26.10.09

Sobre a escola

Eu fui enganado. Ou melhor, enganei-me. Pensei que a escola podia ser uma coisa que não pode ser. Desconfio que ajuda mais a manter as coisas como estão do que a transformá-las. Falo da minha, é claro, mas com alguma perspectiva de generalização. O principal está nas contradições: muitos professores têm claro seu papel no sentido de melhora do mundo, o que passa por formar uma cidadão crítico. Isto está em todos os objetivos de quaisquer programas, projetos ou currículos. Muitas vezes está até em algumas atividades desenvolvidas com alunos. Porém, não se colocam eles, ou melhor, não nos colocamos nós como sujeitos disso; em uma palavra, nós não somos críticos. O resultado é que muitas coisas importantes não são bem explicadas. Quantas vezes ouvi de alunos perguntas do tipo: professor, pra que isso é importante? De fato, muito do currículo não tem importância nenhuma. Talvez até tenha, mas eu não vejo – e isto não é pouco, afinal, sou 'especialista' no assunto. Donde decorrem duas conclusões mutuamente excludentes: a) eu e muitos colegas não temos boa formação, pelo menos suficiente para responder bem a esta pergunta da importância; ou b) temos boa formação, o problema é que metade do currículo não tem importância alguma. Se desconsiderarmos o mercado de trabalho, talvez dois terços do currículo deixem de fazer sentido.

Na melhor das hipóteses, quando sei a resposta da pergunta – que às vezes vem formulada assim: "por que estou aqui à força?" –, lembro ter somente 50 minutos de aula. Responder a perguntas realmente importantes, como essa, para um número razoável de alunos, torna-se inviável – e o peso do currículo aparece aí também. E o pior: como ensinar alunos a lutarem por seus direitos, quando nós não lutamos pelos nossos, quando vemos dia a dia serem cortadas até nossas faltas abonadas. Fico imaginando que influências não se transmitirão, meio que subliminarmente, mais pelos exemplos que pelas palavras. É uma coisa que se vê na simples e usadíssima resposta a perguntas tão desafiadoras quanto aquelas: "Não sei". O que faz pensar: pode haver crítica na ignorância. E, de fato, muitas coisas, como mudar a prova da primeira para a segunda aula, não nos são explicadas. Isso quando temos a coragem de admitir que não sabemos. Quando não enrolamos e respondemos qualquer coisa. Quando damos uma resposta sucinta (o tempo manda), que pouco explica. Tudo acaba se resumindo num dar conteúdos. Num contato que mais parece entre coisas que entre pessoas. Rápido. Mecânico. Insípido. Alienante.

21.10.09

Chegada da força

Assim narra Euclides a chegada da primeira força militar a conseguir alcançar Canudos, para de lá sair, afinal, derrotada, somando-se aos dois anteriores fracassos que ficaram pelo caminho. O trecho é saboroso.

Chegaram primeiro a vanguarda do 7º e a artilharia, repulsando violento ataque pela direita, enquanto o resto da infantaria galgava as últimas ladeiras. Mal atentaram para o arraial. Os canhões alinharam-se em batalha, ao tempo que chegavam os primeiros pelotões embaralhados e arfando – e abriram o canhoneio disparando todos a um tempo, em tiros mergulhantes.

Não havia errar o alvo desmedido. Viram-se os efeitos das primeiras balas em vários pontos; explodindo dentro dos casebres e estraçoando-os, e enterroando-os; atirando pelos ares tetos de argilas e vigamentos em estilhas; pulverizando as paredes de adobes; ateando os primeiros incêndios...

Em breve sobre a casaria fulminada se enovelou e se adensou, compacta, uma nuvem de poeira e de fumo, cobrindo-a.

[...]

À parte ligeiro ataque de flanco, feito por alguns guerrilheiros contra a artilharia, nenhuma resistência tinham oposto os sertanejos. As forças desenvolveram-se pelo espigão aladeirado, sem que uma só descarga perturbasse o desdobramento; e a fuzilaria principiou, em descargas rolantes e nutridas, sem pontarias. Oitocentas espingardas arrebentando, inclinadas, tiros rasantes, pelo tombador do morro...

Alguns apareciam em fuga, ao longe, no extremo do arraial, pervagantes na orla das caatingas, desaparecendo no descair das colinas. Outros aparentavam incrível traquilidade, atravessando a passo tardo a praça, alheios ao tumulto e às balas respingadas da montanha.

Toda uma companhia do 7º, naquele momento, fez fogo, por alguns minutos, sobre um jagunço, que vinha pela estrada de Uauá. E o sertanejo não apressava o andar. Parava às vezes. Via-se o vulto impassível aprumar-se ao longe considerando a força por instantes, e prosseguir depois, tranquilamente. Era um desafio irritante. Surpreendidos, os soldados atiravam nervosamente sobre o ser excepcional, que parecia comprazer-se em ser alvo de um exército. Em dado momento ele sentou-se à beira do caminho e pareceu bater o isqueiro, acendendo o cachimbo. Os soldados riram. O vulto levantou-se e encobriu-se, lento e lento, entre as primeiras casas.

[Os sertões. 27ª ed. Rio: Francisco Alves, 1968, p. 248.]

