Temos sido treinados, educados e acostumados a não enxergar três coisas: a unidade, o movimento e a consciência.
Em vez disso, pensamos que existe apenas diversidade, inércia e pensamento.
Em primeiro lugar, graças a Darwin, hoje podemos afirmar que o ser humano não é tão especial quanto se pensava; é tão animal quanto qualquer outro. A noção de unidade, enquanto a humanidade evoluía, foi sendo lentamente apagada à medida que foi se desenvolvendo a organização do trabalho, a vida social e o pensamento. Este desenvolvimento seguiu numerosas direções. Tanto o pensamento, quanto a sociedade, quanto o trabalho se ramificaram em uma gama assombrosa de variedades, fragmentando-se absurdamente o modo como o homem refletia o mundo em suas estruturas cerebrais, a maneira como as sociedades se organizavam e as formas desiguais e complementares que o trabalho assumia. Quanto mais transformava a natureza pelo trabalho, mais o homem assenhorou-se dela; quanto mais diferenças entre uma e outra cultura, mais um grupo humano estranhou-se a outro; quanto mais diferenças de pensamento entre as pessoas, mais separou-se o indivíduo de seu semelhante. Mas, ao mostrar o longo movimento evolutivo da vida, o naturalista contribuiu para reanimar a ideia de unidade, perdida ainda nos primórdios das sociedades. E reestabeleceu um pedaço da verdade: a única coisa que existe é a unidade. Porém, toda unidade é feita de diversidade, daí que venha a falsa impressão de que todas as coisas do mundo diferem entre si, quando na verdade são uma só e mesma coisa. É natural que não se perceba esta unidade. Ela é uma unidade grande demais. Unidades menores são facilmente percebidas. Por exemplo, ninguém discute que o corpo humano seja uma unidade; porém, esta unidade é formada de uma pequena quantidade de células verdadeiramente humanas, as eucariontes (10 trilhões), em comparação com a imensa e esmagadora maioria de células procariontes, que formam os micro-organismos (90 trilhões). Estes pequenos seres vivos vivem em simbiose com o grande ser humano. Em suma, um ser humano é formado quase que totalmente por outros seres, não humanos, mas nem por isso deixamos de reconhecer a unidade de um ser humano, apesar da diversidade que o compõe. Este foi um passo; há outro a ser dado, de igual tamanho e importância.
Para que pudesse o homem imaginar – ou abstrair – que estava separado da natureza, ele apoiou-se em outra falsa concepção: o imobilismo. Evidentemente, por tudo quanto já se descobriu no campo da física, os mesmos átomos que formam coisas mortas – como a terra, a água, o ar, este teclado ou este monitor – formam também a estrutura corporal de qualquer ser vivo, bactéria, planta, animal ou homem. Mesmo com todo o conhecimento produzido nos últimos séculos, só se poderá observar, porém, esta unidade entre seres vivos e seres mortos, se se considerar o intercâmbio complementar que se dá entre ambos. Mas a unidade entre vivos e mortos só aparece com a cinematografia do tempo; não com a fotografia do espaço. É o tempo que vai mostrar a morte; e, com ela, as substâncias que compõem uma célula animal desmembrarem-se em pedaços menores de matéria morta (proteínas, enzimas, aminoácidos, carbono, hidrogênio etc.), originando um caos de partículas, que poderão outra vez se reordenar no cosmos de outras células, de um animal, de um vegetal, de uma bactéria, do que seja. Ao observar-se o movimento, observa-se a unidade. Quem primeiro viu isso costumamos dizer que foi Heráclito – ao perceber o traço unificador de tudo: a mudança –, mas outras culturas forjaram máximas semelhantes; também o budismo afirma que tudo muda, exceto a própria mudança. Não vejo agora como estender isso à sociedade e aos indivíduos, mas deve haver um jeito simples.
Em terceiro lugar, o pensamento; o significado desta palavra é maroto. Ele parece excluir o sentimento, a dor ou a vontade. E, na verdade, separa mesmo. Quando imaginamos que o cérebro faz apenas pensar, esquecemos que ele também recebe sensações provenientes dos cinco sentidos, processando mais outras coisas inexplicáveis relacionadas à área afetiva. Ora, talvez nossa maior dificuldade em perceber a unidade formada pelo eu e tudo o que me cerca é que sempre usamos a ciência. E a ciência não poderá nunca percebê-la. Porque a ciência é só pensamento. Também precisamos da arte para sentir o mundo; porque a arte é mais completa que a ciência: conjuga razão e emoção. Não somos só pensamento. Somos pensamento e sensação. Daí que o pensamento é fraco para perceber a unidade. Somente a consciência é que permite vivenciá-la. A consciência, tal como a arte, não prescinde de razão; utiliza-a. Mas, diferentemente da razão, que dispensa os sentimentos, a consciência é a soma de tudo o que um ser humano pode ser: razão, emoção, sensibilidade, afetividade, compaixão. Algum acionista cuja corporação causa danos ao meio ambiente ou a pessoas no leste asiático pode saber o que faz; mas não tem consciência. E a arte a que ele foi acostumado a fruir com certeza não é arte, porque não deve lhe mostrar a unidade básica de tudo, a cadeia de causa e consequência que ele movimenta, o próprio movimento econômico de que faz parte.
Então, se a única coisa que permance é a mudança, e isso é mesmo verdade, é também verdadeiro dizer que a única coisa que existe é a unidade. Porque, se mudança é movimento (e só isto permanece, nada mais), devemos lembrar também que "movimento" é uma abstração; ou seja, essa coisa que permanece é uma separação de alguma outra coisa, que não permanece, mas é coisa que existe. O movimento não existe por si só; o movimento é sempre movimento de alguma coisa. E essa coisa que se movimenta é uma unidade multiversa que pode ser chamada de natureza, de universo, de physis, do que for. É uma unidade em movimento, que, em determinado momento, afastou de si uma pequeníssima parte, dotada de certas faculdades, e assim a natureza pôde, enfim, observar-se a si própria; está claro que a physis não quis se dividir em duas partes, uma que vê e uma que é vista. Porque esta parte física, que pensa e vê, tão logo nasce, e enxerga a physis de que faz parte, tão logo morre, e volta a ser physis. Perde o pensamento e a visão; mas, também, o pensamento e a visão, parece, mais confundem do que mostram o que somos. Há talvez menos vantagem em ser homem que em ser physis. Que não vê, nem pensa; simplesmente é.
1 comment:
Acho que o que eu mais queria era apenas ser. Pensar cansa muito. Sentir é bem melhor, bicho.
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