22.12.08

Romântica lembrança

A lembrança foi quando, à noite, cansado de correr, parei pra assistir um jogo, um futebol, como tantos que joguei e assisti, nas ruas, nas calçadas, nos campinhos de várzea. E veio a danada da nostalgia a fazer cafunés, a lembrar do gosto doce da liberdade soprando no rosto, da adrenalina inflando os pulmões, da energia sempre renovada, do eterno correr atrás do adversário, da bola, do gol. Dos tênis imundos, rasgados. Da blusa puída, esquecida de lado, preparo pro frio. Do esperar pela próxima partida. Dos cabelos molhados, do suor. Daquele gosto salgado, distante, pequeno, querido... de felicidade. E foi então que me lembrei: na verdade, mais assisti jogos que joguei. Era sempre o último a ser escolhido.

20.12.08

A história contada pelos independentes

Quando Olga Defavari convida para o lançamento de um livro sobre Imprensa alternativa no ABC,


lá v. pode encontrar pessoas hardcore, como o cara que edita este zine bacana:



Mas v. não imagina que encontrará caras com quem conviveu por meses sem nunca dizer que tinham uma publicação de mais de cinco, seis anos. E v. começa a se perguntar por que as pessoas são tão modestas e recatadas.



Abrindo-lhe as páginas, porém, v. entende tudo. Há coisas escritas que não se fala.

19.12.08

Se isto fosse um diário não seria diário. Paciência. Há dias que não merecem ser escritos. Mas estes, que a partir de agora viverei, sim! São as férias. Doces, chegando serenas, prometendo dias de ócio, de festas, de sol, de cervejas, amigos e felicidade. Tomar umas biritas, pegar umas minas, ir para o meio do nada, lutar contra elementos naturais, embriagar-se com cheiro de árvores, brigar com insetos, arriscar a vida ao mar, fatigar o corpo e libertar a alma. Sentir falta de dias eneblinados, cimento, automóveis, eletricidade... E, depois, voltar pra cidade, pras pilhas de papel, pras nuvens de fumaça, e achar tudo isso nossa casa. Nossa rotina, nossa prisão. Em cujas paredes criamos imagens de liberdade.

17.12.08

Sapatadas


É singular o caso da sapatada no Bush, lá no Iraque. Não pela sapatada, mas pelo que ele disse depois: "Tudo que eu sei é que era número 41" (citado de memória). Saiu-se bem. E não me parece ser típico dele esses ditos espirituosos. Mas ditos espirituosos é que são tudo, embora tenham se perdido.

Ao que consta, na corte portuguesa eram muito comuns. Havia lá pessoas especialmente selecionadas, para tirar de cada situação, num relance genial, ao calor do momento, uma frase que fizesse rir ou pensar. Vez ou outra ressurge esta prática.

Conta-se, a respeito de Jânio Quadros, que, num debate, depois de muito ofender seu adversário, foi ele surpreendido pela reação algo inusitada da vítima, que tomando a palavra pôs-se de pé e declarou, em tom de pouco caso: "Pode falar. Fale. Que as suas palavras entram por um ouvido e saem por outro." Ao que Jânio imediatamente demoliu: "Impossível. O som não se propaga no vácuo."

5.12.08

Dias bem conturbados por aqui. Pela primeira vez em muito tempo, hoje, veio-me uma sombra que é mais uma premonição do futuro – fique a redundância –, e trazia um não-sei-quê de arrependimento, esquecimento e solidão. E tive a impressão que andei desperdiçando meu tempo nos últimos anos, ou pior, desperdiçando minha vida na última década. Sem tempo para decisões novas e corretas. Sem luz para essa sombra que tornará tudo realmente, e de fato, perdido.


Enquanto caminhava, pensando nisso, levantei lentamente os olhos num longo suspiro, olhei o céu e vi. Algumas folhas verde-escuras, das árvores mais altas, um céu bem cinza, escuro, de fim de tarde, vi o que queria ver. E, vendo, como um castigo, percorreu-me a nuca a assombração do inferno, uma coisa muito sutil, aqui-invisivelmente-ao-seu-lado, arrepiante, trazendo de volta o som de pessoas, de carros, de realidade. Um estado de prisão voluntária, de algemas invisíveis, de constante autoflagelamento e recriminação, obrigação a coisas indesejáveis, prazer comprado a desprazer, luta por sobrevivência, vontade de chorar, raiva, dúvida, medo e predomínio cego da razão. Ainda me arrepio só de lembrar.

16.11.08

.

Se a verdade um dia se escrevesse
Nas pedras da longuíssima estrada
De tanta solidão e dor, e cada
Desejo de outro mundo, e a angústia desse...


Se toda a gente que triste vivesse
Pudesse caminhar, já conformada,
Nas ruas solitárias, rumo ao nada,
Nas mortas letras tortas que relesse...


Em vez das gargalhadas costumeiras,
Das frases desornadas, desordeiras,
Somente se ouviria o som do frio


Leitor – agricultor que explora, lavra,
Nos indolores campos da palavra,
A distância, o silêncio, o vazio...


.

30.10.08

Novas pedagogias

E hoje a Folha disse que:

Professora é acusada de incitar agressão a criança de 5 anos

Mãe de garoto diz que docente de escola no Distrito Federal segurou os braços do filho e pediu que colegas dessem tapas em seu rosto

Uma briga entre crianças de uma turma de jardim de infância levou ao afastamento de uma professora de educação infantil, ontem, no Distrito Federal. Segundo alunos, após dois meninos se desentenderem na aula, a professora recorreu à violência para punir um dos garotos: chamou um deles à frente, segurou os braços da criança para trás e pediu que os demais colegas dessem tapas no rosto do menino, de cinco anos.

***

O fato positivo é que, finalmente, o agredido agora não é o docente. E, por isso, atitude correta. Boa professora.

27.10.08

Sobre o acordo ortográfico II

Os únicos pontos que, acho, realmente podem oferecer alguma dúvida são:

1. As seqüências consonânticas, descritas na "Base IV", que ora se conservam, ora se eliminam, ora se facultam, o que pode gerar dúvidas exatamente na facultatividade entre "ato" ou "acto". Afinal, para nós brasileiros não há dúvida que a primeira grafia é correta; a dúvida é se podemos corrigir um cabo-verdiano dizendo que a segunda é errada.

2. O hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares, descrito na "Base XV", mais precisamente no artigo primeiro, onde se diz que "certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, paraquedas, paraquedista, etc." O problema é que neste ou deste "etc." a gente pode enfiar ou excluir o que quiser.

3. O hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação, da "Base XVI". Esta seção parece bem bonitinha, com exceção de um prefixo: o sub. Antigamente, o uso impunha hífen antes de r ou b. Agora, o acordo elimina totalmente, gerando anomalias fonéticas, como subreptício ou subregião (nada impedirá a leitura deste "bre" como sílaba), ou gráficas, como subbase ou subbosque.

Agora, uma coisa seja dita: o sr. Carlos Alberto Ribeiro de Xavier tinha razão, e muita razão, ao se irritar. Muitas dúvidas vêm de quem não leu bem o texto do Acordo ou, na pior hipótese, não estudou bem gramática. Os capítulos que tratam da acentuação estão perfeitos. Apesar disso, ainda há quem queira ver pêlo em ovo, como a Folha, que hoje disse:

O acordo diz que perdem o acento os ditongos "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "idéia" e "jibóia". No entanto, existe hoje uma regra que determina que paroxítonas terminadas com "r" tenham acento. O que fazer com "destróier", que se encaixa nas duas regras?