20.10.09

Desastres aéreos têm propriedade excepcional de comover a opinião pública – esta é a sentença cortante de Jânio de Freitas hoje na Folha. Eu gosto dele. Derrubar um helicóptero no Rio é algo para se chocar, depois do que fez o PCC em São Paulo há três anos? O Estado brasileiro não tem mais controle algum da marginalidade. E isto porque vamos entrando já numa segunda quadra de boa expansão econômica. Vamos ver o que não serão os tempos de crise.

p.s. Então, eu não sei se há laços entre a bandidagem e o Estado: vejo sempre eles em confronto (e vamos considerar que desviar verbas, fraudar licitações, nomear parentes, sonegar imposto – todo crime do colarinho branco nunca fez de ninguém "bandido", logo, o Estado está a anos-luz da bandidagem). O que nos obriga a pensar que talvez os traficantes não sejam tão mais violentos ou imorais quanto o resto da sociedade que os excluiu (e continuará a excluir, afinal, como se ensina nas escolas o tempo todo – e como já me surpreendi a mim mesmo dizendo a alunos do ensino fundamental –, "a coisa está feia, não há espaço para todos, só os mais fortes sobrevivem"). Como diz alguém naquele documentário Notícias de uma guerra particular, o Estado só sobe o morro na forma de camburão. Talvez a bandidagem, no geral, faça mal ao Estado, não sei. Mas ela existe, atua, ganha força de tempos em tempos. Então, ela faz bem a alguém. Ainda no mesmo documentário, o chefe da polícia civil carioca se pergunta: "Pra que se produz atualmente um fuzil com 750 tiros por minuto?" Não é para fazer bem a nenhum Estado, nem a nenhum povo; como beneficiário só sobra o capital. O geógrafo inglês David Harvey, num livro de 2004, O novo imperialismo, faz bem uma distinção entre a lógica do Estado e das corporações empresariais. A bandidagem pode fazer mal ao Estado, e mesmo a certos setores capitalistas, como nos assaltos a bancos; e, a um tempo, fazer bem ao movimento do capital, num plano mais geral. Convenhamos que, se vivermos num mundo sem assaltantes/ladrões/homicidas, empresas de cadeados, de seguros de automóveis, de segurança etc. – vão todas à falência. Para não falar nessa indústria das armas, que existe em cooperação com a indústria das drogas ilícitas. O Estado pode até estar interessado em legalizar as drogas e cortar o financiamento do chamado "Estado paralelo". Por que não fazer isso? Resta saber se gente realmente importante, como nossos empresários, apoiariam isso, porque, se não quiserem apoiar, podem sempre se esconder sob quantas falsas bandeiras existam, a da moral, a da família, a da saúde, a da religião. Bandeiras que desaparecem quando a bancada da bala resolve, por exemplo, à época de um plebiscito sobre o desarmamento, convencer a população de que todos têm direito a uma arma. Pode ser um exagero reduzir tudo à questão econômica, mas é igualmente ingênuo desconsiderá-la. Depois, ficamos abismados ante a ingenuidade do povo africano, cujas centenas de conflitos entre as suas muitas etnias no mais das vezes são provocadas por brancos estrangeiros, que depois vendem armas a todos os lados em disputa. Coisa parecida acontece por aqui. Para não falar da nossa ingenuidade em acreditar que não se sabe como resolver nossos graves problemas sociais. É a mesma que considera uma lástima não termos conseguido ainda uns difíceis dois ou três bilhões de dólares para erradicar a fome do mundo, ou, pelo menos, da África, o que já não seria mau, sem atentar para a facilidade com que se conseguem 20 bilhões para salvar a GM da falência, instantaneamente, da noite para o dia.

16.10.09

Preferências artísticas

No movimento da humanidade, desde a antiguidade ágrafa até hoje, aparece um grande esforço construtivo, um movimento de permanente construção e autoconstrução dos homens, com grande vantagem para nós, que vemos este progresso do topo – e com grande destaque para a arte, em todo este processo. Mas tenho percebido que toda vez que se esboça uma definição de arte baseada em perspectivas histórica ou social, aparece uma condenação: esse ponto de vista é limitado. Isto é intrigante. Pode uma obra de arte estar desvinculada da sociedade que a produz? De outra maneira, se a perspectiva histórica é limitada, qual a seria a mais abrangente das perspectivas? Eu não sei. O que sei é que quando vejo que nos meus autores preferidos aparece muito forte o peso da crítica social, uma coisa me perturba. Não pela repetição da mesma crítica; dificilmente poderia haver retrato artístico da atual sociedade sem crítica, para haver um mínimo de honestidade intelectual. O que incomoda é a ideia de que "meus gostos" não são meus, mas produto do meu tempo – essa é talvez a coisa incômoda na história. Se o que me particulariza, aquilo que me faz singular, são as minhas preferências, os meus gostos, saber que são eles, em grande parte, fabricados por uma teia industrial sem a qual eu não poderia tê-los – isto não agrada a ninguém. E, a pensar assim, teríamos que repensar também que como indivíduos nada temos de inato; tudo o que temos/somos se fez a partir de relações sociais, de amizades, de trabalho, de estudos, de compra e de venda, que não poderiam haver de jeito algum há míseros 400 anos atrás. E aí fica a subjetividade reduzida a um mero produto da história. Se isto por um lado reafirma a determinação histórica da arte, da espécie humana e de tudo, por outro lado cria um problema: posso gostar de ler romances do XIX, mas detestaria ter de abrir mão dos do XX. Quanto à música, igualmente, se ouvisse só pianos e violoncelos certamente que não seria o eu que agora sou. O que, numa perspectiva futura, leva a perguntar: o que acharão desta nossa arte, desta nossa vida, destes nossos gostos, daqui a cem anos? Com certeza, terão outros "gostos", talvez que ainda gostem dos nossos, mas, tendo outros, serão também outros. E, assim, essa coisa do movimento mostra também um lado destrutivo, com prejuízo para isso que agora somos.

7.10.09

Fichamento

Cansei de perder minhas fichas. Isto aqui começa a virar espaço realmente útil.

[...] há no romance dois ângulos principais que definem a visão do autor e condicionam sua “arte de escrever”: a investigação da realidade como algo subordinado à consciência (esta alçada ao primeiro plano) ou a consciência sendo posta a serviço de uma realidade existente fora dela. Levando em conta tais ângulos de subjetivismo e objetividade, combinados nas mais variadas formas, [Antonio] Candido considera que “as obras mais completas são em geral as que manifestam simultaneamente os dois aspectos da realidade – o interior e o exterior – tratados, porém, como se o romancista houvesse estabelecido com o seu material uma relação de sujeito e objeto”. [...] os escritores em geral alcançam a plenitude quando conseguem passar do subjetivismo adolescente (“que faz da realidade um conjunto de impressões e emoções”) para a análise objetiva (que “reconhece a existência própria do mundo onde o sujeito se insere”), como seria o caso de José Lins do Rego.

