11.6.10

Memórias do cárcere

Eu nunca li Michel Foucault, mas é como se o lesse todos os dias. O Estado é um poder tão abrangente, que desconfio teremos uma grande surpresa quando um dia tivermos a completa compreensão do que somos. Porque, uma vez conhecida a parcela de nós cuja construção é obra do Estado, e desconsiderada esta parte constitutiva da nossa essência, receio que, neste resto de ser, sobrará, como aquilo que naturalmente somos, muito pouco.

Diz Graciliano Ramos que, logo ao ser preso, em 1936, foi mais ou menos bem tratado pelos militares que o encarceravam na primeira prisão, em Recife. Mas, ao chegar à cela, o capitão solicitara, mais ou menos cortesmente, que prometesse não tentar comunicação com o preso vizinho, sem explicar por que. Várias semanas depois, e já sabendo que ia ser transferido para o sul, Graciliano recebe uma bolinha de papel com uma mensagem atirada pelas grades pelo vizinho, e entra na dúvida sobre responder ou não responder.

[...] aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. – "Está ali um sujeito com quem o senhor não se pode entender." – "Perfeitamente." Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior? [RJ: Record, 1996, p. 118]


É irônico que professores costumem queixar-se de que os alunos não prestam atenção. Ora, a maior coisa que a escola ensina, com efeito, e nisso todos saem escolados, é ouvir frases sem dar atenção a elas. Porque, das muitas frases que circulam cotidianamente – e que todos nós ouvimos, em tvs, revistas, jornais, outdoors, regras, leis etc. –, se lhes déssemos a devida atenção, concluiríamos não devemos ouvir nem metade. Porque desnecessárias, ilógicas ou inúteis – adjetivos também aplicáveis a mais da metade do currículo escolar. A questão é que, pensando bem, a fertilidade em horrores não é exclusividade da cadeia. É maior. Está em outro nível, do qual a cadeia faz parte: o Estado. As escolas, um braço do mesmo monstro, armam cotidianamente, proibindo recados e papéis entre carteiras, ciladas semelhantes. Sempre com o mesmo objetivo: criar covardes. Em maior ou menor grau, todos nós que passamos um dia pela escola temos propensão à covardia.

O pior de tudo é que não posso me orgulhar de ter percebido isso. Vejo claramente, neste momento vital, a mesma possibilidade de comunicação, de solidariedade, de transgressão... e hesito. Que falta para fazer o que quero? Uma inércia maior que mim me amarra ao que sou e ao que faço. Ando num deserto de pronomes oblíquos sem nenhuma gota de eu. E sigo, ouvindo frases a que não dou atenção, calando a voz interior que me tortura, sendo uma vez mais o mesmo. E sinto que não estou só. Bom? Não, mas deveria ser, porque não fui educado para me sentir bem sozinho: fui produzido em série. Feliz?

1 comment:

Leco Vilela said...

Uhm jeito bem robótico... meio Fordista!... gostei de pensar nisso!