Se eu fosse o Xavier, diria: "Gente, eu não vejo dificuldade nisso aqui também não... Se antes "destróier" se encaixava em duas regras, agora vai ser regido só por uma, catapimbas!"

20.10.08

Começou hoje uma Semana que celebra os 150 anos de publicação da mais controversa, polêmica e importante teoria científica de nosso tempo, quiçá de todos. E o tempo não poderia ser melhor; 2008 é por demais significativo: há 400 anos nascia Antônio Vieira, há 200 chegava a Corte Portuguesa ao Brasil, há 100 morria Machado de Assis e também há 100 anos nascia Guimarães Rosa... Mas a Teoria da Evolução é o que continua a nos fazer pensar.

Porque ainda em 2008 chegam-nos rastros da apropriação das idéias darwinianas para solidificar preconceitos e rascismos seculares. E justificar a opressão. Nunca é demais lembrar, dizia hoje um meu professor de literatura, que foi graças a um certo valor positivo, maquiavelicamente agregado ao povo europeu pelo viés darwinista, que se construiu o eurocentrismo, conceito eterno que nunca se derruba.

– A Terra é redonda, naturalmente. Apesar disso, nos acostumamos a ver o mapa sempre pela mesma perspectiva, com a Europa ao centro, acima e sobre a África. O que, embora pareça, não é natural. E ensinamos isso nas escolas. Essa mesma semelhança com a naturalidade permitiu que os europeus repartissem a África a golpes de esquadro sobre o mapa, definindo as fronteiras dos atuais países – Egito vai até aqui, Sudão começa ali, Argélia acaba acolá –, em linhas retas, irreais, feridas da régua. O que, sem Darwin, teria sido feito, sim; mas não com tanta naturalidade.

13.10.08

Sabe se ele é casado?

"O importante em relação a um candidato é o caráter das pessoas. Se ele é solteiro, viúvo, divorciado, casado, se tem filhos ou não, é a vida pessoal de cada um. O importante é a sua capacidade, o seu preparo, sua integridade."
Gilberto Kassab

E quem diria que um dia o PFL diria isso ao PT. E com todo o direito.

10.10.08

Um outro cinco de outubro

E eu pensando que era estranho quase ninguém ter falado na elevada quantidade de brancos/nulos cá pelos lados de Mauá: 25.000, ou 10%. Tá certo que muita gente não sabe votar nessas máquina nova. Muito mais por preguiça de aprender que por falta de inteligência, o que afinal resulta sempre em burrice. Sem contar a prática de escolher candidato selecionando-os do chão próximo aos portões da escola; constatei isso in loco na última eleição. Sim, aqui acontecem burrices de vários tipos e formas.

Mas, quando fui ver, em Santo André é pior: 16% de brancos/nulos, ou seja, 74.000 votos jogados fora. Se a gente junta as abstenções, já lá se vão mais de 150.000 pessoas que decidiram não votar: 32% dos eleitores.

Em São Paulo, perto de dois milhões escolheram a mesma coisa. É pra se pensar em nossa tal democracia.

5.10.08

Cinco de outubro

Já uma semana sem te ver, alfabeto amigo, e me impulsiona ao pé do teclado este bom costume: o de escrever tudo para não dizer nada. Bom costume ou vadiação, o bruxo do Cosme Velho, em seu supracitado romance, dizia taxativo: "Vadiação é bom costume". Cem anos passaram voando, e as palavras do Conselheiro Aires soam novas, revolucionárias, absurdas até. E haverão de rejuvenescer ainda mais, porque dia a dia vai nascendo e criando-se gente neurótica, orcarrólique, exigente, reclamona, insensível, pragmática, perfeccionista, preocupada com prazos e acertos, matando o tempo ocioso e, sem ver, a própria vida.

E sem ver a própria vida. Que, apesar de tudo, segue. Segue a vida. Já não tão gostosa e divertida.

27.9.08

A arte e a literatura dos livros ensebados


No mês do centenário da morte do "mulato sabido", diria Oswald de Andrade, o Memorial de Aires veio a calhar. Uma obra menor se comparada aos clássicos, vá lá. Mas nela está sempre o Machadão, provocando leitor, pena e papel. E dizendo, assim, despretenciosamente, idéias que, mesmo novas, sua caligrafia faz parecer sempre terem existido. Ainda bem que não terei o trabalho de grifá-las desta vez.

Se na compra de livros usados ganhamos algo, superior à mísera economia do vil metal, a substância desse lucro pertence à esfera dos substantivos incontáveis, tal é a beleza que se nos vende por cinco, dez, quinze reais, não mais. Mas, mesmo incontável, é uma beleza peculiar essa, a das histórias das leituras marcadas nas margens. Sempre tive, tenho, terei preguiça de pensar, embora admire o ato. Então, se encontro anotações marginais, fico duplamente satisfeito, pela leitura feita e a interpretação roubada. Sei que a confissão é íntima, teclado, mas quase ninguém nos lê. Além do que, já sabemos: não se perde nada em parecer mau; ganha-se quase tanto como em sê-lo.

15.9.08

O fim das estradas utópicas leva desgraçadamente a becos onde circulam tartarugas. Há quem veja, e é realmente visível, o avanço na questão dos direitos humanos, na legislação, na constituição de 1988. Ainda que pareça absurdo escrever que "toda criança tem direito à vida", o absurdo não está na lei: está na história que faz as leis necessárias. Mas, se há avanços, há recuos: tais direitos já pertenceram a um plano de idéias maior, mais alto, tão alto que transpunha fronteiras nacionais. Agora, consolida-se o pensamento de um Fernando Pessoa, a dizer que não existe idéia mais abstrata que o conceito de humanidade; de concreto mesmo, só a pátria. A segunda desgraça é que nem toda pátria é concreta; é ilusória a visão dos avanços e da conquista de direitos via legislação, se ela não é cumprida, se os transgressores não são punidos. De toda maneira, a chave da sucessão de desgraças do nosso tempo está no momento quando decidimos que exigir o impossível era algo irreal.

Um morimbundo René, n'As invasões bárbaras, diz que conhecer a História vendo como fomos piores é bom para nos acalmar. Só não diz qual remédio para o enjôo que cotidianamente nos consome, levados pelos caminhos lentos da humanidade, limitados pelas horas rápidas da vida, incrédulos das veredas passadas, descrentes das trilhas futuras, chateados pelas cores cinzentas e paradas da paisagem.

6.9.08

Uma nação, um país e um povo

Era para sermos as três coisas, aparentemente sinônimas. Somos, sim, uma mistura de povos que se diz povo; oficialmente, talvez até sejamos um país, se não de fato, pelo menos de direito; mas, com certeza, não somos uma nação.

Sendo assim, não precisamos discutir temas pioritários. Sendo assim, de uns tempos para cá, nos altos poderes que nos dominam – altos, porque inacessíveis – não se fala de outra coisa senão da ilegalidade dos grampos telefônicos pela polícia. E a imprensa, tal como sempre, não diz o que deveria ser dito: que essa reação aos grampos nada mais é que uma extensão da reação ao uso de algemas; que, naturalmente, quando um grupo se sente ameaçado, reage e, mesmo se essa reação é ilegal, buscam-se meios de legalizá-la; mas que, nesse caso, como o grupinho é criminoso e minoritário, não se deveria, em função deles, legalizar nem ilegalizar nada. Mas a gente vai fazer o quê? São eles quem fazem as leis. Eles são a Lei.

