27.12.11

Por que Portugal deu errado?

Nos séculos XIV e XV houve uma crise monetária mundial. Valendo-se da sua marinha e da aliança com a Inglaterra, Portugal partiu em busca de ouro, especiarias e escravos, compensando a sua escassez de dinheiro e gente.

Nesse processo fortaleceu-se uma nobreza que se tornou parasitária. A burguesia mercantil – composta majoritariamente por judeus – foi expulsa ou enfraquecida e não se realizou a passagem ao capitalismo, que fortaleceria a economia interna da nação. Esse sistema não criou raízes estruturais para sustentar a economia em crescimento. Ao se revelar a pequenez de Portugal ante o gigantismo da empresa, sua expansão passou a ser mero inchaço. E se esboroou sem aproveitar – ou sem ter feito sequer – a acumulação de capitais necessária ao desenvolvimento do capitalismo. O descobrimento do Brasil foi o ponto ascendente desse processo. Depois começou o declínio do comércio exterior português, que se tornará deficiente. E Portugal passará a viver da sua colônia, dividindo-a e finalmente perdendo-a para a Inglaterra.

(...)
Portanto, a descoberta do Brasil foi consequência da expansão marítima portuguesa, quando a Europa evoluía do feudalismo ao capitalismo e Portugal não conseguiu encontrar a passagem que estimularia o desenvolvimento do “seu” capitalismo. Por não encontrá-la, foi vítima do processo, transformando-se em um anacronismo que a exploração colonialista não pôde superar – antes complicou, como duzentos anos depois o marquês de Pombal viu com clareza.

CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil. Cap II, "A saga marítima". Cortez. No prelo.

24.12.11

Sobre a bomba do momento

Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador. Mas, nos anos 1990, o que hoje é estigma era então condição inexorável para ser aceito na modernidade. O discurso tucano, hoje omisso quanto ao passado, possuía a arrogância dos donos da verdade. Mas está tudo registrado.


RIBEIRO JR., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: geração editorial, 2011, p.36 (Col. história agora; vol. 5)

O grifo é meu. Embora as privatizações tenham varrido a América Latina, o Brasil entrou na modernidade - e entrou bem. Sem prejuízo das falcatruas e roubos ao patrimônio público - nas quais, conforme o livro, José Serra foi ilustre co-participante -, as privatizações escondem talvez alguma coisa positiva, no caso do Brasil, e extremamente negativa, no caso de Argentina e outros países. Que entraram mal nesse início de século.

12.12.11

Brincadeira de deus


















escavadeira bagger 288, da empresa Krupp AG (atual ThyssenKrupp)




(...) as terríveis massas de ferro que precisavam ser forjadas, soldadas, cortadas, furadas e moldadas exigiam, por sua vez, máquinas ciclópicas, cuja criação não era possível à construção manufatureira de máquinas.

A grande indústria teve, portanto, de apoderar-se de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas.

(...) veremos reaparecer o instrumento artesanal, mas em dimensão ciclópica. A parte operante da perfuratriz, por exemplo, é uma broca monstruosa, movida por uma máquina a vapor e sem a qual, por sua vez, não poderiam ser produzidos os cilindros das grandes máquinas a vapor e das prensas hidráulicas. O torno mecânico é o renascimento ciclópico do torno comum de pedal; a máquina de aplainar, um carpinteiro de ferro, que trabalha o ferro com as mesmas ferramentas com que o carpinteiro trabalha a madeira; a ferramenta que, nos estaleiros londrinos, corta as chapas é uma gigantesca navalha de barbear; a ferramenta da tesoura mecânica, que corta ferro como corta pano a tesoura do alfaiate, uma monstruosa tesoura; e o martelo a vapor opera com uma cabeça comum de martelo, mas de peso tal que nem mesmo Thor conseguiria brandi-lo.

(O capital, livro I, tomo II, Cap. XIII - "Maquinaria e grande indústria". Abril (Os economistas), pp.14-17)

6.12.11

...quem precisa de inimigos?

Não tenho nada contra meu mundo. Tenho até muitos amigos e, por ignorar deles qual seja o grande ou o melhor, corro o risco de não ter amigo algum. Contudo, minha companheira me acompanha e me ajuda, sobretudo quando desanimo e caio; sinto que somos grandes amigos. Mas isto se poderia dizer trata-se de amizade especial ou, até, vulgar, uma vez generalizado o casamento. Mas as pessoas me ajudam, às vezes retribuo um sorriso e, descartado o que há de ruim, mais as relações sociais etc. - toda vez que aprendo, ou amo, ou me embriago, sinto orgulho da espécie.

Com os avanços medicinais, incrementos de higiene, dietas de proteína, crescimento do mercado interno, lulismo e aumento na longevidade do brasileiro -, a única coisa que incomoda é ter tudo isso pra viver e todo esse trabalho em ficar vivo; e tão pouco tempo para desfrutar disso, deles, dela. Porque, ainda que eu trabalhe menos, e sempre mais, para escândalo de minhas colegas de trabalho - que temem ver-me reduzido à penúria -, não obrigo nem posso orientar meus amigos a semelhante resolução. Não me admira fracassar nesta empresa megalomaníaca.