[...]

Escreve Suassuna: “[...] eu tenho uma visão particular sobre História. Veja bem, não sou historiador, sou fundamentalmente escritor. Fui muito marcado por Leonardo Mota e por um outro escritor, tido como um autor menor, mas do qual gosto muito, Alexandre Dumas. O Conde de Monte Cristo, que muita gente vê como uma obra de diversão, para mim tem um grande sentido mítico, algo que me toca muito. Vejo o personagem do Abade Faria como Mefistóteles de Fausto, pois ele transforma um jovem e inocente marinheiro no sombrio Conde. Mas o caso aqui é outro livro, Os Três Mosqueteiros. Acontece que os historiadores modernos começaram a fazer uma História baseada em documentos. Tudo bem, eles são importantíssimos, sim. Mas, com essa ênfase nos registros, os historiadores deixam de lado algo muito importante que é o personagem. Só que para isso tem que ser escritor. O grande historiador tem que ter a precisão, a documentação, o estudo, o esforço do cientista, e também a chama do escritor. Sem isso, ele não coloca a pessoa diante do personagem. Por conta de Dumas, eu nunca vi o Cardeal Richelieu como um homem cinzento e abstrato igual aos outros personagens nos livros de História. O escritor tornara o personagem vivo para mim. Estudar História foi fascinante porque eu não a via friamente” (2004; grifo nosso [vermelho meu]).

(Ortega et al. A Literatura no caminho da História e da Geografia. Cortez, 23-25)

5.10.09

Aposta

E um amigo diz que a BR Foods existirá ad eternum. Eu não dou cinco anos para uma nova fusão.

4.10.09

Por um voto nulo

"[...]a realização do mundo atual exige como condição essencial o exercício de fabulações."

Toda vez que alguém diz que vai votar nulo, aparece alguém dizendo que votar nulo é ruim. Que se as pessoas todas que têm alguma consciência deixarem de votar, o resultado vai ser é muito pior. O primeiro, que desistiu do voto, vira assim um cidadão nulo; o último, que segue acreditando nas urnas, segue também norteando o curso da política.

A imagem parece real, mas só pode ser falsa. Primeiro, porque o voto nulo não transmite nulidade à pessoa que vota nulo. É uma inversão: não somos cidadãos porque votamos; votamos (ou não votamos) porque somos cidadãos, oras. E toda vez que o cara conversa com alguém, escreve um comentário, emite uma opinião, faz projetos, escreve livros, produz arte, movimenta ideias, sai às ruas ou, no limite, impede a circulação do trânsito, das pessoas ou das rotinas institucionais, para descontentamento de reacionários, motoristas e empresas prestadoras de serviços, está norteando o curso da política, talvez mais que pelo voto, além de incomodar as pessoas, o que não deixa de ser bom. Porque o grande mau são as pessoas acomodadas, isso é fato. Segundo, porque o voto válido no mais das vezes não norteia nada, desde que o número de pessoas que vota conscientemente é sempre reduzido. Para não falar que escolher entre três ou quatro candidatos (já escolhidos antes sabe-se Deus por quem) não significa escolher entre projetos diferentes. Eles fazem questão de ressaltar as diferenças e quando elas não existem, mudam-se as palavras (sem mudar seu conteúdo); mas no essencial são sempre iguais. Plínio Sampaio diz coisa parecida nesta entrevista, aliás, uma concessão rara de espaço a esse pessoal radical, que é tudo maluco, né gente?

Este ano foi bom; a avaliação antecipada não deve mudar nestes três meses restantes. Quando achei que não havia mais nenhum campo de ação nem de visão, para aqueles que gostam de fazer e olhar o que estão fazendo, vi novas janelas se abrindo e conheci uma ciência nova, que nunca achei pudesse ser isso que é: a geografia. No Encontro com Milton Santos, de Silvio Tendler, aparece uma fala de José Saramago sobre a democracia. E parecem até ásperas as palavras do português, mas no decorrer do filme (na íntegra, aqui) vai-se além: "[...]a realização do mundo atual exige como condição essencial o exercício de fabulações", diz o geógrafo brasileiro. Não é só a democracia. É isso em que se tornou toda a nossa vida: uma grande fábula.

Falta ainda um ano para as eleições, pode ser que mude de ideia até lá, mas, por enquanto, por tudo isso, só posso dizer que não acredito mais nesta política das urnas. Mas ainda acredito na vida, ainda bem. Pensando bem, só posso continuar acreditando na vida porque escolhi não acreditar mais neste joguinho sem-vergonha que é a política, que premia nossas melhores esperanças com as maiores frustrações. Eu estou fora.

29.9.09

Das obviedades

Perder o emprego nunca matou ninguém. Morre-se por não achar um.

15.9.09

Morte

Estes tempos de pandemia, gripe etc. tornaram a gente um pouco mais neuróticos. É todo mundo lavando a mãozinha, passando álcool, lendo precauções – que morrer ninguém quer. Ficam duas semanas sem aparecer nas escolas, preservando a vida, e mal as coisas se equilibram, vai todo mundo gastar essa mesma vida em inúmeros sábados de trabalho repositivo e sei lá quantas mais horas ordinárias na linha de produção, cujo limite único são as vinte e quatro horas do dia.

Hoje, senti-me meio mal, nariz escorrendo, enjoo-quase-vômito, febrinha... é a tal gripe, pensei. Vou para casa. E abandonei uma aula de política pela metade, precisava descansar, o corpo doía. Daí, fico até agora pensando no ridículo que é pensar em morrer. Mas gosto da brincadeira, e como também sinto medo, vou brincando a sério, já me convenço de que não passo de amanhã, morte vindo a cavalo, e já que é assim, passo uma última vez pelo supermercado, faço bem em me preparar; se o consumismo é um mal, também sei que pecado não é, e nem compro muita coisa, só o bastante para um moribundo de hábitos simples. É, por exemplo, pegar somente um suco preferido, que é de manga, uma fruta boa com gosto de coisa antiga, que é maçã, e afinal uma bolacha, uns pães, uma escova de dentes. Este último item é que não se explica muito bem, afinal, a escova que tinha em casa estava lá com algumas cerdas meio espandongadas, é verdade, mas se estava só meio ruim, também estava obrigatoriamente meio boa – aguentaria ainda alguns dias, sem contar que morimbundos não costumam enxergar muito longe, nem chegam a pensar em dias, pensam quando muito em minutos, sendo na maior parte das vezes um "ajeite aqui este travesseiro, que me incomoda", "dê-me ali aquele remédio, que me dói", "não me venham com jazigo feio".