É óbvio que o cidadão comum está muito pouco preocupado com grampos telefônicos. Principalmente porque não teme quase nada. O que mais teme o cidadão comum é cair na malha fina. E aqueles que a gente conhece, que conforme o caso caíram na malha ou abraçaram o leão, e são agora obrigados a pagar em multas cinco, dez, dezoito mil, de acordo com sua particular desgraça, a gente não consegue censurar essas pessoas. Como convencer um assalariado de que sonegar imposto faz mal ao país? Não. Não. Não faz. Não, perto do imposto sonegado pela corporação que lhe paga salário; não, perto de formação de quadrilha, tráfico de influência e evasão de divisas; não, perto do constante, diverso e eficaz lobby, que representa democraticamente o interesse de todos, com exceção do povo.

E, assim, os legisladores, a imprensa, o cidadão comum e a gente – cada um a sua maneira, mostramos individualmente como pudemos, em termos éticos, abandonar a idéia de um projeto de nação. Se é que algum dia tivemos um.

27.8.08

Conclusões

Temos duas. A primeira é que essa coisa de ler a trabalho, em busca do erro perdido, acaba causando uma espécie de repulsa por ler. Parece castigo, restando saber onde aconteceu a afronta aos deuses. Pra completar, circulando pela Bienal do Livro, o assédio pelos vendedores de revista era tão grande (graças ao crachazinho de prof.) que, em tempos de telemarketing ativo, a aporrinhação acabou me fazendo perguntar à mocinha insistente se a bienal era de livros ou revistas. E o único balanço sério do evento é que pelo menos a cerveja não estava tão absurdamente cara.

A segunda é que, também lá, assistindo a uma palestra sobre a questão indígena (e, afinal, como ficou o caso da raposa-serra-do-sol?) com Daniel Munduruku e Mércio Gomes, esqueci de pegar o certificado e olharam desconfiado pra mim na escola. Essa coisa de hoje darem diploma até pra curso de noivos, aliada à necessidade de fazer curriculum, acabou gerando um complexo de Rabugento em todo o professorado. Agora, ao se saber de uma palestra, não se pergunta mais qual o tema. A curiosidade sobre a medalha, medalha, medalha vem primeiro.

25.8.08

E eu juro que, nunca mais, enquanto eu viver, haverei de me apaixonar outra vez. Não importa quão belas as linhas dos olhos, da face, das mãos, dos beijos, dos orgasmos, dos cigarros, dos raios primeiros do sol que levemente colore o olhar na estrada que traz dos motéis.

20.8.08

Diálogos psicodélicos reais do ensino fundamental I

(Intervalo, corredor, fila de aluninhos da segunda série)

Professora – Vamos ficar na fila para receber o lanche!
Aluninhos – Blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá.
Professora (em tom mais alto) – Olha a fila para receber o lanche! Não cutuca a coleguinha!
Aluninhos – Blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá.
Professora (brava, em tom mais alto) – Espeeeraí, não é pra andar ainda, mocinha!
Aluninhos – Blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá.
Professora (irritada) – Paciência, nós já vamos!
Aluninha (desatenta) Prô, nós vamos pra onde?
Professora (suspirando e falando bem devagar) – Olha, nós vamos pra Lua.
Aluninha (maravilhada) – Uuuuuaaauu! (vira pra coleguinha de trás, risonha e saltitante) – Você viu? nós vamos pra Lua!!! Vamos entrar no foguete!!! Êeeebaaa!!!
Coleguinha (desapontada) – Aaahhh, mas eu queria mesmo era ir pra praia...

11.8.08

Educação, comunicação e democracia brasileiras

Está em curso no Brasil, ainda em estágio primitivo, um movimento denominado educomunicação, que aproxima a prática educativa dos meios de comunicação social de massas. Em 1992, na cidade de Nova Olinda, interior do Ceará, surgiu a Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, uma referência aos primeiros habitantes índios. A região é internacionalmente conhecida pela Chapada do Araripe, campo de pesquisas paleontológicas com fósseis de mais de 100 milhões de anos. O objetivo da organização seria promover cursos de formação em programas como Memória, Comunicação, Artes e Turismo.

Aos poucos, crianças e adolescentes tomaram a casa. Na prática, a administração é hoje protagonizada por mais de 70 jovens. A cidade passou a sofrer o impacto das ações. Criou-se uma cooperativa mista dos pais e amigos da casa, a fim de explorar o potencial turístico em pousadas, cantinas, serviços de transportes etc.

A tecnologia de comunicação ali criada resultou em criação de jornal, editora, museu, grupos de teatro, música e uma rádio comunitária FM. De meia em meia hora, o noticiário da cidade é produzido e apresentado pelas crianças. Criou-se também uma TV. Cinco cidades da região passaram a sintonizar o canal local, até que... três semanas depois, a polícia federal bate à porta e indaga quem seria o responsável por "aquilo". Francisco Alemberg de Souza, idealizador da fundação, foi processado pela justiça federal. E, desde 2000, quando a Anatel lacrou o transmissor, tenta conseguir dos órgãos governamentais autorização para pôr no ar a TV comunitária.

30.7.08

Intervalo

– Ei, mocinha, venha já aqui!
– Você... não é minha professora...
– Muito bonito: beliscando o coleguinha menor!
– Você não é minha professora.
– Ah, e ainda por cima é petulante, não?
– E você NÃO é minha professora!

22.7.08

Já respirei melhores ares em Paranapiacaba: havia alguma coisa de amarga naquela neblina de domingo. E o pior de contabilizar o valor das coisas perdidas: quanto mais cresce a paranóia de gozar o bom daquilo que ainda possuo, mais desconfio ser a posse aquilo que tira o valor das coisas.

19.7.08

Dercy no Céu

Dercy loura
Dercy boa
Dercy sempre de bom humor.

Imagino Dercy entrando no céu:
- Abre logo, hein, féla-da-puta!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Dercy. Você não precisa pedir licença.

17.7.08

FAQ – Risco de prisão no Brasil

Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, instado por este blog a esclarecer as curvas e meandros dos caminhos jurídicos brasileiros, aceitou responder, em linguagem de dia de semana, este FAQ, que vai ajudar v., cidadão de bem, a não fazer merda.

1. Se eu encher a cara, dirigir irresponsavelmente, derrubar uma passarela e indiretamente causar uma morte, a polícia pega?

Pega.

2. E se eu contratar lobistas para traficar influências com senadores e deputados federais?

Não pega.

3. Tomar apenas algumas cervejas, ficando pouco acima de seis decigramas por litro de sangue, sem cometer crimes enquanto dirijo?

Pega.

4. Oferecer assessoria jurídica utilizando informações priviligiadas fornecidas por correligionários do alto escalão federal?

Não pega.

5. Voltar para casa, depois de tomar duas taças de vinho, dirigindo tranqüilamente?

Pega.

6. Criar centenas de empresas para despistar crimes contra o sistema financeiro, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e tráfico de influência?

Não pega.

7. E, se eu não tiver escrito no vidro traseiro que "há um seqüestrador e um refém neste carro", mesmo que eu seja o refém, a polícia me pega?

No Rio, pega.

8. Subornar um delegado da PF com um milhão de reais para ser excluído de investigação sobre corrupção, evasão de divisas, sonegação fiscal e formação de quadrilha?

Não pega.

9. E se, na defesa do patrimônio público e das divisas nacionais, eu expedir mandado de prisão contra banqueiros, ex-prefeitos, doleiros, lobistas e laranjas?

Pega. Mas, além de eles ganharem instantaneamente habeas corpus, com a ajuda do STF v. vira réu pouco depois.