O que me admira e constrange e deprime é sequer convencê-los de que não é saudável trabalhar em mais de um lugar, todos os dias, sacrificando em nome do transporte seu horário de almoço. Se é que é saudável falar quando se come, mesmo aí a reunião é prejudicada - e tanto pior pra mim, que, versado só em letras, tinha muito a dividir com um amigo matemático. Mas hoje ele não pode comer. É preciso correr. E se, no trânsito, outro vem e pára, e bebe comigo após tanto tempo, e me diz que devo desistir do homem, que o egoísmo é inato, que a natureza humana é imutável - eu não tenho nada a dizer. Seria inútil reviver a poesia de John Donne, já lembrada pelo Hemingway: no man is an island. Porque vamos mesmo sendo ilhas - no salgado oceano do trabalho, do consumo e da desilusão.

O que não me impede de gritar, emputecido e gasto, que se roubam meus amigos, sou duplamente agredido e náufrago; que a miséria deles é a minha miséria elevada à constelação das potências.

25.11.11

Sonho

E vago num mundo estranho,
De movimento e som, e cores novas e gosto alegre.
Mas estou triste:
alma sem corpo,
vontade nua,
jangada sem remo,
levado pelo rio caudaloso do medo, angústia, raiva e dor.
Às vezes paro e escuto arrepiado o trovoar da cachoeira,
aonde vou,
pequeno,
e só.

De repente, atravesso o espelho d'água da vida
e acordo em sobressalto:
ônibus e caminhões escoam da janela
- o contínuo curso do rio de aço.
E olho minhas mãos
- estranhas garras nuas -
que abro e fecho e giro e torço.
Meu Deus...
Para que servem?

4.8.11

Eu vou

Eu vou vestir a camisa dos pelados:
Sairei nu pelas ruas a afrontar velhinhas mulheres grávidas crianças e bebês de poucos dias
Desacatarei a ordem pública
Cuspirei nas leis vigentes
E desarmarei os preconceitos vulgares com jatos quentes da porra
do amor

E comerei a carne dos cadáveres cujas ideias me alimentam:
Destruirei monumentos, falsos templos, velhas máquinas
Ordens desordenadas da desordem da ordem
Comungarei deste cálice, deste pão
Até limpar os pés no manto sagrado que cobria meus olhos
Ou os queria em horizontes invisíveis

Um dia, eu vou fazer tudo que eu quiser.
Eu vou beber com demônios:
Cairão vertiginosos e inclementes temporais de suplícios agudos e cortantes de solidão desnecessária e vergonha diante do espelho blindado
Eu vou fazer o diabo.
Eu
vou fazer poesia.

25.5.11

Sobre causas e efeitos

Sobre a Marcha da Maconha, condenada pela Justiça e reprimida pela Polícia Militar, alguém tem de dizer em algum lugar que o problema é menos da polícia (ela não foi feita pra outra coisa, senão reprimir) que do Juiz que julgou o negócio ilegal. Nenhuma barbaridade cometida pela polícia deveria ser surpresa - ainda que façamos a denúncia.

Mas a decisão do juiz... O tal do desembargador Teodomiro Mendez (que ao que dizem já espancou reús, torturou, encostou cano de arma na cabeça de ladrões de galinha) escreveu: "o evento que se quer coibir não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha, presentes indícios de práticas delitivas no ato questionado, especialmente porque, por fim, favorecem a fomentação do tráfico ilícito de drogas."


Não há debate de ideias? Uso público coletivo de maconha? Fomentação do tráfico ilícito de drogas?

Dá pra acreditar nisso? Até um secundarista perceberia a falha de raciocínio. Toda manifestação coletiva traz em si um debate de ideias na base; e o próprio debate não acontece se não há manifestações coletivas - um é condição do outro. Ademais, ninguém precisa de publicidade e coletividade pra fumar maconha. E nem o tráfico precisa de fomento maior que o dinheiro. Pelo contrário, o tráfico deve é se incomodar com alguém falando em legalização: isto sim é que é uma ameaça ao lucro.

A primeira coisa a se fazer é julgar o juiz; depois chegamos a polícia. Se é que estamos interessados em combater causas, não efeitos.

28.3.11

Pós-modernidade

Um dia acaba cessando o encanto pelas cores do plástico, das luzes, da cidade à noite, da fumaça dos cigarros levada no ar, das conversas pelas ruas com goles de pinga - tudo passa a ser um tanto pequeno e monótono, em sua eterna reprodução do mesmo. É que a vida se amesquinha quando crescemos. Fugindo do trabalho, do consumo e das massas, sair com os amigos já não tem aquele sabor. Ouvir as pessoas já não é tão significativo. Também, a maior parte dos seres que atravessam o caminho, dia a dia, não é livre; está presa ao trabalho. Vendendo corpos por salário, aí estão em catracas de ônibus, caixas de supermercado, bombas de gasolina, apartamentos em faróis, sono de trens da manhã e calores de ônibus nas tardes; e ainda mais, dão agora humanamente a inteligência, a voz, a face.

E não tenho a menor vontade de lhes dirigir a palavra. Pode ser o efeito colateral de um outro processo, igualmente chato. Ao longo do dia é inevitável passar por lugares, máquinas, gente - que maquinalmente lhe dá bom dia, obrigado por ter vindo, agradecemos muito pela confiança, esperamos te ver de volta -, e todos sorriem-nos, com seus caninos demasiadamente brancos e metálicos. Porque até as máquinas tem dentes. Entre robôs-humanos e humanos-máquina, tem aparecido atrevidamente a pergunta e a raiva: Obrigado pelo quê? E como esperam me ver de volta? Nunca olharam para mim, quanto menos ver. E quanto mais falam, menos dizem coisas. E por que sorriem, meu deus!, não sabemos todos que nossos interesses comuns estão sempre amputados por este interesse particular que nos obriga a sorrir?