E fico assim perdido com a escova na mão, frente à gôndola, que fornece escovas de todos os tipos e bolsos, para tornar os dentes mais brancos e lisos, e talvez ignore que a terra de onde vêm seus componentes não faz questão de dentes fortes ou cariados, devora-os a todos com a mesma voracidade, sem distinção de cor ou tecnologia. Resolvo pela mais barata, não há cerda que não limpe nem se estrague. Saio, chego na casa vazia, sinto-me só, e desgraçadamente feliz. Talvez devesse pensar mais em morte, sem precisão de noticiários.

8.9.09

7 de setembro

Também não fui desfilar ontem. Dia ensolarado, hino nacional, bandas e fanfarras, escolinhas, aluninhos, prefeitinho acenando para o séquito de funcionários públicos que anualmente lhe vão pedir a bênção. A cama preguiçosa e quente finalmente disse um "Fique" mais alto. "Está bem", concordei, vencido e vitorioso.

Não há nada mais estúpido que uma Pátria – esta perigosa abstração. Deveria haver o dia de queimar bandeiras, cuspir em brasões, parodiar o hino, riscar o mapa, abraçar uruguaios, argentinos, paraguaios, bolivianos etc. etc. e saber que, concretamente, não existe nada além de humanidade. E que triste seria um 4 de julho por aqui... Pior que ter uma mentira, é ter uma mentira que deu certo. E mesmo não tendo uma nação que funcione, cá pra nós, dos substantivos abstratos, "país" é o mais concreto. É comum ouvir gente dizer que Stálin foi pior que Hitler, afinal, o alemão matou judeus estrangeiros, enquanto o russo, aaahhh, o cara matou gente de seu próprio país! De longe, a ideia de país, se não for a mais perigosa, é a mais mentirosa das invenções.

Vanusa, v. é linda.

31.8.09

E agora professores das redes estadual, municipal, particular etc. perderam seus sábados até o fim do ano: a maioria das escolas anunciou reposição das aulas perdidas com a gripe. Inclusive a minha. E foi assim que eu disse à minha querida diretora que não topava.




P.S. Se fiz mesmo isso? Bom, na segunda passada, finalmente consegui entregar isto à sra. diretora, que é realmente querida. Após algum tempo, chamou-me para alguns esclarecimentos. Após uma conversinha nossa, acabei convencido de que a versão a ser enviada para a secretaria de educação deveria ser mais light, menos emotiva, por este motivo e mais aquele outro, de maneira que eliminássemos termos como "necessidade de ócio", "cansativa jornada", com alguma hipocrisia, sem tanto atrevimento e antíteses padrevieirianas. E foi o que fiz, na terça. Com que direito posso eu querer ser sincero, íntegro? Seria muita audácia para este tão primitivo estágio da história. E, outra vez, deixei de ouvir o que sentia para dizer somente o que raciocinava.

Sim, mesmo eu, que tento ser só o que sou, o que sou mesmo é um grande bunda-mole.

De qualquer maneira, não trabalharei aos sábados.

30.8.09

Tempo

Num momento quando já não tinha argumentos para explicar o absurdo que aos poucos vou praticando, um bom amigo me falou numa tal oposição entre cronos e kairos. Até nessa hora os gregos ajudam. Eles, realmente, pensaram em tudo:

Para os gregos, cronos representava o tempo que falta para a morte, um tempo que se consome a si mesmo. Por isso, seu oposto é kairos: momentos afortunados que transcendem as limitações impostas pelo medo da morte!

Gostei muito de ler isso. Acho que começo a entrar numa fase espiritualista, embora cada vez mais crente no materialismo dialético. Vá lá entender.

24.8.09

Antropologia

Sábado, pus-me pra fora do abc paulista e fui à capital, até a praça Roosevelt ver os "120 dias de Sodoma". Não sei se fiz bem em revê-los. Fazia tempo que não passava pelo centro velho. E agora, além das crianças malabaristas, pirotécnicos, limpadores de parabrisas, mendigos enrolados em cobertores imundos – temos novos rituais de contato. Na esquina da Ricardo Jafet com a avenida do Estado, um menino de uns 11, 12 anos, antes do show, subiu na linha branca, olhou-me de frente, levantou a camiseta (só de camiseta num frio do caralho), virou-se de costas, voltou-se outra vez, baixou a camisa, fez um leve aceno com a cabeça e começou o espetáculo. Na Ipiranga com a Rio Branco, um morador de rua aproximando-se de um carro, de novo, mostrou ao motorista que não portava armas na cintura, e só então aproximou-se dos vidros sujos.

Andar pelas ruas é como travar contato com mundos os mais desconhecidos, etnias as mais diversas, costumes os mais estranhos, linguagens as mais absurdas, seres humanos os mais improváveis, relações humanas as mais desumanas. Fiquei perturbado sem saber como responder, ou não responder, se mostrar boa vontade, se me esconder, se expressar menos medo (expressei medo?), se corresponder à confiança, se duvidar das falsas amistosidades, se mostrar que não sou perigoso, dar a moeda, não dar a moeda, viver, morrer, viver, morrer...

Não é pra menos que a gente viva morrendo todo dia. Há muito tempo encena-se uma história da humanidade, com os mais horrendos crimes, hipocrisias e degradações, violentamente apagados pela alegria contagiante e final de quantos carnavais puder fazer a indústria. A gente demora a entender que não deve cantar a música.

