Quando me disseram que ele estava morto, por uma mensagem sms recebida em meio ao trânsito e à felicidade de uma sexta-feira, ficou a pairar em frente a pergunta, E agora, que faço, e era realmente um não saber o que fazer, também por uma dessas mortificações instantâneas que nos deixam provisoriamente sem alma. É estranho que alguém a quem nunca cumprimentamos e que não nos conheça, nem a mim nem à amiga que me escrevia, possa nos causar dor de perda, que vai permanecendo ainda, passadas dez horas de sua morte. Temos em comum amar José Saramago. Metonimicamente. Me veio então o imperativo de fazer uma homenagem, passou pela cabeça lhe dedicar uma oração, ideia ridícula rapidamente afastada com um abanar de orelhas, depois veio um minuto de silêncio, coisa também descartada, embora menos católica, mas igualmente supersticiosa e imprópria, porque não se poderia nunca calar o pensamento quando morre o homem que passou a vida a dizer o que pensava. Ainda morto, sua voz continuará a falar. Ad eternum. Deus terá agora uma boa companhia, desde que exista, fique claro. Imaginemos o diálogo:
"[...] assim como há milagres para o bem, também os tem havido para o mal, testemunhem-no aqueles infelizes porcos da Escritura que se lançaram ao precipício quando o Bom Jesus lhes meteu no corpo os mafarricos que no endemoninhado estavam, de que resultou padecerem martírio os inocentes animais, e só eles, pois muito maior tinha sido a queda dos anjos rebeldes, logo feitos demónios, quando do motim, e, que se saiba, não morreu nenhum, com o que não se pode perdoar a imprevidência de Deus Nosso Senhor que por essa desatenção deixou fugir a oportunidade de lhes acabar com a raça por uma vez, de bom conselho é o provérbio que previne, Quem o seu inimigo poupa, às mãos lhe morre, oxalá não venha Deus a ter de arrepender-se um dia, tarde de mais. Ainda assim, se nesse fatal instante tiver tempo de recordar a sua vida passada, esperemos que se lhe faça luz no espírito e possa compreender que nos deveria ter poupado, a todos nós, frágeis porcos e humanos, aqueles vícios, pecados e sofrimentos de insatisfação que são, diz-se, a obra e a marca do maligno. Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga."
(História do cerco de Lisboa. RJ/SP: O Globo/Folha de S.Paulo, 2003, p. 19)
1 comment:
também fiquei sabendo por sms. achei interessante alguém achar que eu deveria ficar sabendo logo, mesmo por sms, da morte do saramago... acho que isso diz um pouco sobre o tipo de pessoa que a gente é, não?
mas vou te contar: ainda tô de luto pelo michael jackson.
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