Não se pode impor limites à loucura - esta tremenda falta de bom-senso. Mas a distância que a linguagem tomou da realidade atingiu aqui um patamar incomum. Sócrates perdoaria aos sofistas o atrevimento destes homens que, pela primeira vez, descolaram o pensamento do mundo, fazendo a lógica funcionar apenas em conformidade a si mesma e apagando as verdadeiras conexões com o mundo. Porque, naquele tempo, o que ensinavam estes professores particulares, mestres pioneiros da retórica, era que se podia, muito bem, defender interesses privados encobrindo-os com o manto do interesse comum; daí até o questionamento de que uma verdade absoluta era inacessível, foi só um passo. Hoje, porém, foi-se muito além. Sequer sabe-se qual é o interesse comum, qual é o particular; e a verdade, palavra maldita, foi para sempre banida do vocabulário, do pensamento e da linguagem.

21.2.11

Contos velhos (parte II de II)

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Aula de voo



Um dia, um amigo deu a letra: “olha, a gente tem que voar – uma vez na vida, no sonho... Então, quando v. sonhar e perceber que é sonho, nem pensa: pula a janela”. E dá pra gente perceber que é sonho? Dá. Dá?! Dáááá, há sempre coisas bizarras nele, é só ficar ligado enquanto dorme. Firmeza. Aí ela se lembrou da irmã contando que uma vez, sonhando, foi à padaria, pediu qualquer coisa, e o padeiro, incontinênti, tirou os sapatos, as meias, e lhas entregou: ela as recebeu com toda a ternura de mãos plácidas, acomodou-as ao peito e saiu, feliz. Coisa de sonho. Então, a gente pode voar! Um dia, afinal, sonhou que estava num avião e lembrou de voar. Foi pular. Mas havia um homem na porta: “Rg, cpf, cnh, passaporte.” “Puxa, mas tudo isso?! Ah, pensei que era mais fácil voar...” E, frustrada, voltou pro assento. Uma noite, sonhou de novo. Estava no viaduto do Chá. E quando ia pular, veio um PM e “Cidadã, seu atestado de antecedentes criminais!” “Pôôôôôxa, mas por que vocês não pedem tudo na primeira vez?! Aaah!” E sempre pediam mais alguma coisa. E nunca voava. E sempre acordava puta. Ficou sôfrega. Sonhou com aviões, pontes, desfiladeiros, banguidjampins, corcovados, picos da neblina, prédios de cem andares, janelas, janelas, janelas... Certa vez, abriu um jornal. E viu partidos políticos, corrupção no judiciário, filosofia da desconstrução do sujeito, provas da existência divina, ciência da inconsciência, previsões de extinção da vida, nem pôde pensar tocou o telefone: era uma oportunidade única de emprego. Foi. E disseram que ela ia ganhar um salário absurdo, tantas horas semanais mais pausa pro café etc., a única coisa que viu foi a janela e enquanto ia foi detida pelo entrevistador, Ei trouxe os documentos?, Sim trouxe, agora ela tinha tudo, Rg?, Sim, Cpf?, Sim, Ctps? Sim, Antecendentes criminais?, Siiiim caralio!, não adiantava: ela tinha um brilho nos olhos, Ei, e as fotos?, Siiiim!, e mais não disse: entregou a papelada – yeah! agora eu vou, e pulou do décimo quinto andar é pulo sim e pulou feliz sim!: o vento em meus cabelos e sentiu cafunés por todo o corpo ah! nunca mais vou acordar achou o sonho lindo sim sim é lindo embora lhe parecesse muito rápido é mas eu não paro

7.2.11

Contos velhos (parte I de II)

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ZZZ...



Segunda-feira + despertador tocando: Ismael acordou dorminhoquíssimo, tronchinho, esbarrando nas coisas, lutando preguiçoso com vontade de dormir. Era um roubo! Era já segunda e num é que ela resolveu secundar inda de manhã: um trupicão na garrafa que ninguém nem num tinha visto na porta do quarto abriu a aporrinhação do dia que nascia. Resultado: dedão do pé direito esfolado. Paciência. Ia ter que trabalhar mesmo, isso era bobagice. E foi tomar café jurando nunca jamais misturar domingo e vinho, quê diz-que fica brigando com cerveja logo no pior lugar, que é a segunda. E o dia foi ficando bom.

Alhures, D. Helena, 73 anos, viúva, solicitava a primeira visita técnica para reparo em sua linha telefônica, que apresentava um estranho defeito. Era tocar o telefone e o cachorro latir.

Terça: o dia seguinte chegou soprando bafo gelado na janela d'Ismael: chuva fininha molhamolhando. Pôs o nariz fora da toca, farejou umidade, armou-se de coragem, e saiu pra lutar e vencer ou morrer. Foi indo, saltitando, fugindo da chuva, corre-que-corre pela rua, chapinhando sem-querer na ponta dos pés, sentindo frio, danado de esquecer sempre de comprar calçado impermeável ou bota-sete-légua, nem num terminou de pensamentear vem um carro passa n’água Ismael abraça, geladinha, que nem a cerveja do bar da Maria Júlia, lá na esquina.