10. Recusar-me a usar bafômetro?

Pega.

11. Recusar-me a usar algemas?

Não pega.

15.7.08

Confesso ter um problema com raízes. Não as consigo cultivar. Por mais que tente, estou sempre a arrancá-las. Dos projetos, dos trabalhos, da vida das pessoas. Minha vida é um vôo livre. E o ruim das liberdades são as prisões que elas constroem. Perdendo a arte da aterrissagem, aos vizinhos já nem posso dar um oi, sem lembrar do incômodo trazido pela necessidade de repeti-lo amanhã.

4.7.08

Lei Seca causa nojo em toda a sociedade

E a sociedade sabe que bebida e direção não combinam...

"Mas por que, então, dá um certo mal-estar não poder mais tomar duas taças de vinho no jantar e dirigir de volta para casa?"
Sérgio Costa, jornalista.

"A lei é problemática e eu não tenho dúvidas de que o Judiciário vai derrubá-la."
Hédio da Silva Júnior, ex-secretário de Justiça e professor de Direito.

"É demagógica, anti-social, excessivamente draconiana e inconstitucional."
Percival Maricato, diretor Jurídico da Abrasel.

"Uma medida malfeita e que pode ser contestada judicialmente."
Delegado Tabajara Novazzi Pinto, diretor da Academia de Polícia Militar de São Paulo.

"Não há crime sem condução anormal. (...) O direito penal atual é dotado de uma série de garantias, como a ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa concreta ao bem jurídico protegido. (...) A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um abuso patente, que deve ser corrigido pelos juízes. Em síntese, quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue), mas não chega a perturbar a segurança, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante."
Luiz Flávio Gomes, professor doutor em direito penal, ex-promotor e ex-juiz.

"Ô... quélo é beber nezza porra, carai!"
Seu José, bêbado.

27.6.08

Manifesto

Um espectro ronda minha cabeça. O espectro da tal nova lei que manda prender motorista bêbado. Não que eu queira ser um desses. Mas o fato é que não precisava criar uma lei tão rígida para reduzir mortes no trânsito; bastava-se cumprir a antiga. Afinal, duas latas de cerveja não matam, nunca mataram nem jamais vão matar ninguém. Causadores de acidentes estão sempre muito além desse limite. E, por eles, o Estado invade os direitos individuais, proibindo as poucas diversões públicas, tolhendo a liberdade e levando-nos a uma sensação de impotência e frustração. Mais uma.

Quando deveria aparecer o maldito lobby dos comerciantes e industriais, não aparece. E fica a questão: deve-se respeitar uma lei com a qual não se concorda. Ou melhor: essa lei será respeitada, ou será apenas mote para atos generalizados de pequenas e cotidianas corrupções. A tradicional prática do suborno talvez ganhe terreno. A extorsão armará campanha nos arredores das casas noturnas. E, outra vez, tudo terá sido mudado para não mudar nada.

De um modo ou de outro, pra mim fica bem claro que aquele que descumpre leis e busca meios de não ser punido, será um corrupto, se sua transgressão comprovadamente causa males. Porém, será íntegro, se descumpre leis consciente de que tal transgressão não infringe a lei maior chamada Ética. Talvez, para se livrarem da culpa e da pecha infamante de corruptos, muitos precisem virar anarquistas. Mas, pelo menos, conscientes da sua integridade, os corruptores poderão finalmente libertar-se dos grilhões que até então os amarravam à vergonha. Ora, uni-vos.

20.6.08

Crítica às críticas à educação brasileira

Atualmente, poucas coisas me emputecem. Antigamente, muitas coisas me emputeciam. E enquanto não chega o amanhã, vejo o jornal fazendo o jogo sujo do governo, juntando greve, professores, má qualidade da educação e trânsito no mesmo balaio, e sinto raiva.

E sinto raiva dos professores. Porque poderiam fazer greve sem levar o injusto rótulo de causadores de trânsito na avenida paulista. Porque poderiam ser mais criativos. Porque poderiam ser mais unidos. Porque poderiam ser todos bons profissionais, e não são. Porque os bons, dadas as condições de trabalho, só conseguem ser medíocres; e os maus, dado o desleixo do poder público, aproveitam-se de todas as brechas possíveis – inclusive faltas abonadas – para serem nada.

O governo erra (ou acerta), quando: 1) centra na figura do professor o problema da educação; 2) pune os maus e os bons indistintamente. Primeiro, muito antes do professor, a má qualidade do ensino é efeito do fracasso da cultura brasileira, da família e da nação. Criança que não vê pais lendo não vai ler nunca. Família que não acompanha rendimento escolar educa o filho a desvalorizar a escola. País cujas escolas não têm porteiro, nem giz, nem livro, nem carteira, nem limite de alunos por sala, nem salário decente nem profissionais satisfeitos não chega nunca a ser nação. Segundo: a existência de maus professores na rede só mostra a incompetência do Estado e de todos. Do Estado, porque a dificuldade em demitir um professor concursado-porém-inepto não faz dele o culpado do fracasso escolar: o real culpado é o criador ou o mantenedor deste sistema enferrujado. De todos, porque se ineptos chegaram a concursados é porque um amplo arranjo social desencorajou os aptos ao magistério. Por fim, o governo erra, se seu objetivo é o bem-comum. Mas acerta, quando seu objetivo é o bem de uma parcela insignificante, mas poderosa, interessada na manutenção de status quo, dominação política, concentração de renda, ignorância do povo e infelicidade geral da nação.

9.6.08

Eu já ouvi falar em bloqueio para escrever. Mas não para ler. E só depois de muito me aporrinhar, numa série de atos enfadonhos e continuados, é que pude perceber que dos últimos quinze livros que comecei, não terminei nenhum. Parece que perdi uma faísca de interesse pela vida que sempre encontrei dentro das páginas.

Vou comprar um Nintendo Wii.

28.5.08

A ingratidão reina. O celular demitiu-se. E levou consigo a agenda. E todo mundo se foi. Outra vez. Outra vez forçado a ligar pra todos esses que não ligam pra mim.

17.5.08

Sobre o acordo ortográfico

Cresci profissionalmente (hahaha!) ouvindo de colegas um profundo desprezo para com os puxas. E, sempre que podia, fazia coro, fustigando-os com as chicotadas da desaprovação. Mas o tempo vai mostrando que talvez os tenha julgado mal, afinal, nada se perde ao agradar as pessoas com quem se trabalha.

E como me permitiram faltar ao trabalho, na última quarta fui assistir a uma palestra da Câmara Brasileira do Livro, que, preocupada com suas editoras, promoveu um encontro sobre o novo Acordo Ortográfico. Que é uma óbvia manobra para ampliar o mercado editorial, e não muito mais além do lucro. Sem prejuízo de ser isso o principal, convenci-me de que também resolverá outras coisas, a saber, delicados incidentes diplomáticos (como escrever ao fim de cada reunião uma "ata" e uma "acta") e educacionais (como os que ocorrem em Timor-Leste, onde a concorrência de professores portugueses e brasileiros nas escolas, utilizando simultaneamente uma e outra grafias, tem confundido bem a cabecinha dos timorenses).

O tal Carlos Alberto Ribeiro de Xavier começou a palestra desculpando-se por ser economista, não ser gramático e não poder tirar dúvidas especificamente ortográficas. Estava ali apenas para traçar um panorama mais geral, apontar justificativas, falar sobre aspectos jurídicos e programáticos etc. Lá pela metade da palestra, quando aconteceu a quinta pergunta inconveniente e gramatical, o sujeito irritou-se: pegou o calhamaço com as novas regras e foi dizendo "Gente, eu não vejo dificuldade nisso aqui não...", e foi passando as páginas, apontando o que parecia óbvio. Donde se conclui que também não é bom desagradar quem está trabalhando.

