18.11.09

Erros de alunos e professores

Sempre li, ri, gostei de ler aqueles emeiols enviados por professores com neologismos esdrúxulos ou loucuras de alunos em provas, mas ultimamente tenho acabado sempre com um gosto amargo na ponta do riso. Afinal, quando é que vão mandar coisa inteligente? Ou os alunos são todos estúpidos?

A verdade é que aluno, de um modo geral, é muito maltratado. Hoje, enquanto aplicava prova do Saresp, circulava entre as carteiras, vendo se eles preenchiam direito os quadradinhos etc., e fiscais do Estado passeavam pelo corredor, também vigilantes. E fique quieto; e não vire pro lado; e não converse; e obedeça. Por um momento, tive uma vertigem e em lugar de alunos vi prisioneiros. A escola comete maldades muito piores que as da polícia. Se a polícia faz de vivos mortos, a escola cria mortos-vivos.

Um belo dia, aparece em minha escola um concurso de redação, promovida por aparelhos burocráticos superiores, com a seguinte proposta. "Redija um texto, cujo tema seja: ‘Água: a vida do planeta’." E duas pessoas do sétimo ano – num ano ótimo, que trouxe até aulas aos sábados como brinde – pareciam estar num péssimo dia. Uma delas escreveu:

Gastar água é bom!

Agua, agua, àgua, porque tudo é sempre sobre
àgua?? Todo mundo já entendeu que a àgua está
acabando. Quer saber a real do que eu acho,
dane-se que a água está acabando, a hora
que acabar acabou e pronto. Eu não vou ser
a otária de ficar correndo no banho e lavando
louça com a torneira fexada, lava o meu carro
com balde. Se ninguém faiz isso porque eu tenho
que fazer, porque eu vou economizar se outros
gastam por mim. Quer saber, vou gastar também.

Vou tomar meu banho bem demorado, vou
deixar a torneira pingar, meu já era a água já
foi gasta não tem como recuperar agora. Com
tanta gente que não ta nem ai porque eu
estaria?

A àgua foi feita pra gastar, se não fosse,
não teria nem sentido ter àgua potavel no
mundo.

Essa é a minha opinião.


Quase dei um zero pra menina. Mas antes achei que seria bom saber quanto gastamos realmente com água, ver os números. Pra esfregar na cara dela, que fez um texto que mais parece um absurdo. E que, como muitas coisas que parecem, na verdade não é. Resultado da pesquisinha: indústria e agricultura gastam mais que as pessoas. Lógico, tinham que gastar mesmo. A questão é outra. É que nós, pessoas comuns, que gastamos menos, temos menos força e meios, nós é que estamos preocupados com o futuro, com o planeta e com a humanidade; eles, que gastam mais, que podem mais, só se preocupam com uma coisa: lucro. Tá, e daí?

Daí que, com relação ao problema da água, podemos até criticar os hábitos do povo; mas a crítica, se quiser ser justa, deve também se estender à economia, e com força proporcional à irresponsabilidade daqueles que a sustentam. E, se quisermos ser exatos, até a propaganda do governo federal, que vê nos biocombustíveis a salvação do mundo. Uma piada.

Vejamos por quê.





A tabela veio daqui.

Em suma, em termos mundiais, a agricultura gasta 69% da água. Indústria gira em torno de 23%. Os gastos domésticos, algo entre 8 e 10%. Os dados são da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, que tem como lema “Por um mundo livre de fome”).

Um belo lema, um belo trabalho da FAO. Mas a FAO tem problemas e os números também. Qual o problema da primeira? Muita ingenuidade e nenhuma coragem. Fazem este belo trabalho de pesquisa e depois dizem: “Bom, gente, agora vamos fazer uma greve de fome, pra sensibilizar o mundo”. Se as autoridades fossem sensíveis às greves de fome e se greve de fome resolvesse alguma coisa, a transposição do rio São Francisco já tinha sido cancelada. Também, que eu saiba, não vi nenhum presidente da GM em falência fazer em maio passado greve de fome pro Obama salvá-la com 20 bilhões, criados da noite pro dia. Qual o problema dos números?

É que por mais preocupante que seja a situação do abastecimento de água no planeta, não se atenta para o óbvio. Quem está acabando com água não são as pessoas; são as corporações; é principalmente o agronegócio. Aí é que entra a covardia deles; deviam dizer alto e claro o nome do mal: “sistema econômico”. E pra quê a agricultura precisa de tanta água? Pra matar a fome da humanidade? Claro que não. É a mesma ONU quem nos diz que neste mundo, produtor de mais alimentos do que consome, um bilhão de pessoas passa fome. E com a atual crise econômica, entre 55 e 90 milhões de pessoas, segundo o Banco Mundial e o FMI (órgãos filantrópicos preocupadíssimos), estão a caminho do grupinho.

Conclusão: o agronegócio, além de não matar a fome, vai ajudar na sede.