Levou uma bronca-guaçu do chefe! Primeiro porque safadamente ontem, que era na segunda, Ismael todo displicente tinha ignorado a reclamação da D. Helena só porque ela era esdrúxula: “o meu cachorro late sempre quando toca o telefone”. Vai, Ismael viu, pegou, achou graça, riu, gozou bem e fez que num viu. E escreveu lá por cima burocraticamente-despachado: "Reclamação improcedente/esdrúxula". E segundo porque, agora hoje na terça, trabalhando molhado dia inteiro Ismael fez uma lamaceira no escritório que era um despotismo de sujeira, gente! além de transmitir gripe aos colegas. O dia foi sendo assim: diz-que às oito D. Helena, educadíssima, estudou em Coimbra, reclamava segunda vez, às nove Ismael começou ficando ruim, às onze já tinha enlameado os três banheiro acabando o papel, ao mei-dia principiava a limpar no braço o nariz tão mazelento, que às três hora metade do escritório da JR Paulista, que era a empresa de manutenção de linhas telefônicas, estava todo mundo espirrando. Resultado: o despacho do dia seguinte ficou todo atrapalhado, quê quem num era bobo faltou.

Quarta:

Quinta: eu nunca sube jamais quê que Ismael fez na quarta, sendo que nem de casa saiu; deve ter ficado assistindo desenho, que ele gostava muito.

Mas na quinta, que é hoje bem cedinho, D. Helena, esperando por uma hora a musiquinha pau do atendimento telefônico, depois de ter sido atrouxalhada três vezes, arriscou a quarta, espera-que-mais-espera acaba musiquinha começa outra, vai, atenderam, e ela foi filha-da-puteando cada um que falava com ela, atendentes monitores supervisores trapaceiros enroladores, todos esses mal-criados. E foi uma gostosura.

Também cedinho Ismael principiou a correr: dez segundo escovando dente, duas hora encochado em transporte coletivo, vinte minuto explicando da falta pro chefe, sete hora e dez minuto trabalhando que nem cavalo, trinta minuto no banheiro enrolando corretíssimo, uma hora enlatado num trem, duas hora na faculdade duas no bar (fazia Sistemas de informação = só bebendo), mais uma de tróilus, casa, banho, janta, cama e dormiu tão gostoso!

Sexta: de primeiro D. Helena demorava bem pra reclamar, mas ninguém resolvia o problema dela não, gente!, então hoje ela resolveu logo de manhãzinha dar nome à mãe de todo mundo, porque essa falta de num sei mais nem o quê já era uma paiaçada, e já era a quinta vez, e com a gerência da empresa sabendo (com isso num se brinca não!): Ismael pôs as barbas de molho. E mandou logo o melhor homem que tinha, o Seu Flávio, recomendando cuidado com cachorro e com a velha, que tava uma fera, e que resolvesse a coisa de vez, nem que tivesse de ficar lá todo o dia. Seu Flávio enrolou o dia inteiro tão honestamente, que à tarde Ismael ficou sarapantado de saber que na hora da campainha tocando a corrente elétrica do telefone de fraquinha sobe pra noventa volts, gente! Resultado: diz-que a fiação era mais velha que a dona, descascada, entrando fora de padrão pelo quintal da muié, passando embaixo da casinha do cãochorro, conduzia um choque brabo pra corrente do pescoço dele, tadinho! Pelejando, pensapensando, Seu Flávio resolveu tudo, o cãozinho ficou supersatisfeito, mas a dona continuava safada. Paciência.

Sábado: Ismael passou bebendo e fumando. De noite, subiu na laje, encostou na caixa-d’água, acendeu um, olhou pra estrela brilhando bonita, fumou, viu borboleta voando tão linda, ficou triste de esquecer às vezes da beleza pequena dessas coisinhas, e chorou, mas dormiu bem, porque foi bom.

Domingo: esse dia Ismael começou indo na missa: cantou, rezou, confessou, comungou; depois bebeu fumou cheirou, foi uma delícia. De noite pegou da namoradinha e foi passear: comeu jabá, viu cinemarks, disputou vaga nas filas de motéis. Brincaram muito por lá. Agorinha estavam se rindo um pro outro. Agora dormem.

Tem mais não.
 
 
 
...
Epigrama, n. 1 [Informativo discente de Letras do Cufsa], Santo André, 2006. (Revisto)

10.12.10

O mistério e a banalidade

A tecnologia aparece como um mistério e uma banalidade – diz Milton Santos no que foi seu último livro. Reflexo da decadência do homem pós-moderno, subordinado à dinâmica alienante do just in time, surge na era da informação uma contradição do conhecimento. À repugnância pela filosofia, especialmente a filosofia racionalista – aversão dominante nos meios acadêmicos e midiáticos com toda a sua cientificidade –, corresponde um certo tipo de irracionalismo, presente na vida do cidadão comum. Como pode algo ser, simultaneamente, misterioso e banal? Um mistério é o que fascina, e encanta, e seduz (no sentido próprio de conduzir para si), despertando o desejo de conhecer e decodificar e atribuir sentido. Mas não.

As maravilhas que a indústria dia a dia põe a caminho do mercado inundam a vida de jovens que pouco sabem da vida. De celulares a notebooks, de câmeras digitais a videogames via internet, um amontoado de chips e baterias é manipulado e descartado todos os dias, por um lado como a mais vulgar das operações vitais. Por outro lado, como funcionam essas coisas por dentro, de onde vêm, quem as produz, como se fabricam, qual seu significado, em que interferem noutros campos de saber, de quais esferas (inorgânica, biológica, social?) sofrem determinações – são segredos para os quais não há mais investigação. À razão que indaga sucede uma razão que manipula. Talvez por isso em muitas universidades o baricentro vital seja o diploma, não o saber.