12.5.08

Um poema de Joaquim Pessoa

Hoje, pela manhã, parei um poucadinho olhando a falta de significado de tudo. A boa notícia é que notei que continuamos indo: caminhando. E cantando. E, se houvesse uma canção, certamente a seguiríamos. Porque adoramos seguir canções.

Agora, o que eu particularmente não gosto é esta coisa de cantar "sem ter nada na goela". Ô coisa chata. E eis como chegamos ao poema temperamental de Joaquim Pessoa (que não é mais um heterônimo do Fernando, com eu pensei no início).


Poema Temperamental
(Joaquim Pessoa)

Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Com certeza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!
Ó caralho!

30.4.08

Se o Ronaldo queria experimentar um travestizinho, ou três, ninguém tem nada com isso, afinal. Agora, dizer que confundiu com mulher é que são outros quinhentos.

27.4.08

Hoje pela manhã, no páteo do colégio, num sol de rachar, uma banda independente fez um barulho tão ruim que lembrou um tremor de terra, e um geólogo pôs-se a lamentar o azar que teve por estar na Mooca durante o terremoto, que, segundo me disse, foi causado por uma acomodação de placas tectônicas, uma coisa sublime, conforme lhe parece. E explicou que a Mooca, por estar no centro da bacia geológica, não sofreu os efeitos sentidos nas demais zonas periféricas. E ficou esse gosto de azar pra ele.

Senti-me culpado por ter me tornado alguém insensível: em vez de gozar o momento, imaginei que as estranhas vibrações que me balançavam a mesa fossem obra de espíritos, e, não obstante, segui trabalhando despreocupadamente.

21.4.08

Apostas para a sucessão municipal

Faltam nomes para apostar nestas eleições. À prefeitura de Mauá concorrem nomes de peso, todos com muitas chances e muitos problemas. O atual prefeito, Leonel Damo (PV), se aposenta e, curiosamente, não apóia sua natural sucessora, Vanessa Damo. A filha é deputada estadual pelo mesmo partido e não escondeu o descontentamento, ao ser preterida por Leonel, que resolveu apoiar Francisco Carneiro, mais conhecido como Chiquinho do Zaíra (PSB). Carneiro foi durante muito tempo o homem-forte da gestão Damo. Mas o descontentamento de Vanessa pode ser puro teatro.

Além de Carneiro, existem ainda as candidaturas do PSDB e do PT: Diniz Lopes e Oswaldo Dias, respectivamente. Carneiro conta com o apoio do atual prefeito. Lopes tem a seu favor o saldo político de uma gestão interina em 2005, quando, como presidente da câmara, assumiu o executivo enquanto a Justiça não definia o resultado das eleições. Dias possui um legado de 8 anos de mandato, entre 1997 e 2004, quando o PT obteve aprovação popular significativa.

Problemas: o primeiro tem reprovadas pelo TCE as contas relativas a 2005, quando esteve à frente da Sama, autarquia municipal responsável pelo saneamento básico; o segundo também tem rejeitadas as contas da Câmara referentes a 2006, quando voltou a comandar o Legislativo; o terceiro tem reprovadas as contas da prefeitura pelo mesmo órgão.

Em conversa recente com um vereador petista, ouvi uma queixa mais ou menos assim: “o problema do PT, e mais urgente, do Oswaldo, é que nós temos formado muitos militantes, muitos intelectuais, muitos administradores e legisladores. Mas não formamos quadros para atuar no Judiciário; seria bom que não houvesse uma brecha de representação em tão importante espaço; não para que, com isso, o PT fosse favorecido, mas sim para que não fosse injustiçado.” E falou dos diversos casos de promotores e juízes que só querem saber de ferrar o PT.

É fato que Leonel Damo tem muita influência no Poder Judiciário. A cassação em 2004 da candidatura de Márcio Chaves (PT), seu principal concorrente, e a posterior batalha judicial provam isso. Um ano depois, Márcio Chaves enfiava o rabo entre as pernas, esgotados todos os recursos, e Leonel Damo era diplomado, ganhando tranqüilamente a prefeitura mesmo sem ter tido a maioria absoluta dos votos. Um escândalo que a população mauense não quis ou não pôde perceber.

A considerar isso, Vanessa Damo, se herdou a habilidade política do pai, incluindo a arte de trocar favores e traficar influências, conseguiu por meios judiciais derrubar todos os seus adversários, criando assim um grande vácuo político. Resta saber o que o pai deve a Francisco Carneiro para enganá-lo de tal forma, apoiando-o publicamente e, nos bastidores, derrubando-o.

7.4.08

A escola como instrumento de inibição do pensar

É um fato freqüentemente observado e comentado em relação a crianças pequenas, quando estas iniciam sua educação formal no jardim de infância, que elas são ativas, curiosas, imaginativas e inquisitivas. Durante um certo tempo elas preservam estas características maravilhosas. Mas gradualmente, então, ocorre um declínio destes fatores e tornam-se passivas. Para muitas crianças, o aspecto social da escola é seu único atrativo. O aspecto educacional é uma provação pavorosa.

(Matthew Lipman. O pensar na educação. Petrópolis, Vozes, 1995, p. 22, apud: Evandro Ghedin. Ensino de Filosofia no Ensino Médio. São Paulo, Cortez, 2008, p. 68)

Ainda que pensemos que este declínio é próprio da adolescência, fase caracterizada pelo não-pensamento, não-imaginação e desinteligência, ainda assim... não dá pra não sentir vergonha da escola. E pena das crianças que passarão por ela.

30.3.08

Sonhos

Não que eu tenha dotes surrealistas, mas acordei bem esquisito trás-dontonte: não sabia se me preocupava ou ria. O sonho foi o seguinte: vou fazer uma conversão à esquerda, nada aparece no retrovisor, viro, e um motoboy surge do nada, e eu, já furioso com a brusca aparição, antes mesmo que ele pudesse acionar a maldita buzina, atropelo-o violentamente. O desgraçado tem tanto azar que ao cair faz como a protagonista do Menina de ouro, com a diferença de que sua cabeça não bateu num banco, bateu foi numa vergonhosa ondulação do asfalto (existentes mesmo em ano de eleição, vá lá entender), e também que não ficou tetraplégico, entregou foi a alma a deus ali mesmo. "Fudeu", pensei, esperando a polícia chegar e torcendo pra não ter tomado cerveja.

Horas mais tarde, já passada toda a sorte de curiosos, já passada a ambulância, já removido o cadáver, chega a polícia. E eu lá, na boa, esperando. Vem três pm's, um mais velho atrás, e à frente dois mais novos, incuindo uma pm. É ela quem fala comigo primeiro, "Sua carta, cidadão", o bastante para causar no mais velho um ataque. "Você me mata de vergonha! Quantas vezes já falei pra pedir a CARTEIRA DE HA-BI-LI-TA-ÇÃO! Carta é o caralho!" A moça ouve submissa, e tenta outra vez mudando comigo o linguajar. Enquanto entrego os documentos, o mais velho vira-se para o lado e desta vez quer explodir. "Que diabos v. está fazendo aí??!!" E só então percebi que o mais novo estava a escrever no meu capô uma carta, contendo meus direitos, e já chegava à parte em que tudo o que eu disser poderá e será usado contra mim.

