3.7.12

A escola

Retrato-me - antes que seja tarde - e nego o que disse.

As bobagens sobre paz e guerra não merecem comentário. As sobre educação sim. O problema aí é outro: está na unidade teoria-prática. Melhor dizendo, na disjunção entre as duas, o que, no limite, resulta na eliminação da primeira, cotidianamente. Com isto, em vez de simplificar as coisas,  a grandeza da questão eleva-se a um complexo problemático. Que, se por um lado, dificulta a solução (que agora tem de ser global), por outro não envereda pela pobre estrada das soluções parciais, cujos efeitos tem necessariamente de ser parciais, efêmeros e paliativos. Também, corrige a miopia de se enxergar a escola como ilha sagrada, descolada do restante da sociedade - que é, na realidade, todos os demais indivíduos, igualmente seccionados teórico-praticamente, em maior ou menor grau. Em contrapartida, se ela é parte dos males, também é parte da solução: fica assim reposta a escola como lugar de depósito de esperanças. Desde que não se faça nela a já muito conhecida "educação bancária".

A unidade teórico-prática na escola se dá de maneira bastante difícil atualmente – e falo primeiro do que é, para depois falar do que deve ser. Na verdade, a unidade inexiste. Porque a relação social de ensino-aprendizagem é realizada sob a forma da alienação (no sentido de 'compra-e-venda' de trabalho), ordenada por instituições do Estado ou da iniciativa privada, orientada para vagos princípios morais cada vez mais contraproducentes à realização do humano, porque pautados por valores, leis e órgãos do Estado, sabidamente instituição de classe – num momento em que é flagrante a crise da escola, da família, dos indivíduos, da sociedade em geral, refletindo não mais que as crises do capital e seus produtos. Curiosamente, o sistema se mantém de pé. Mas a situação da escola, como do mundo, é calamitosa. Se estamos pensando numa relação social de ensino-aprendizagem para além destas instituições, a coisa pode mudar de figura. Mas, aqui, restrinjo-me à educação institucionalizada, especialmente a básica-pública. Disse lá atrás que a relação ocorre sob a forma da alienação porque os professores são assalariados, em geral. Portanto, ao ensinar, seu fim último é o salário (e não poderia ser de outra maneira nesta forma social) – dando-se uma unidade prático-teórica das mais mesquinhas e apequenadas (se se considera que o produto da escola não é o mesmo produto da fábrica de automóveis), pois muitas vezes unir prática e teoria verdadeiras na escola é contrapor-se à própria instituição, pondo em risco o pescoço; em suma, a relação social de ensino-aprendizagem vira uma relação social mercantil, onde o fim último não é o aluno, mas outra coisa. Se a coisa se atenua no ensino superior (e deve contribuir para isso a presença ali de subjetividades mais desenvolvidas - mas não acredito numa cisão tão profunda), no ciclo básico ganha feições horrendas. Isto me parece um nó a ser desatado: se não se resolve primeiro, e mesmo que só venha a se desatar por último, todos os primeiros passos devem estar a ele subordinados e tê-lo como guia.

É preciso em primeiro lugar ter claro que – e entramos no que deve ser – a ação humana é teleológica (orientada para um fim). Há em voga estreitas concepções de escola que mandam apenas fornecer mão de  obra para o mercado - o que frequentemente põe perguntas como: pra que serve ler poesia? Se a concepção de formação quer ir além disso, não pode ter o professor outro objetivo que não a formação integral, a realização multilateral das potencialidades humanas. Tudo isto já foi inclusive elevado até à forma de lei, diretrizes e discursos escolares. Falta agora realizá-lo no mundo sensível. Depois, tendo em vista a especificidade do material a ser formado, será preciso, para que haja formação integral do aluno, situações de ensino-aprendizagem que lhe permitam agir teleologicamente, unindo palavras e ações. Por falar nisso, será preciso conceder ao aluno a liberdade de falar e agir. Isto eu ainda não vejo posto, e é pressuposto de tudo o mais. Aqui entra uma outra face do problema teoria-prática: o aluno é forçado a estar na escola. Por vezes, resiste ao ambiente, ao aprender e até ao próprio ato de pensar. Isto traz consequências danosas à escola e aos professores. Não é necessário que todos resistam; a atividade de uma pequena parcela pode se propagar em situações como essas, gerando até mesmo resistências passivas nos demais indivíduos. Constantemente, o discurso dos professores orienta-se no sentido de burlar o pensamento do aluno, convencendo-o de que este suposto mal é na verdade um bem - que ele, ignorante, ainda não pode ver - mas vai ver um dia. Nessa hora, costuma aparecer o "mercado de trabalho".

Para conceder ao aluno liberdade de pensar e agir, dentro da imposição da educação universal pelo Estado, impõe-se o pensar estratégias, o colecionar instrumentos e meios para tal fim, no limitado espaço escolar da sala de aula. Para nós, aparece aí a resistência do material real às nossas intenções ideais. Como superá-la? A pesquisa, a leitura, o intercâmbio e a produção teórico-pedagógica vão ajudar muito, mas não bastam, porque se põem num nível muito geral e universal. É preciso conhecer a realidade singular e suas particularidades; eu acredito que o registro dos problemas e obstáculos cotidianos permite tomar consciência deles: a sua escrita no momento em que ocorrem e a sua leitura posterior, já num momento de reflexão, contribuem sobremaneira à unidade prático-teórica. Este ponto é mais simples de resolver; o primeiro é mais difícil, porque professor não tem tempo de ler e efetivamente não lê sobre o que faz e o que é. Este é o pior dos nós, porque é feio. Quando ocorrem as escritas e as leituras, também não se encontra espaço para troca de experiências: não há tempo ou condições subjetivo-objetivas. Permanecendo isolado, nada se altera. Trata-se de outro nó, menos ruim, mas igualmente apertado.

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