Uma página da Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal, um país cuja agricultura consome 87% da água, confirma que o agronegócio só faz aumentar a fome no mundo. Porque o milho, a cana de açúcar, a soja e outros vegetais deixaram de ser alimentos e viraram álcool; viraram biocombustíveis. E como é mais lucrativo fazer milho virar etanol, que virar pamonha, mais empresários deixaram de produzir alimentos, houve o encarecimento de vários produtos, resultando numa crise alimentar que, entre 2007 e 2008, fez 100 milhões de pessoas passarem da pobreza pra miséria. O mesmo texto chega a dizer algo que quase soa absurdo: em grande medida, o petróleo é melhor que qualquer combustível que tenha “bio” na frente.


Peraí, vamos pensar bem: há projeções que indicam que, com a expansão dos agrocombustíveis, o consumo mundial de água pela agricultura chegará em 2025 a 90%. Muito bom. E tudo isso para atender às necessidades de apenas 12% da humanidade, o pessoal que tem carro flex. Muito bom. Enquanto isso, calcula-se que os agrocombustíveis causaram um impacto de 75% na crise alimentar de 2007-08. Excelente. Que fazer?

Trocar de novo o álcool pela gasolina não resolve nada a longo prazo. O que resolveria seria investir em transporte coletivo. Ah, mas isso já põe em xeque a nossa sagrada economia que, apesar de entrar em crise de 10 em 10 anos, é a única que gera “lucros”, protege a propriedade privada e a FAO não critica. E todos os jornais, tevês, rádios e Sabesp resolvem continuar a culpar a população pelo tempo que ficam no chuveiro. Vamos ver até quando isso vai. Desde fins da Idade Média o lucro vem movendo a humanidade, a tal velocidade que esgotou os recursos naturais que podia e que não podia. Eu não sei quanto a vocês, mas pra mim está cada vez mais emocionante acompanhar até onde vai a aventura histórica dessa gente que comanda a humanidade (outro dia, um amigo me censurou por ainda usar o termo “burguesia”, que, segundo seus cálculos, não existe mais). Enfim, eu é que não estou no comando.

E quando a gente volta à pergunta da aluna: “Com tanta gente que não ta nem ai porque eu estaria?”, a gente percebe que ela tem mais razão do que pensa ter. Dentro deste “tanta gente” cabe muita gente mesmo, e graúda. Gente que não pensa em outra coisa senão em si.

No Brasil, 60% da água vai para a agricultura, 15% para a indústria e o restante distribui-se entre comércio e residências. E a menina acabou ganhando nota dois. Era o máximo.

5 comments:

Thiago said...

mas só dois? conheço gente que escreve, que faz curso superior em letras, e que nunca chegaria a alcançar tamanha carga emotiva ("dane-se que a água está acabando").

esse início, aliás, se a aluna fosse melhor encorajada, poderia se tornar uma certeira bica no cu do leitor, à la henry miller.

e pouco importa o conteúdo, se o texto privilegia a explosão, não são dados e o bom senso o que o texto criado privilegia, é a explosão, e a explosão não tem nada a ver com bom senso. trechinho de "o pesa-nervos", de artaud:

"Aqueles para quem certas palavras têm sentido, e certas maneiras de ser, aqueles que
mantêm tão bem os modes afetados, aqueles para quem os sentimentos têm classes e que
discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações, aqueles que crêem
ainda em "termos", aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época, aqueles
cujas mulheres falam tão bem e também e que falam das correntes da época, aqueles que
crêem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam
nomes, que fazem bradar as páginas dos livros— são os piores porcos."

Thiago said...

mas os dados me deixaram chocados, nunca o meu pensamento tinha estado a par de tal fato, gosto quando você diz: "Eu não sei quanto a vocês, mas pra mim está cada vez mais emocionante acompanhar até onde vai a aventura histórica dessa gente que comanda a humanidade" - minha perspectiva é a mesma, estou à margem e olho.

CdoRock said...

Cuidado, Rok. O que ela demonstrou no texto foi preguiça, e negligência. Além de estupidez, egoísmo e cinismo. "Ninguém faz nada, então eu não fazer" não é uma justificativa, muito menos sinal de inteligência ou razão política. Na medida do possível, as indústrias são cobradas pelo prejuízo ambiental, taí as várias aleardações da ONU pra provar. O problema é o custo, o problema é o lucro. Já ouviu falar que papel reciclado é caro? Pois é. Mas milhões de pessoas em suas residências podem contribuir, dar o exemplo, basta elas quererem ser alguém, e não ninguém – que é o que elas são, enquanto se mantêm de braço cruzado à espera que o outro descruze primeiro. As pessoas são muito nojentas e mal educadas. Jogam lixo na rua, papel, lata de cerveja, todo tipo de coisa, provocam enchentes. Fazem da mangueira ligada uma vassoura, ligam a torneira no máximo e a deixam lá, enquanto mijam, se barbeam, escovam os dentes. Elas são muito, muito mal educadas. São escrotas. E esperar pelo próximo é desculpa pra justificar sua prórpria escrotice.

Thiago said...

"E a menina acabou ganhando nota dois. Era o máximo."

Confundi tudo, pensei que dois era o máximo que você podia dar, entre zero e dez, e não que a nota máxima a ser ganhada era exatamente um dois.

Retiro, para você, tudo o que disse.

betanavarro said...

Bravo!!! Não pela postura da aluna, mas pelo esclarecedor texto do professor.
Simplesmente magnífico!