E acordei pensando esquisito no que quereria dizer meu sonho, na dúvida entre tomar mais cuidado com motoboys, não beber antes de dirigir, ou voltar a escrever cartas, que há tempos não mando nem ganho. Fazer um post talvez seja a melhor escolha, afinal, das tarefas, a menos trabalhosa.

18.3.08

Fernando Sabino

Desconfio que 11 de outubro de 2004, data da morte de Fernando Tavares Sabino, foi um dia ruim. Lendo-o pela primeira vez, em O grande mentecapto, veio a emoção meio culposa de quando a gente acha algo tão saboroso que nos faz perguntar o motivo de não ter provado antes. Há tempos um livro não me fazia rir um riso que não fosse feito de sarcasmo. E o ruim de tudo é que não tenho mais a chance de mandar uma cartinha agradecendo o autor.

Mas o pior de tudo mesmo é pensar que naquele dia pouco se falou dele. Todo mundo só falava da morte do Christopher Reeve.

13.3.08

Pra mim chega. Eu desisto. Nunca vou aprender a tomar as grandes decisões. Não as certas. Meu deus, eu não consigo aprender! Mas, enfim, nem tudo são espinhos. Se a vida é realmente uma só, então o que a gente vai construindo não pode mesmo ser nada além de uma grande coleção de arrependimentos.

9.3.08

Consumo

Naquele dia era já a segunda vez que da janela do navegador contemplava o notebook. Talvez porque vermelho, não conseguia deixar de desejá-lo. Tela de LCD, um potente HD, 2 GB de memória, câmera e microfone integrados... ficava a se imaginar atraindo olhares onde quer que fosse, fazendo videoconferências em qualquer lugar...

– ... ainda mais com essa nova tecnologia Sound Reality, que proporciona sons muito mais nítidos e profundos! – dizia a seus colegas de trabalho.

Passou os dias seguintes vigiando o produto, navegando de loja em loja virtual, comparando preços, atento a promoções-relâmpago... Duas semanas depois foi encontrado em frente ao computador dando gritos histéricos e arrancando os cabelos:

– Já diminuiu 1.000 reais! Em uma semana! 1.000 reais! E continua baixando... há dias o preço está em queda! Eu vou esperar... eu espero... posso esperar... um dia vou tê-lo, se vou! O que vocês querem é que eu compre logo, agora, já, mas não... Vocês pensam que eu tenho necessidade, que é essencial pra mim, que preciso dele, mas não: eu NÃO preciso! Posso esperar dias, meses, anos... a vida toda!

E seguiu atento à desvalorização do produto.

6.3.08

– ... e, portanto, esta unidade escolar desaconselha veementemente a cópia xerox de livros, pelas razões supracitadas, pelo respeito à legislação deste país e por entendermos que o direito autoral é importante, é necessário e é justo, na medida em que o valor das idéias merece nosso reconhecimento, algo inviável quando se faz uma cópia não-autorizada. Além do mais, reflitam, srs. alunos, no que está por trás deste seu discurso, ao dizer que "livro-de-vinte-reais-é-muito-caro" e, no entanto, acharem natural e barato pagar um lanche de mais de 10 reais no mcdonalds. Pensem no valor que nós, brasileiros, em nossa subdesenvolvida ignorância, NÃO damos ao livro!

Após um curto silêncio, um aluno, de 12 anos, de olhar curioso, de testa duvidosa, de pele negra, sentado na primeira fila, levanta timidamente o braço e pergunta com hesitação:

– Então, professor... se eu for pego tirando xerox de livro... eu... posso ser preso e ir pra Febem?

3.3.08

O Haikai
.
Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na bateia,
fica uma pepita.
.
(Guilherme de Almeida)
.
Com a felicidade deve de ser assim também. O diabo é que esse negócio de mineração, além de fazer um mal danado ao meio ambiente, dá um trabalho...

26.2.08

Despedidas

Eu sentirei falta do Fidel e seus discursos. Pronto. Falei.

19.2.08

Sobre as restrições ao tabaco

Cá na província brasileira, desde fins da década de 80 uma série de medidas restringindo o consumo de cigarro foram adotadas. E como a maioria das leis, não funcionam. Já se obrigou a escrever advertências no maço, já se proibiu propaganda em rádio e tv, já se vetaram os patrocínios a eventos esportivos, já se chocaram pessoas com ilustrações sobre os danos do fumo e, agora, desde a semana passada, São Paulo já tem lei municipal (até justa) contra o fumo em locais que não tenham área reservada para tal prática perniciosa (detalhe: a lei é de junho de 1990). E ainda estuda-se encarecer o produto com impostos. As autoridades paulistanas, porém, não foram tão radicais quanto as francesas, que em 2007 proibiram o fumo em bares, restaurantes, cassinos, discotecas e o diaba-quatro de maneira ampla, geral e irrestrita.

Estas leis podem até ser justas, podem até reduzir o consumo, mas nunca vão eliminá-lo, simplesmente porque os fumantes não são todos iguais. Existem quatro tipos de fumante: os radicais, os moderados, os culpados e os convictos. Os mais perigosos e inconvenientes são os primeiros, que não têm bom-senso, compram marcas falsificadas e fumam quatro maços por dia. Cigarro mais caro talvez vá duplicar esse grupo que fuma os paraguaios. Os moderados, caracterizados pela drogadicção de fim de semana, são os mais sem-vergonhas, porém os menos inconvenientes: estes não devem ligar pra cigarro caro. Os culpados são os mais chatos: ficam a se lamentar do vício a toda hora, e irritam até os próprios parceiros, a quem tentam transferir parte de suas neuroses. Saindo a nova lei, têm uma boa razão pra parar, e isso vai ser bom pra todos, todos mesmo. Os convictos são uns poucos que ainda resistem, ainda rebeldes, mas já cansados, já com dúvidas, já sozinhos, ante a marginalização contínua a que vêm sendo submetidos. Não sei como o cigarro caro afetará esse último grupo, mas, para um bom fumante, creio que o ideal seja uma mescla de convicção e moderação. Às vezes, me dizem, “Nossa, mas v. fuma tão pouco, por que não pára?”, ao que respondo orgulhoso, “Mas não fumo pouco com intenção de parar. Fumo pouco para fumar a vida toda.” Afinal, a humanidade usa droga há séculos e no curto espaço de tempo em que vivemos alguém tem de manter acesa a brasa da rebeldia e da tradição. Ainda que fumar cause infarto e morte, olhar a questão pela perspectiva histórica vai nos mostrar que isto é um nada.

O grande problema é outro: ir pro céu e não ter área pra fumante lá, isto sim é que será o inferno.

11.2.08

Antero de Quental

Antero de Quental, líder da geração de 70, poeta, político, revolucionário, símbolo do realismo português, em 11 de setembro de 1891, em profunda depressão, suicidou-se com um tiro na cabeça, numa praça pública, romanticamente, com toda a ironia que este romantismo represente para um realista. E, coincidentemente, nestes dias de conversas sobre tanatologia, uma amiga me falou sobre o Parnaso de Além-Túmulo, um livro publicado em 1932 por Francisco Cândido Xavier. Melhor, trouxe-me. Recebi com o gesto de desprezo que o meu discreto ateísmo recomendava. E quando abri suas páginas... meu deus! Uma enxurrada de poemas psicografados pelo médium por volta de 1931. De Casimiro de Abreu a Augusto dos Anjos, passando por muitos nomes significativos da poesia luso-brasileira. Fui logo a Antero de Quental, Guerra Junqueiro e a turma toda que, enquanto vivos, viveu descendo o cacete em tudo, sobretudo em Deus. E foi impressionante.