22.8.09

Loucura

Um cara vai ao médico, preocupado. Sofre dores no estômago, o médico lhe diz que as causas, além de genéticas ou resultado de alimentação ruim, são agravadas por abalos emocionais, e o homem acredita mais nessa última explicação, tem ele percebido isso tudo, nesta parte do ano quando o movimento é mais intenso no trabalho, está mais estressado. Sabem as causas de sua aflição, ele e o médico, que lhe receita alguma droga. E combate-se o efeito, mesmo sabendo-se das causas.

Que é o homem, que é a sociedade, que é a existência, que é a matéria? Nenhuma pergunta sobre nenhum objeto poderá ser suficientemente respondida sem que se conheça suas origens, suas causas, sua gênese. Muitas das causas dos problemas que afligem um e outros são bem conhecidas, estudadas, comprovadas etc. etc. Mas não se combatem as causas. Só os efeitos.

Certa vez um professor questionou: "afinal, quem é realmente louco: nós ou os loucos?" Não entendi então. Mas agora vejo bem: a loucura é um dado meramente proporcional. Se num dado país a maior parte das pessoas forem loucas, os normais é que serão os loucos. Disso resulta que, num mundo inteiramente globalizado pela insanidade, aqueles que veem percebendo a essência das coisas só podem ser loucos.

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Update 1: Donde se conclui que a sabedoria popular tem de fato alguma sabedoria: "Não estude muito, menino, que isso deixa louco." Ouvi isso do meu avô tempos atrás. E eu só estava lendo a Bíblia.

Update 2: Mia Couto usou no seu Um outro pé da sereia uma epígrafe que há três anos atrás não só não entendi como recusei com nojo. Hoje, entendo tão bem que sinto dentro de mim:

Quem acha doce a terra natal ainda é um tenro principiante;
aquele para quem toda terra é natal já é forte;
mas é perfeito aquele para quem o mundo inteiro é um lugar estrangeiro.
A alma tenra fixou seu amor num único ponto do mundo;
a pessoa forte estendeu seu amor a todos os lugares;
o homem perfeito extinguiu o seu.
(Hugo de Saint Victor, monge saxão do séc. XI)

21.8.09

Burrice ortográfica

Quem um dia ler Eça de Queiroz (A cidade e as serras), quando chegar em:

"Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo, que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a batalha de Sadowa e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a espingarda de agulha que vencera em Sadowa e fora o mestre-escola quem vencera em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da mecânica e da erudição."

ou vai chegar ao final, compreendendo bem a desconfiança no positivismo, ou, mais burro, como eu, vai se demorar muito, perdendo tempo e vida, empacando (como sói ocorrer aos animais híbridos) naquele pedaço vermelho, em que flagrantemente Eça errou a sintaxe, devendo-se escrever "a quem" em lugar de "quem". Na verdade, o problema todo está na leitura dos dois "fora" que aparecem: sei lá por que(1), li cinco vezes como 'fóra', quando o certo é ler como 'fôra'. Culpa de quem? Minha, que sou burro e não sei das batalhas do XIX. Mas também das reformas ortográficas, primeiro da que tirou o circunflexo desta forma verbal; em segundo, desta última de agora, que também não pôs de volta. E agora Eça já não tem mais culpa, restando os xingamentos para a secreta ligação que une revisores, editores, copidesques, donos de editora e ministros da educação em geral. Aliás, essa reforma foi só mesmo pra realimentar o mercado editorial. O melhor da minha burrice não foi ter chegado ao entendimento só na sexta leitura, mas principalmente perder tempo fazendo um post, que não vai mudar nada. Também, só de burrice, daqui pra frente vou escrever sempre "fôra" erradamente, com acento e tudo, pra me conformar comigo mesmo.

1 - Na verdade, sei, e a razão se deve à combinação de duas circunstâncias: o pretérito mais-que-perfeito simples em geral não é falado, e só raramente escrito; no caso do verbo "ser", é muito mais usado o homônimo advérbio "fóra".

15.8.09

Fora, Sarney!

Taí uma coisa que eu não faço mais. As pessoas que vão pra Paulista, talvez pensem que fazendo isso estão consolidando os valores democráticos e dando um basta à corrupção, como se a corrupção estivesse encarnada em Sarney, como se não fosse estrutural. Por que será que a Folha, o Estadão, a Globo – tudo que é jornaleco não param de falar na corrupção no Senado? Não há corrupção na Câmara? Dizer que a mídia é golpista é demais, mas não dá pra negar que é poderosa e tendenciosa. Mesmo assim, a sociedade pauta suas lutas a partir daquilo que é notícia, sem ponderar que a imprensa recorta um fragmento do mundo, apenas um fragmento. Mas... e o que não é notícia? A concentração de renda, a exclusão e o engodo chamado democracia – baseado em voto, passeatas na Paulista e abaixo-assinados, que nunca resolvem nada – são problemas muito mais graves, mas como não são notícia (nem podem ser, porque fragmentadamente isso não é visível, e mesmo quando noticiada a coisa é vista pela conservadoríssima concepção epistemológica de que o mundo é estático e, além do mais, o modo mais apropriado de ver o movimento é a dialética, e quase ninguém mais lê Heráclito) ... mas como não são notícia, ninguém reclama mais disso. Virou a coisa mais normal do mundo.

Outro dia apareceu uma cidade do Sul aí que, por causa da gripe suína, mandou fechar tudo que era restaurante e boteco, só alguns casos especias puderam abrir. Mesmo os que abriram, reclamavam do fraco movimento: "As pessoas estão com medo de sair de casa, esse mês fecharemos no vermelho, prejuízo, prejuízo." Em nenhum momento alguém lamentou o desperdício de comida que isso representou (e que ocorre em todo restaurante até em situações normais), porque, quando a visão do tema é fragmentada, isso não tem muita importância, nem relação com a fome de outros lugares. Vou assistindo sempre que posso a tevê Senado, agora fazer alguma coisa, tô fora. Fazer o quê, se estamos todos cegos, sem saber o que fazer. E agora a culpa toda é do Sarney, ele é a maior afronta à democracia e à sociedade?