Diversos autores têm destacado esta viragem qualitativa da espécie humana, do racionalismo para a razão manipulatória. O ápice do pensamento humano, cuja floração mais evidente é o iluminismo, que frutifica generosamente ainda pelo século XIX, tem hoje seus desdobramentos caracterizados (por livre-docentes escravos das ideologias) como seita anticientífica. E a razão ganha, nesta visão distorcida do mundo, ares de religiosidade. Ciência passa a ser apenas aquela metodologia que não dá respostas universais nem, principalmente, faz perguntas. O abandono da universalidade para a mesquinha visão particularista, bem ao gosto do liberalismo econômico, passa agora a ser a etapa superior da reflexão. Operam-se computadores todos os dias, a toda hora, em todo o mundo que abre e fecha seus windows para o globo, sem que se saiba minimamente o que é isto.

É que o mundo já não interessa. As pessoas são sempre iguais. Porque a vida, também, fez-se o mais banal dos mistérios - para o qual não há explicações, nem perguntas, nem paixões.

5.12.10

Todos se guiam por ideias feitas

Todos se guiam por ideias feitas, receitas de julgamentos, e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão”.

Viva Lima Barreto. Não sei bem por que, não vou muito com a cara do Daniel Piza - acho que veste bem demais a camisa do Estadão, ou sei lá. Também, quando critica Brizola parece vestir a da Globo também. De qualquer maneira, hoje fez uma boa ação. A frase é daquelas que a gente vive a querer expressar, sem saber como, com um medo danado de dizer besteira, parecer bobo, pedante. Mas é um traço de comportamento comum, muito comum. Felizmente, não é de todos, como exagera Barreto. Ou será que é?

Aí é onde mora o diabo, e a gente é sempre tentado a seguir estas receitas prontas, mormente se emanam de autoridade literária mais ou menos consagrada, reproduzida por autoridade jornalística competente. Lima Barreto, cá pra nós, não teve este triste fim todo que Piza desenha, muito exageradamente também. Afinal, há pelo menos uma meia dúzia de escritores brasileiros bons, do século XX, que sucumbem no limbo. Sem contar o quanto de escritor bom que existe por aí, agorinha, ou que pelo menos escreveu nos últimos 30 anos e ninguém ouve falar. Quanto tempo demoraremos para conhecer os grandes escritores do nosso tempo? Não me venham com Chico Buarque para cá. Ele já é bem conhecido, e particularmente: não li nem gostei.

Mesmo entre os já falecidos, quem fala de um José J. Veiga? A hora dos ruminantes é obra amplamente desconhecida. Fernando Sabino cometeu a descortesia de falecer no mesmo dia que Christopher Reeve, e pagou caro, tendo sido esquecido pelo noticiário - e faz tempo não vejo falarem em O grande mentecapto. Lima Barreto, apesar de toda a disputa étnica que os movimentos negros animam, não foi maior que Machado de Assis, nem nunca será, se o critério de valor for apenas o literário. Se levarmos em conta posicionamento político, visão de mundo, etc. etc., aí a coisa pode até mudar. Mas, neste caso, não falamos mais (só) de literatura.

De pé

Levanto os sonolentos olhos
E ando.
O vento da vida levanta a poeira da rua.

Anda o sol do dia que não vejo.
Afinal, é sempre tarde.
Anoitece
Como pó caído aos pés.
De olhos abertos na noite, volto pela mesma rua de cabelos quietos de pó,
Arrastando pés cansados de caminhos.

Ah.
Quando fecharei estes meus olhos.

20.11.10

Robert Michels

A leitura de Robert Michels foi sem dúvida uma das coisas mais importantes deste ano que se acaba. Curiosa a atualidade de sua obra. A Sociologia dos partidos políticos, de 1911, parece contar, em grande medida, a história do PT, do ABC e dos últimos 30 anos de Brasil

MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos: ensaio sobre as tendências oligárquicas na democracia. Trad. Arthur Chandon. Brasília: Ed. UnB, 1982, 4ª parte. [1911]

 Na 2ª  parte ficou dito que: os chefes são estáveis; são remunerados; tem voz (imprensa/parlamento); não caem facilmente; se caem, novos chefes é que o derrubam; tendem a burocracia, a oligopólios. 

4ª parte
Cap. I – Luta de classes desagrega=> burguesia => gera filhos socialistas, que se voltam contra ela.
Cap. II – Os chefes socialistas de origem burguesa são solitários (entre o ódio da classe de origem e desconfiança da classe operária) 

Cap. III – As transformações sociais produzidas pela organização

O aburguesamento dos partidos operários (inclui também sindicatos) – quando novas camadas sociais entram na órbita do Partido – modifica o movimento político. Isto por três razões: 

1 – Pequenos burgueses (por razões eleitorais) são atraídos para o Partido. O Partido precisa, para chegar ao Parlamento, falar para o povo, não só para uma classe. Daí atrai indivíduos de vária origem.

Mas, observando os partidos socialistas, tanto o italiano quanto o alemão ou o francês, vê-se que a proporção de burgueses e pequeno-burgueses é pequena. Na realidade, o aburguesamento deve-se muito mais aos chefes socialistas de origem operária. Estes é que se transformam mais; passam por verdadeira metamorfose. 