O Remorso

Quando fugi da dor, fugindo ao mundo,
Divisei aos meus pés, de mim diante,
A medonha figura de gigante
Do Remorso, de olhar grave e profundo.

Era de ouvir-lhe o grito gemebundo,
Sua voz cavernosa e soluçante!...
Aproximei-me dele, suplicante,
Dizendo-lhe, cansado e moribundo: –

“Que fazes ao meu lado, corvo horrendo,
Se enlouqueci no meu degredo estranho,
Acordando-me em lágrimas, gemendo?”

Ele riu-se e clamou para meus ais:
“Companheiro na dor, eu te acompanho,
Nunca mais te abandono! Nunca mais!”

Este soneto foi atribuído a Quental. Eu não sei o que gente que entende muito de literatura vai achar disso, mas pra mim, de significativo em termos de conteúdo, chamou-me a atenção a referência ao suicídio do autor e ao corvo de Edgar Allan Poe. Quanto à forma, é indiscutível a qualidade do soneto: vocabulário erudito, métrica perfeita, rimas ricas, talvez raras. Indubitavelmente Poesia. Quanto ao conjunto formado pelo livro, só sei de uma coisa: duvido, duvido muito que do alto de seus 21 anos de idade Xavier tivesse bagagem cultural suficiente para criar, sozinho ou com ajuda de amigos, algo tão engenhoso, poemas tão bem acabados e a um tempo tão singulares que nos permitem identificar realmente os traços estilísticos de um Castro Alves, de um Alphonsus de Guimaraens, de um Cruz e Souza. E embora isso não me tenha convertido ainda, confesso-vos que estou besta. Volto ao assunto quando concluir a leitura.

1.2.08

Uma história sobre histórias

O Cemitério São Pedro, situado na Vila Alpina, abriga, entre muitas histórias trágicas, um caso singular. Em 1974 treze corpos foram enterrados lado a lado. Eram parte dos 179 mortos do incêndio ocorrido no dia 1 de fevereiro, no Edifício Joelma. O que diferencia estas treze almas é o fato de que, por terem sido carbonizados, não puderam ser identificadas. Grande parte dos sobreviventes, mais de quatrocentos, escaparam do prédio em chamas graças ao elevador e aos denodados ascensoristas. Mas, após diversas idas e vindas, o sistema dos elevadores foi afetado pelo incêndio, causando a ruptura dos cabos e a posterior carbonização dos seus treze ocupantes.

Fui até lá esta tarde. Encontrei o seu João. Há mais de um ano, seu João, funcionário do cemitério, faz a manutenção do local, que além dos túmulos, conta com uma capela erigida em memória das treze almas. Uma infinidade de faixas, placas de mármore e flores rodeiam os jazigos. Na maior parte, agradecimentos por graças alcançadas. “Quem não acredita, que não caçoe!”, é o que adverte uma das devotas visitantes que encontramos no local. Já alcançou uma graça, tem fé que alcançará uma outra que necessita, e fala com a naturalidade daqueles que vêem a existência das coisas inverossímeis e a certeza de nosso desconhecimento da verdade. Uma outra senhora relembra o dia, quando tinha 17 anos e, trabalhando defronte ao edifício, viu e ouviu as cenas e os gritos de terror. Lá pelas tantas, lembra ao seu João que é importante “regar” os túmulos. Explica o porquê: quem morre carbonizado sente muita sede.
Então seu João percebe como tudo faz sentido. Conta-nos que, ao tempo em que era coveiro, sepultou uma criança cujos pais não tinham dinheiro. Assim, ele por conta própria plantou umas flores e, mal passou o tempo, já lá havia um pequeno jardim sobre a cova. Mas o fato intrigante é que, pouco tempo depois do sepultamento, um menino aproximou-se dele e pediu um copo de água. Seu João deu-lho. Mas era o mesmo menino que havia sido sepultado! Quando os pais finalmente voltam para visita, surpreendem-se com o túmulo tão bem cuidado, e ao descobrirem quem foi o responsável, alegram-se e conversam. E enfim revelam ao coveiro a causa mortis do filho: fogo.

Esta foi uma tarde que precisa ser refeita.

É claro que acredita quem quer. Mas há a lição de Alex Castro sobre uma de nossas prisões: que importa crer ou não crer? Boas ou más, crenças e descrenças sempre limitam as visões. E o que se colhe do contato com as histórias alheias, ou do além, é sempre a beleza da experiência humana, diversa, prodigiosa, incomum. E transcendente. Porque estas histórias estarão sempre acima das idéias e conhecimentos ordinários.

31.1.08

Praia do Sono

No município de Paraty, extremo sul do Rio, há um coletivo que faz o percurso de uma hora do centro da cidade até o condomínio Laranjeiras, com fama de “o mais sofisticado do Brasil”, quiçá da América. Nos meses quentes é para lá que vão Antônio Ermírio de Moraes, os Maluf, os Camargo (da empreiteira Camargo Corrêa), e outros, e vão de helicóptero. Como a gente não tem um, uma vez no Laranjeiras seguimos a pé pela trilha de uma hora que leva à Praia do Sono, nosso destino. Era réveillon.

















Confesso ter me surpreendido com a natureza conservada do lugar, levando em conta a quantidade de gente que o habita (imagino não passar de 200 pessoas). Sem energia elétrica, sem escolas, sem estradas, meio que sem perspectivas, e ainda sofrendo diversas pressões para se retirarem do lugar, os habitantes resistiram e transformaram o terreiro de suas casas em quiosques, cafés, pequenas mercearias, áreas de camping, e sobrevivem do turismo. Pensando em inovação, desenvolvimento sustentável e proteção às matas, achei até um bom exemplo de exploração do potencial ecoturístico brasileiro. Não? Não. Nem todos pensam assim.
A mata atlântica é o bioma mais ameaçado do país e o segundo mais ameaçado do mundo; só perde para as já quase inexistentes florestas de Madagascar, no sudeste da África. Em 2006, após dura luta com a bancada ruralista, foi aprovada a Lei da Mata Atlântica, que regulamenta o uso e a proteção da floresta. A lei é ambígua. É boa, mas deixa a sensação de que veio tarde – não só porque passou quatorze anos em trâmite pelo congresso, mas principalmente porque hoje restam só 8% da configuração original da mata – e a desconfiança de que não será cumprida. Mesmo antes dela, no fim dos anos 80, o dono do Hotel Glória, Eduardo Tapajós, queira-porque-queria construir na região uma mansão em estilo palafitiano, metade na praia metade nas águas do mar. A Marinha vetou o projeto, claro. Mas Tapajós era amigo do Sarney, que ajudou a derrubar o embargo, e o bangalô foi construído. Para leis contrárias, nada como o tráfico de influências.

Esta nova lei diz que “é vedada a supressão de vegetação primária para fins de loteamento e edificação”. Se os condomínios detiverem sua expansão, talvez continuemos a contar com este um décimo de mata para as futuras gerações. No entanto, os moradores da Praia do Sono constantemente se queixam de assédio. Embora a maioria não queira sair, alguns moradores venderam suas propriedades, e o Laranjeiras parece ter ampliado seus limites nos últimos tempos. Agora, pensemos: lá existem trezentos lotes de mil metros quadrados, mas a maioria dos proprietários tem mais de dois lotes; cada lote custa aproximadamente trezentos mil dólares; um terço do IPTU arrecadado pela prefeitura provém do condomínio (embora nos seja leviano afirmar que haja elementos favoráveis ao tráfico de influência); uma diária no Laranjeiras custa mil reais em baixa temporada. Supondo que o negócio esteja rentável, o que um administrador de condomínio de luxo faz: respeita a lei ou amplia lotes para venda? Pelas trilhas, já começam a aparecer algumas placas.