Engraçado ninguém ter dado bola pro caso da PROIBIÇÃO da "marcha da maconha", quer atentado maior à democracia? Proibiram uma marcha! Os maconheiros também são bem burros: é claro que o Estado não vai permitir tão fácil a legalização desse tipo de drogas. Cada lei que for extinta, é a negação de Foucault, uma razão a menos pra existir polícia e outras tantas mais pra não necessitarmos de OAB, Porto Seguro, Cadeados Papaiz e deus sabe que mais ramos industriais. De qualquer maneira, essa é a democracia. Ah, me poupe dessa farsa.

10.8.09

Sobre o PLC 122/2006

Algumas pessoas conseguem explicar as coisas mais complicadas com as palavras mais simples. Não sei como alguém que leia isto honestamente não possa se colocar ao lado do autor. Pra que a humanidade se liberte do seu maior algoz: ela mesma.

6.8.09

Acordei sem sono, eram duas da manhã. Tinha ido dormir cedo, mas nunca tenho muito tempo para dormir, e continuei de olhos fechados, insistente até quando não deu. Quando os abri, vi pelo vidro o balançar dos galhos mais altos de um árvore cuja espécie não sei, tem uns 70 metros de altura, e o vento faz barulho ao mover cada folha de sua copa. Devo morar perto de área de mananciais. E fiquei me perguntando por que não dormia, em vez de constatações inúteis e perigosamente bichogrilosas. Mas logo vi que o céu estava estranhamente claro, coisa rara na cidade, lembrava-me os céus da infância, claros, estrelados, alumiados da lua, tão perto agora. Era um céu escandalosamente decifrável, apesar das nuvens, via-se tudo pela janela. Havia a lâmpada de 500 watts fora do prédio, mas só ela não faria tanto. Distingui vida em cada caule de árvores, vi o branco da nuvem, o azul enegrecido do céu de espaço a espaço. Era um milagre. Abri a janela e percorri o olhar pelo espaço a procura do disco voador, mas não vi nenhum. Só ouvi os metais dos grilos, a sinfonia dos sapos, cães viralatas latiam de tempo em tempo. No mais, o silêncio. Grande. E quis pôr tudo abaixo. Se tivesse o poder de Pyongyang teria mandado tudo pelos ares, detonaria não só minhas ogivas nucleares, mas também as adversárias. Por um momento achei que o planeta viveria melhor sem os humanos.

Mas logo me interrompi. Que pensará o planeta sobre melhor e pior? Que é, de fato, a paz, a tranquilidade e o silêncio das duas da madrugada depois que o último ser humano dorme? Que é vida? Nada, quando tudo dorme. Nada tem importância, senão para nós mesmos acordados. A medida do tempo, a transparência dos cristais, os nomes da fauna e da flora, as medidas do espaço, a demarcação das áreas, as fases da vida, a memória, o homem na lua, a eletricidade, as cores, a aerodinâmica das naves espaciais, a constituição carbônica dos alienígenas, a diplomacia, a bomba atômica, o poder, a verdade. Tudo, absolutamente tudo, das estrelas aos micróbios – é algo que jamais saberemos. Porque toda vez que olhamos estrelas e micróbios não estamos vendo nada além de nós mesmos. O mundo tal qual é deixará de ser nos primeiros movimentos do cosmos, da physis, do universo – sem os homens.

29.7.09

A mãe

No dia 29 de julho, exatamente às 19h47, entrei na cozinha, encontrei minha mãe e perdi algo. Seria um encontro qualquer, mas havia alguma coisa, ela olhou-me sorrindo e enquanto via os dentes, contou-me algo importante e feliz; agitava as mãos abertas no ar. Deus, fossem só sorrisos e mãos... havia brilho nos olhos. Um choque de anormalidade, olhei percebendo bem, alegrias tornando-se estranhas. E resisti ouvindo dois minutos, vendo o que nunca tinha visto, sentindo um estranhamento, um nó na garganta, sabendo a incomum alegria depois das comuns tristezas, e veio a lembrança, de todas a mais velha – e enquanto no chão perguntava sobre o mundo, ela muito alta e jovem explicando –, vi também rugas em seu rosto, vi em seus dedos as marcas do tempo, vi em seus olhos agora pequenos tanta felicidade... Perdi alguma coisa, pensei, pela primeira vez perdi algo realmente importante, como um Paulo Honório que diz, braços sobre a mesa – estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente. Disse qualquer coisa e fugi perturbado ao meu quarto, um aperto no peito. E senti-me no tempo, inteiro, impotente, só. Chorei um choro delicioso e trágico. Devo ter soluçado alto, ela escutou, as mães se preocupam, abriu a porta, indagou se tudo bem. Estava, estava tudo ótimo. Fiquei bravo, então um homem não pode chorar em paz? E essa mania de abrir a porta... Além do que, um homem chorando é sempre patético, não expliquei, ela saiu, nem poderia explicar, porque voltava à minha verdadeira situação, só outra vez. Chorei dez minutos mais, sentindo a verdade, sentindo-me bem, sem saber por que tanto desgosto, por que tantas lágrimas, sentindo-me o mais patético dos homens, sentindo-me mal, sem saber o que fazer, sem saber o que perdi.

26.7.09

Fome

Era uma quinta-feira. Tarde-noite. Chovia. Estava no caminho quando ela me ligou e avisou do atraso. Senti fome: quis muito umas esfihas. Tinha ganhado um tempo, então parei e comprei quatro, e enquanto ia comendo fui gostando o gosto do limão, e olhando o verde do limão, ah...., quis de todo coração uma caipirinha, tinha fome outra vez, mas a fome agora era outra. E já estava na segunda dose, e a vodca nunca foi tão boa, e enquanto ia bebendo, ah... quis beber para sempre... Tinha uma grande fome de beber, mas era diferente, a fome agora, sendo outra, era uma fome de viver. Mas lembrei que amanhã trabalhava. Senti raiva. E enquanto o meu ódio crescia, foi aparecendo despretenciosamente, agora devagar, agora como um raio, um pensamento pequeno e agora ligeiro: e se eu roubasse? Quis muito ganhar sem trabalhar, quis muito prazer sem esforço, quis muito viver sem morrer. A fome agora era outra.