2 – A organização cria novos pequeno-burgueses (uma aristocracia operária). Um partido, como o alemão, necessita, porque imenso, de muitos funcionários. Forma-se assim um grande grupo, que passou da experiência de produzir sua vida fazendo trabalho material para a produção de trabalho intelectual.

A elite operária terá vida dura, mas algumas vantagens: conforto, liberdade, dignidade – É preso? O partido ajuda. É perseguido? Mais ascende no partido. Por mais que deva trabalhar muito no Partido, não é mais o empregado subordinado a capatazes no interior de fábricas. 

Uma analogia Partido-Igreja-Exército: este papel do Partido – ser um trampolim social – é semelhante ao papel que já exerceram (e ainda exercem, em dada medida) a Igreja e o Exército. A partir da Contra-Reforma, filhos de camponeses podem se tornar parte do clero – o que antes não acontecia –, garantindo assim outros horizontes de vida. Os filhos da burguesia ascendente prussiana frequentemente entravam para o Exército, para, assim, na qualidade de oficiais, ganhar do imperador títulos de nobreza, posição, respeito – que no XIX só os fidalgos tinham.

No caso do Partido, é difícil que operários que passam por esta transformação social, com grandes implicações no modo como faz sua vida material, é difícil que resistam a mudar suas ideias. Os chefes socialistas de origem burguesa são mais confiáveis neste sentido, e se alteram menos ao entrar no Partido, pois não se deixarão seduzir fáceis por adulações, brindes, armadilhas políticas. Os chefes de origem proletária, porém, mudam. Somente operários “ideólogos” resistem à contaminação do meio. Mas... e a segunda geração: como se comportará?

Ao olhar estas questões parece que são mudanças superficiais (afinal, mesmo um partido grande, atinge uma parcela pequena da população, a seu serviço). De fato, são mudanças superficiais. Mas a superfície aqui tem mais importância que o costume. Estamos falando de self-made leaders. Homens que ocupam posições-chave e aí chegaram após duras lutas. O peso do que são têm reflexos mais profundos. 

3 – A defesa patronal cria pequeno-burgueses.
Para se defender, os operários fazem greves, enfrentam os capitalistas. Os capitalistas, para se defender, demitem empregados-chave. Vai-se formando assim um vasto contingente de proletários mutilados pela luta. Estes, por isso mesmo, logo viram pequeno-burgueses.

Tornam-se comerciantes, camelôs, micro-empresários. E, seus antigos camaradas de trabalho, por um dever de solidariedade, acabam comprando seus produtos. E assim os sustentam. Estes comerciantes vão ocupar um papel chave para o partido: é nestes porões insalubres de seus bares, que as direções locais se reúne, lêem jornais, discutem o movimento.

Na Alemanha, formaram-se associações de taberneiros socialistas (um partido dentro do Partido), que se tornou influente em várias questões. A Liga Berlinense dos Hospedeiros e Hoteleiros Socialistas lutou contra as “casas do povo”, projeto de bares populares, mais salubres, para a classe trabalhadora; foi contra a campanha anti-alcoólica que o Partido queria empreender em 1907, tentando educar seus membros.

Cap. IV – A necessidade de diferenciação na classe operária

Todo operário quer uma existência melhor. Isto causa: 

-Fracionamento da classe trabalhadora em categorias (funcionários de arsenais lutam por uma coisa, os da indústria têxtil por outra, etc.) e entre países (muitas vezes, um operário em um país central vive tão bem quanto um industrial de um país periférico – e, enquanto a Inglaterra avança seu domínio imperial pelo mundo, causando em dadas partes do globo superexploração da classe trabalhadora, os trabalhadores ingleses melhoravam sua condição muito acima da realidade do restante mundo proletário). Certos setores operários ganham mais poder que outros, como por exemplo, os tipógrafos na Alemanha, os lapidadores de diamante na Bélgica, os operários de arsenais militares na Inglaterra ou Itália. 

-Oposição entre categorias da classe trabalhadora: os organizados em Partido (e mais instruídos) exigem dos não-organizados (subempregados, informais etc.) solidadariedade nas greves, nas campanhas por aumento de salário. Mas muitas vezes os não-organizados já estão satisfeitos com as condições, dado terem uma história de sobrevivência em condições sempre piores. Esta solidariedade, exigida pelos organizados, não é, na contrapartida, devolvida aos não-organizados. Assim, os organizados na Alemanha lutam por bolsas de trabalho, seguro-desemprego etc. que beneficiam somente os membros do Partido; na Inglaterra, bloqueiam o ingresso de novos membros com a invenção de pesadas taxas e exigência de certificados de formação profissional; na Itália, formam panelinhas corporativas, como os operários do arsenal de Florença, que passam exigir que somente seus filhos e descendentes possam entrar no ramo.

10.11.10

Dúvida

Parece que só muito recentemente, coisa de duas décadas pra cá, é que veio se solidificando a ideia de que se deve (re)ler Marx. Na verdade, é mais ler que reler, afinal há, por incrível que pareça, textos ainda inéditos. Qualquer leitura sempre vale. Não só para alimentar "ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal", como ontologicamente define José. Mas também para compreender o que somos, e por que até aqui os homens não puderam ir ainda para além do espaço histórico que se convencionou chamar capitalismo. Só responder à primeira pergunta já bastaria para uma existência. Mas, se nem os seres humanos nem as perguntas vivem isolados, as respostas que perseguimos também se conversam.