O fato é que o modelo desenvolvido pelos caiçaras não agrada. Parece haver um incômodo muito grande em relação ao público recebido, que fica “perigosamente” próximo de uma elite que quer ter exclusividade na contemplação das últimas belezas naturais do país. Soaria quase ridícula essa suspeita, não fosse haver gente como a ambientalista Adriana Mattoso, que há alguns anos apelidou esse turismo de durismo: “o durista de mochila, miojo e drogas tem que ser redirecionado para bem longe...” A adjetivação marginal vem a calhar para fundamentar a exclusão dos indesejados, só não garante a exclusão dos turistas desejáveis do ilícito grupo consumidor. Talvez o problema mesmo seja a combinação mochila-miojo. Faz sentido capacitar a comunidade, profissionalizar os serviços, recuperar a arquitetura caiçara, implantar trilhas, elevar as tarifas, já que o fim último é receber um turista de altíssimo nível. Porém duvido que essa reestruturação não leve a mais desmatamentos: o turista de alto nível jamais aceitará o nível primário de conforto que os duristas adoram. Em todo caso, para nós, pés-rapados, parece estar chegando a hora de desarmar as barracas.

14.1.08

Isadora Ribeiro de Alcântara

Isadora Ribeiro de Alcântara, 32 anos, dentista, tinha uma angústia, uma aflição, um diabo dum negócio que apertava a garganta. Daí que hoje, chegando em casa, não guardou compras, não tirou sapatos, não checou emeiols, não alimentou a calopsita, não tomou banho, não deu aquela cagada, não nada. Caiu-se no sofá, e foi pensando naquelas indecentes marcas de batom encontradas ontem à noite na cueca do marido. Que obviamente não eram dela, ora. Tinha tanto horror a sexo oral, que não facilitava, e ia mantendo seus lábios sempre acima da terceira vértebra lombar. Alegava motivos religiosos, mas a desconfiança do marido, e minha também, é que assim ganhava terreno na defesa de seu próprio cóccix. Quando ele finalmente chegou da faculdade (era professor), pudera!, estranhou aquele desmazelo: “Amor, tá tudo bem?”, “Hein!”, e levantou-se sobressaltada, baixando a saia que subira até a cintura, “Sim, cochilei”, foi o que respondeu, e mais não disse, foi levando pra cozinha as porcarias congeladas que tinha trazido. O marido que preparasse a janta, ele adorava cozinhar, isso todos sabiam. Jantaram em silêncio. Dormiram.

No dia seguinte, que seria amanhã, mas como chegou agora fica sendo hoje, Isadora acumulou funções, obturando dentes e planejando uma vingança cheia de inteligência, cálculo e acessórios digitais, no que resultou em algumas gengivas cortadas e na obturação de um dente que não precisava. Quando despediu-se do último cliente, que sentia estar com a boca torta (e estava mesmo), o telefone tocou, e era ele avisando que precisavam conversar em tal lugar, mais para ali, entrando à esquerda depois daquele motel, fazendo um gato pra pegar o retorno e outras infrações que ninguém multa, nem mata ninguém. Foi. E lá ele confessou ter um caso e querer o divórcio. Era só o que faltava. E Isadora passou anos a se perguntar de onde teriam vindo as marcas de batom, já que, como depois veio a saber, ele tinha mais era ido morar com um aluno por quem se apaixonara, menos pelas idéias brilhantes do que pelo corpo adolescente e os ideais de ateísmo e revolução social. Tão românticos e belos.

8.1.08

Para esquecer

Ontem acordei com pé esquerdo, outra vez. Inacreditável: furtaram-me um livro enquanto sacava grana no caixa. Pra ser exato, um livro, uma agenda novinha e os três números da versão tupiniquim de Ex Machina. Mas o pior é o livro: a leitura pela metade, meu deus. Uma mistura de angústia crescendo pelo peito, queimando as fossas nasais, olhos que se umedecem, vontade de chorar, e uma raiva dos diabos. Porra, roubar livro, a que ponto chegamos! Inda bem que hoje já foi melhorzinho.

Mas... o que ninguém me tira da cabeça é que podiam ter me roubado a carteira, ah bem que podiam, sim senhor. Mas não. Já não querem nossas carteiras; agora, querem nossas almas.

4.1.08

Microconto roubado da página 73 da História do Cerco de Lisboa

Fizeram-no passar para a sala de espera da direcção e ali o deixaram ficar mais de um quarto de hora, o que serve para demonstrar a vanidade de temores que pouco têm de pontuais.

3.1.08

Micros

Difícil levantar: acordou, sentiu o sol, até ouviu automóveis, mas não conseguia ver nada. Aí lembrou: morto. Cemitério da Consolação.

2.1.08

A cretinice, os internautas e o problema em se ter amigos

Eu tenho que falar. Há um grupo de pessoas que são, decididamente, imbecis. Sua incapacidade não se deve a uma perturbação do desenvolvimento físico, considerando a quantidade de emeiols cretinos que elas conseguem enviar por dia, nem tampouco intelectual, já que sabem exatamente o que estão fazendo. Sua idiotice é, antes, uma consciente escolha, uma decisão, e é por isso que são decididamente imbecis.

Surgiram no Brasil na segunda metade da década de 90. Primeiro, por emeiols, espalharam sua estupidez em correntes, burrice lúdica que consiste em gastar o tempo fútil dos néscios. Contudo, sua maior contribuição foi, paradoxalmente, filosófica, quando, num atentado à religião, suscitaram dúvidas metafísicas tais como “Terá acesso a emeiol a Virgem Maria, para me castigar, caso eu não repasse essa mensagem?”

A palurdice não se restringiu a superstições fundadas em espiritualidades toscas. Não tardou assomar às caixas de entrada emeiols com eslaides anexos, marcados por algumas dezenas de encaminhamentos. A literatura e pintura kitsch nunca tiveram tanta força. Ilustrando paisagens bucólicas, mensagens bestiagas, ababosadas, extraídas de livros de auto-ajuda, principiaram a atoleimar a rede mundial. E as pessoas iam lendo aquelas porcarias sobre o amor e cultivando o ódio por aquelas planícies, cachoeiras, naturezas-mortas.

A canalhice era evidente. Logo ficou claro que aquilo que vinha nos anexos, de autoria duvidosa, em nada correspondia à sinceridade do remetente. Muito poucas vezes havia algo de sua autoria expresso nestes emeiols. E quando havia, restringia-se a algo como “Muito legal!”, apenas. A superficialidade de tudo é que é ainda mais flagrante. Somente o sentimentalismo débil justificaria a reunião artificial de diversos destinatários num mesmo emeiol expressando os mais altos votos de urbanidade, a cada dia, a cada semana, a cada mês. De resto, uma tontice.

Depois, na década primeira do século XXI, quando descobriram o orkut, a toda sexta-feira alguém deixa um scrapt: “Bom final-de-semana!”. Que é pra começar a estragá-lo. É claro que eu não vou dizer tudo isso aos meus amigos que gostam de receber e encaminhar emeiols, porque, embora não pareça, eu gosto dos meus amigos. Mas daqui pra frente, quando eu estiver puto com eles, venho aqui e desabafo. É isso.

Agora, pensando bem, eu também acho que, se tenho amigos assim, o problema talvez seja só meu. Lembrete: rever os critérios para aquisição de amigos.