22.7.09

Passei três longos anos sentado em minha cadeira, digitando em meu teclado, olhando em minha tela, dobrando meus joelhos. Sob a escrivaninha, havia um compartimento tipo prateleira, onde incialmente deixei o estabilizador e a quem lentamente fui juntando uma biblioteca de livros insossos, cds inúteis, apostilas velhas, pastas, envelopes e um nunca mais acabar de papéis, textos, fanzines, correspondência bancária, publicidade e muita poeira. Um dia, a prateleira caiu. Ainda tentei voltá-la ao lugar, calcei com caixas, tomei cuidado, rezei – tudo em vão. Estava inflexível. Saiu. E agora posso esticar minhas pernas, endireitar a coluna, encostar meus pés cansados na parede. De fato, só vemos a ruindade das coisas quando as perdemos. Também por isso damos talvez tanto valor a nossos cães, casas, carros, empregos, vidas, amigos e parentes.

24.6.09

Se o universo é feito de música e se, como você afirma, as pessoas são mesmo poemas, me mostre: o que é a poesia?

1.6.09

Felicidade

Agora, ultimamente, tem me aparecido uma sensação vaga de tranqulidade e calma, que se confunde com felicidade, mas que não resiste muito. É aparecer e me incomodar, o que me faz perguntar de onde essa sensação vem, e isso eu sei bem, mas não sei o que ela é. Porque é sempre franzir o cenho, como quem enxota um cão intruso, e perceber que essas sensações boas só derivam de eu estar vivo, e relativamente livre (porque relativamente só), e somente. De resto, é o mesmo inferno que sempre foi.

Preciso trocar de emprego. Odeio adolescentes, definitivamente (ou pessoas, o que dá no mesmo). As contas estão sempre fechando o mês vermelhas – consumismo filhadaputa e inútil. Não ganho na megasena. Não declarei ainda o imposto de renda. Não leio mais meus livros queridos. Não tenho tempo nem saco de ler pras aulas de sociologia e política. Não tenho tempo de apagar emeiols. Não tenho tempo de pensar. E, pra completar, errei a declamação de um poema ontem, sábado, numa feira do livro: quis morrer. Que merda! Que poema filhadaputa do Drummond! Desaparecer assim da memória, com todo mundo olhando...

Também não jogo mais essa porcaria da megasena. E nunca mais declamo poemas. Idéia besta.

Agora só falta o problema das pessoas, das contas, dos impostos e das insuficientes 24 horas do dia. Ora, quem disser que é difícil viver ou ser feliz, simplesmente não nomeou direito seus problemas.

28.5.09

Lembrete sobre duas coisas:

1. A cultura da paz é, com certeza, o pior dos valores dos nossos tempos. Capitão Nascimento não é tão irracional quanto nos quer fazer parecer nosso bom senso. Ele tem razão num ponto: a hipocrisia é não só a base da nossa organização social globalizada, mas também a base do que nos constitui como seres humanos modernos. Pregando as vantagens de uma cultura de paz, dias atrás é que me dei conta da contradição que existe nisso. Precisei ouvir de uma quase criança de 12 anos que, na verdade: "v. diz que a violência não é o caminho, porque não pode dizer outra coisa; a gente entende; mas sabe que v. não acredita nisso; porque quem leva um tapa na cara, devolve; todo mundo faz isso." Pior que é verdade. Então, por que diabos continuamos a defender a paz e a justiça. Deveríamos defender sim a justiça e a paz, mas sabendo que justiça e paz não prescindem de violência para se concretizar. Não se chega à paz pela paz; chega-se à paz pela guerra, como diz o velho ditado. Então, se é mesmo isso, para que continuamos a dizer que a violência não é o caminho, quando a violência se alastra de diversas formas pelas famílias, pelas ruas, pelas diferentes classes sociais e principalmente na relação entre estas? Sim, mesmo a nós, que nos consideramos politicamente desalienados, críticos e transformadores, mesmo a nós, invisíveis, vêm ter conosco valores alheios que entranhamos e reproduzimos sem o perceber. A cultura de paz nos chega pelas escolas, pela TV, pelos jornais, pelos livros – em uma palavra, pelo Estado. Estes valores não pertencem aos cidadãos – ao contrário, os pais comumente dizem aos filhos: "não bata; mas se apanhar, não apanhe queito: reaja sempre." Então estes valores só podem pertencer àqueles que, estando no poder, controlam o Estado. É evidente que se fosse incentivada uma cultura de violência contra às injustiças, mais cedo ou mais tarde se veria que a maior delas é uma organização social em forma de pirâmide, que permite a uma pequena parcela dominar a imensa base que a sustenta, com métodos tão ou mais violentos quanto os do passado, disfarçados sob um manto de hipocrisia, que lentamente vai se assentando e se escondendo na névoa polifônica do nosso século – cuja complexidade, porém, permite-nos vislumbrá-lo em toda a sua extensão com uma simples figura geométrica.

2. É uma grande besteira depositar na escola a esperança de melhora do mundo. Enquanto ela não se dispuser a construir uma visão conjunta da realidade, a partir de alguma ciência antiga ou inédita que congregue e rearticule os conhecimentos básicos entre si – a fragmentação do saber em disciplinas inúteis, a separação das pessoas em individualismos nocivos e a divisão da humanidade em classes sociais perdurará indefinidadamente. Dos que possuem formação para atuar no ensino fundamental, só professores de história e geografia parecem dominar mecanismos de entendimento e explicação coerente do estado do mundo. Dos professores de história e geografia que existem, é ingênuo supor que todos tenham vontade ou condições de ativar todo seu aparato técnico na construção de situações reflexivas de aprendizagem de mundo; se excluírmos aqueles que possuem formação ruim, sobra uma parcela insignificante. Dos professores das outras disciplinas, majoritários, pode até haver vontade ou condições efetivas de explicar o mundo; mas, se lhes sobrar vontade (o que já é pra lá de duvidoso), faltar-lhes-á sempre formação específica e aparato técnico. O que em grande parte explica por que nunca vi um professor de matemática usar um triângulo para associá-lo à sociedade ou ao mundo. O que explica também por que grande parte da matemática e a totalidade de muitas outras ciências, como a gramática, a química ou a física, parecem aos alunos não ter aplicação prática alguma. O que mostra como o positivismo, que no XIX fragmentou o conhecimento, serviu aos interesses da elite, criando – mais que uma divisão do saber – divisórias de pensamento, tapumes da visão... antolhos. O positivismo, se Durkheim não se contentar com ser o criador do melhor dos chicotes, é talvez a mais engenhosa das criações humanas. Os seres humanos, quando no ócio, quando desatrelados do fardo que puxam, quando caminhando pelo mundo – já não olham mais para os lados.