Pode ser  revelador para nós – agora distantes de tudo – considerar o valor e o peso de uma circunstância especialíssima em torno de um téorico da altura de Lênin, líder da maior das revoluções do séc. XX. Ora, ele não pôde ler as obras da juventude de Marx, só publicadas após 1930. A ideologia alemã, os Manuscritos econômico-filosóficos, talvez nem mesmo os Grundrisse, e com certeza também não os artigos da Nova gazeta renana. É nessa fase inicial de Marx, esquecida pelos seus continuadores, que se avista uma ontologia do ser social; e é nisso que aposta Georg Lukács (1885-1971). Seu recém-lançado no Brasil Prolegômenos... vem reparar um eixo fundamental do pensamento socialista: como se pode querer fazer outra sociedade, outros homens, sem conhecer o que eles efetivamente são? E outras anomalias intelectuais, como achar que a vida resume-se a política econômica, burguesia, proletariado e o reino do capital.

Se foi miserável a realização e a utopia de uma humanidade nova no Leste Europeu, não há dúvida da estreiteza raquítica da humanidade globalizada pelo capital, fixada na ideia de homo sapiens sapiens que hoje se defende e se ensina: irracionalista, nega aquilo que lhe faz singular na natureza; individualista, imagina-se produto e fábrica só de si, em si e para si; divina mercadoria que circula – compra, aluga, aliena sua vida e, sem perceber, vai vendendo suas horas sem vivê-las; cidadão do mundo sem aldeia, pós-moderno sem passado nem futuro, consumidor do presente – realiza-se no mercado digital e mede-se a dinheiro. Nem nas atuais democracias liberais, e nem mesmo em nenhum país comunista do século XX, se fugiu a esta moldura histórica de existência, pensamento e ação. Deveria outra vez intitular-se Homo faber.

Rosa Luxemburgo bem que tentou avisar dos erros que cometia a Rússia bolchevique, restringindo liberdades, amputando sovietes, saciando a fome de terra dos camponeses. A questão é: se Lênin não tivesse sido tão preconceituoso quanto ao conceito de ontologia – entendido como o estudo daquilo que é –, o século XX teria sido o que foi?

9.11.10

Dos jornais

Hoje, na Folha, Frederico Vasconcelos, jornalisticou que "Bancos estatais patrocinam evento de juízes em resort". Em suma:

Encontro na Bahia terá palestras, oficinas de golfe e arco e flecha, jantar e show

Cada magistrado desembolsará apenas R$ 750. Terá todas as despesas pagas, exceto passagens aéreas, e poderá ocupar, de quarta-feira a sábado, apartamentos de luxo e bangalôs cujas diárias variam de R$ 900 a R$ 4.000.

 A diferença deverá ser coberta por Caixa Econômica Federal (com patrocínio de R$ 280 mil), Banco do Brasil (R$ 100 mil), Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes (R$ 60 mil), Souza Cruz, Eletrobras e Etco (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial).

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1. O Sindicato dos combustíveis justificou que "busca aproximação com juízes para dar esclarecimentos a respeito de ações de empresas que contestam na Justiça normas da ANP [Agência Nacional do Petróleo] e desequilibram o mercado."

Hã. Uma dose admirável de cinismo, leve e moderado.

2. O Etco, por sua vez, "entende como importante apoiar iniciativas que visem a melhoria dos serviços judiciários no país".

Ah, então tá bom.

3. A Souza Cruz: o patrocínio, "feito em plena conformidade com a lei, tem o objetivo de contribuir com o debate do pensamento jurídico nacional".

Hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahah!

Só rindo. Esses caras são engraçados.

31.10.10

Outros cadernos

A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.
José Saramago





Durante a Semana de ciências sociais da FSA, numa roda de conversa sobre José Saramago, a poeta Dalila Teles Veras falou sobre a vasta produção do português ganhador do Nobel, difusa por livros, jornais e até blogs. E destacou que por agora, post mortem, emerge um outro José Saramago, em doses homeopáticas.

Em substituição ao antigo O caderno de Saramago, surgem Outros cadernos de Saramago.

Todos os dias, um competente funcionário da Fundação que leva o seu nome vasculha a vasta produção do autor e de lá retira uma pílula de lucidez, que, recomenda a poeta, deveríamos tomar todos, todos os dias pela manhã, a fim de ganhar força para enfrentar o dia e a vida. Como esta que estava lá hoje, a respeito da morte.

27.10.10

Meu voto

Andei preocupado toda a semana com o fato de que não havia definido ainda meu voto: nulo ou Dilma. E ainda agora duvido. O certo é que não voto em Serra, tanto por suas conversas, quanto por suas ideias, cada vez piores. A favor de Dilma, pesa isto que disse Singer, e também isso que diz a história. Mas as conversas inocentes, sei bem que não são privilégio de José Serra e Joaquim Roriz. E com todas as limitações do governo Lula-Dilma-PT, e do sistema representativo, e desta tão falsa democracia liberal que temos, limitações amplamente conhecidas na órbita do modelo social problemático que a história nos deixou – o voto nulo aparece como uma opção justa.

