10.9.10

Sobre a arrogância - II


Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim
 Saramago, Ensaio sobre a lucidez.


E fui andando, dizendo a mim mesmo que precisava de trabalho, dinheiro etc.

Mas ia indo contrafeito. Eles não podiam fazer isso comigo: não deviam fazer isso com ninguém! E o nosso tempo livre, quem se arroga o direito de manobrá-lo como bem entende? E eu tenho compromissos... tenho aulas à noite. Está certo que hoje não haveria nada, ia ficar em casa lendo Flaubert. Mas... e se eu morrer semana que vem e nunca mais puder ler Flaubert? Flaubert era mais importante que qualquer outra coisa – e roubaram-me descaradamente. Olhei o relógio e notei um atraso de 30 minutos. Maldição! Odeio atrasos. Culpei-me por não sair mais cedo de casa. Pensei que, se pontual, àquela hora já estaria com políticos gordos e risonhos, sentados à mesa, num ambiente abafado, cadeiras encostando na gente, pessoas apertadas, mal-estar, discursos os mais cretinos e sorrisos os mais falsos, completa separação entre realidade e pensamento, atenção forçada, bocejos e whisky quente... Devia ir em frente, mas virei à esquerda; dei uma, duas voltas no quarteirão. Não podia ir.

Não ia. Já estava a uns quatro quarteirões, mas... ora, amanhã entraria na sala da chefe e diria com todas as letras por que não fui! Escute aqui, dona Fulana, achei autoritária a natureza do convite, que não oferecia a opção não, perniciosa a seleção de destinatários, que eram somente os com cargo de confiança, para não falar da perversidade do uso do pessoal público para fins partidários, prejudicial à liberdade política do indivíduo e nociva à sociedade em geral. Provavelmente, achar-me-iam um ingrato, que assim paga os favores passados, sujeitinho, só olha para o próprio umbigo, você viu?, fica de olho nele... Paciência. Estava resolvido. Entrei num franz café e passei o resto da noite lendo Madame Bovary. E fui dormir inteiro, reconciliado comigo e com a physis.

No dia seguinte, fechei o semblante e passei o dia armado, deliciosamente em guerra, esperando a primeira pergunta a respeito. Passou o dia e chegou a noite nova, e iniciou-se outro dia, e findou uma semana. É já sexta-feira. E ninguém pergunta nada.

1 comment:

Thiago said...

aí vai meu herói...