão em que aumenta ou diminui a posição das castas. O valor de uso, regido pela lei da necessidade, e o valor de troca, regido pela lei da oferta e da procura, estampa tudo e todos, desde as mercadorias até os seres que as produzem. Como tudo tem um caráter duplo – necessidade e troca –, isso só pode dar em hipocrisia. Necessitamos de muitos seres humanos para viver; mas, para tê-los próximos, trocamos suas ações benéficas por dinheiro. Estas são as misteriosas forças que desintegram Boris Casoy, e todos os seus companheiros de espécie, dividindo-o em dois homens: um ideal, que valoriza em absoluto todas as pessoas; e um prático, que relativiza o valor de mercado que cada um tem.

Talvez nem faça bem falarmos em hipocrisia, que traz uma certa carga de moralismo que o termo desintegração não tem. A desintegridade é evidente, e o que se expõe em teoria aqui, é o que se viu na prática lá. E, com isso, chegamos a uma séria dificuldade das ciências sociais: fazer a teoria coincidir com a prática [incluo aqui todas as correntes de pensamento contemporâneas – as que eu conheço, pelo menos]. E, também, chegamos à estreiteza de pensamento do Boris. Ele aceita naturalmente a existência das castas: ou são eternas, ou determinadas por mistérios divinos, ou possuem causas desconhecidas [poderia até usar as três justificativas, afinal, reparando bem, são uma só coisa]. O que ele não pode aceitar é que um gari, membro que é da mais inferior das castas trabalhistas [pouco importa usar o termo "casta" ou "escala"], ou membro da merda, deseje alguma coisa boa.

O pessoal dos blogues tem andado meio rígido ultimamente com algumas piadas, de negro, de mulher ou de gay. E durante muito tempo fiquei pensando se era certo ou não esse cerceamento à liberdade dos humoristas. Com isso, acabo de concluir que certas piadas não devem mesmo ser feitas e que, se a liberdade dos humoristas ruins for restrita, disso haverá de nascer uma geração nova de humoristas e piadas boas, que inverta o mundo, para pô-lo direito. O riso de alguns não compensa o choro de muitos. O que vai compensar é ver amanhã, nos jornais, uma charge de um Angeli, por exemplo, com a grande vantagem de que fará rir a muitos, e chorar somente a um ou dois. O que, é sempre bom lembrar, poderia constituir uma grande injustiça para esta ínfima minoria que chora, mas acaba por não ser, pela razão única e bastante de que estas pessoas não choram por coisas tão banais como... ora, a humanidade a que pertencem.