De qualquer modo, o que bem pouco tem aparecido, e isso quase passou despercebido, é que na verdade, no embate Serra-Dilma, está claramente posto um embate entre neoliberalismo, de um lado, e do outro uma mistura varguismo-desenvolvimentismo-neoliberalismo, com estado forte, se é que é possível. A segunda opção aparece como menos pior, no sentido de que privatizações, pedágios, sucateamento de educação e saúde, estado mínimo, marcas evidentes do Consenso de Washington, não devem ser ampliadas. Com Serra, tudo é possível, e vale recordar o que foi a disputa pelo governo paulista, com Mercadante criticando a política mercantil de Alckmin para as rodovias, e este defendendo-a corajosamente. E ganhou a eleição em primeiro turno, sem uma proposta minimamente revolucionária para a educação em São Paulo. Parece que a sociedade inteira jogou a toalha, e todos passaram a aceitar a falência do ensino público. Como chegamos a isso? E onde chegamos... O que pode mostrar que o pensamento neoliberal fincou raízes no eleitorado paulista - que não vê nada melhor além disso, uma pena, deus...

De todo modo, votando nulo ou em Dilma, uma coisa pra mim vem ficando bem claro. Voto, de qualquer tipo, quer dizer muito pouco. As opções entre candidatos são muito parecidas. Intervém talvez mais na política, contribui mais para corrigir a direção de um povo, é mais senhor de si e da sua liberdade - não aquele que vota. Mas aquele que critica, conversa, convence, é convencido, organiza grupos, greves (ou as desaconselha, quando pareçam porralouquice), reconhece as muitas formas de opressão e faz algo, lê jornais (e duvida deles, e faz outros duvidarem também), estuda, age, vai ao extremo possível do radicalismo quando é preciso - e pode haver momentos em que este extremo não é sair às ruas, mas ficar em casa; não estar em grupos, mas estar sozinho. Inventar coisas úteis para a humanidade pode ser tão útil quanto pensar nelas. Isto tudo, esta perspectiva, creio que importa muito mais. Figuras que pensaram assim povoam os livros mesmo da história recente, e não consta que seus votos pessoais tenham tido tanta importância. Importa mais uma página que Paulo Freire escreveu do que todos os votos que tenha dado. É isto que penso ser o significado de dizer que há política além das urnas.

Se por acaso decidir ir à praia no domingo e não votar, certamente estarei de volta na segunda. E hei de trabalhar toda a semana, meses, anos. E esta vida diária, falada, ouvida, conversada, sentida, chorada, decidida, feita e retransformada todos os dias - tem muito mais valor.

26.10.10

1964

Como vimos, os dogmas do  ideário de 1964 objetivam o resguardo da ordem, no sentido de conservação das estruturas essenciais do capitalismo, de preservação dos valores da ordem, da família, da propriedade e da religião cristã.  Sob este Signo, Vencerás! Assim, o bonapartismo da contra-revolução das classes dominantes uniu-se contra o “perigo vermelho”. Trata-se, em nosso caso, de desorganizar as ações de massas que se enquadravam num programa de reformas democráticas, de talhe nacional e popular, a fim de impulsionar e promover a consolidação do capitalismo subordinado, como a melhor forma de combater o comunismo. A recusa ao comunismo e a adesão ao princípio social da propriedade privada como o vetor básico do convívio social, na visão da autocracia burguesa bonapartista, está pressuposta no caráter utópico de toda negação do capitalismo. Nas concepções de Geisel, o comunismo é irrealizável porque esbarra na própria condição humana:

É uma utopia principalmente porque não considera as peculiaridades da natureza humana, que fazem do homem um eterno insatisfeito, querendo sempre mais e, na generalidade das situações, não levando em conta o bem dos seus semelhantes. Muitos não pensam assim e se deixavam levar pela doutrina comunista, aparentemente igualitária. Outros foram comunistas por recalques, por insucessos da vida, por frustrações. Quando o comunista está convencido do acerto da sua doutrina, não há ninguém que o convença do contrário. É uma doença incurável.
[GEISEL apud D’ARAUJO, M. C.; CASTRO, C. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 145-146.]

 
Ora, segundo a posição anticomunista, o perigo de esta “doença incurável” se propagar residia na própria situação miserável vivida pela maioria da população, pois, sendo assim, ela é, ao menos virtualmente/potencialmente, transformada em presa fácil da manipulação dos comunistas. A sua influência deriva, assim, da própria realidade nacional, como produto do seu atraso, das doenças, do analfabetismo, do problema social, do egoísmo das classes dominantes, da má distribuição de renda.

RAGO FILHO, Antônio. "Sob este signo, vencerás! A estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista." In: Cad. AEL, v.8, n.14/15, 2001, p. 182-3.

11.10.10

Semana de ciências sociais - 25 a 30/10

A Fundação Santo André resolveu fazer sua semana de ciências sociais em parceria com a PUC e a Cásper Líbero. Clique aqui para ver as conferências e seus respectivos palestrantes, cronograma, endereço etc. Divulgo aqui sua filipeta com a chamada para o vestibular, contrariando um preceito meu, que deriva do ódio mortal de publicidade em blogs. Afinal, a blogosfera deveria ser mais sensível à nossa existência desgraçada, e nos poupar das garras publicitárias do mercado ao menos por aqui. De resto, ajudar a vender a alguém um curso de sociologia de 400 reais é ser, no mínimo, sacana.

Porém, abro uma exceção, pela singularidade do produto, dos mais dialéticos que já vi. Isto é menos uma publicidade e mais um estudo de caso, exposto à curiosidade pública. A mercadoria em questão sofre de contradictio in adjecto: quer continuar sendo o que é, quando não há mais mercado que a realize.