Daí hoje se acreditar, principalmente no Brasil, que direita e esquerda não existe.

E quando olham para o amanhã, para a frente, para o futuro – já nem veem a natureza da ordem que o progresso exige. Ficam obviamente excluídos dessa cegueira nova os que naturalmente já não viam pelas doenças antigas (não há muita diferença entre um camponês medieval e as contemporâneas classes D e E): os cegos antigos (que sofrem o presente) culpam os malefícios do progresso, e vivem a reviver no presente o passado; a maior parte das pessoas que veem, como já se disse, não vive mais no presente: escolheu pensar no futuro. E isso é que é assustador. Porque, se se pensar bem, passado e futuro, na realidade, não existem; são só abstrações.

2.5.09

Em um episódio dos Simpsons, após presenciar uma catástrofe cinematográfica, causada pelas mais inesperadamente vis motivações, o diretor Seymour Skinner, com um riso a um tempo discreto e saboroso, sentenciava lentamente:

– Essa humanidade...

De tempos em tempos me vêm à mente esta cena.


16.4.09

Igreja

Eu não tinha dado muita bola pras críticas do Joseph Ratzinger ao Nietzsche, mas de tanto falarem acabei indo lá ler a notícia no Estadão, de 10 passado. E até por ser Nietzsche um filósofo que cria instabilidades para os valores, perigoso, portanto, para a religião, continuava não vendo ali nada de anormal ou inesperado por parte da Santa Madre Igreja. Até que duas pessoas especialmente, e reproduzo a seguir ideias delas, me alertaram para o fato de que o discurso do Bento é uma puta de uma gafe, e por dois motivos: a) criticar Nietzsche objetiva, na verdade, exortar os fiéis a não o lerem, o que, no fim das contas, é um tiro pela culatra – proibir é estimular; b) esta proibição é anacrônica, medieval e, epa!, lembramos que Bento XVI antes de ser papa era prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, um nome moderno para a Santa Inquisição.

E aqui no Brasil sabe-se que a expulsão de Leonardo Boff da Igreja tem um agente: o atual papa. Sua Igreja continua a mesma Igreja. E sobrevivem em nosso XXI os mesmos preconceitos, fantasmas, obscurantismos, misticismos e autoritarismos contra os quais se rebelaram os iluministas no XVIII. Deveríamos reviver Voltaire para vê-lo de novo dizer, Não concordo com nada... Ou não. Talvez nem precise. Porque essa coisa toda, de ouvir o outro lado, já criou raízes tão profundas em nosso modo de pensar, que mesmo entre os crentes há com certeza uma parcela que desobedecerá o interdito.

15.4.09

Estado

Se o Estado é tão somente uma máquina destinada a amortecer conflitos, a manter a ordem, a mediar interesses antagônicos, a minimizar os efeitos da desigualdade social, a possibilitar a dominação de um grupo de pessoas por outro grupo de pessoas, não é surpresa nenhuma que Protógenes Queiroz seja afastado de suas funções. A polícia federal, como parte de uma força especial armada com os impostos saqueados pelo Estado junto aos súditos, não foi criada para reprimir o grupo dominante. Esta anomalia está completamente fora de suas atribuições e, embora não pareça, isto é sério. A valer este raciocínio, Fausto Martin de Sanctis e Rodrigo de Grandis são os próximos.

11.4.09

Adriano

José Geraldo Couto mandou bem. Não é todo dia que caderno de esportes faz a gente pensar. Sobre o Adriano, imperador e tudo, ter decidido parar de jogar futebol e ganhar milhões de euros, chocando-nos a todos com tão grande e dupla perda (se bem que, pra mim, a perda maior é dos milhões mesmo; o Adriano é que nem aquele Luizão que vestiu a camisa dos quatro grandes de Sampa: faz gol, e ponto.), ele escreveu hoje na Fôia que:

Pululam as explicações fáceis, as respostas automáticas: é dor de corno, depressão, muita droga, birita, falta de estrutura, burrice pura e simples. Seja qual for a explicação mais convincente, Adriano criou um fato.

Tomou uma atitude inesperada num mundo de reações tão programadas e previsíveis. Foi na contramão da corrente hegemônica, desafinou o coro dos contentes. Seu gesto inquieta e perturba porque, na sua aparente irracionalidade, nos faz questionar a lógica absurda que comanda nossas vidas.

O leitor que acompanha ou suporta esta coluna sabe o quanto valorizo o lance que destoa: a furada, o frango, o erro. Deslizes que iluminam, que sobressaltam, que acordam. João Cabral de Melo Neto dizia que, em sua poesia, evitava "embalar" o leitor numa música que o fizesse deslizar como quem roda por uma estrada bem asfaltada. Preferia construir um caminho de pedras que, com seus solavancos, levasse o leitor a despertar.

Mal comparando, uma atitude como a de Adriano equivale a uma canelada, um tropeção, uma pedra com que se topa no meio do caminho. Quem quiser que se defenda do susto respondendo com as frases feitas citadas lá em cima. E quem tiver coragem que encare o Adriano que traz dentro de si.

3.4.09

O dilema das casas blindadas no Rio de Janeiro

"Es el eterno dilema: adaptarse ante la realidad de la violencia cotidiana, blindando a las favelas con muros y construcciones búnker o luchar sin cuartel para expulsar de ellas a los narcos que han creado en ese mundo marginal su imperio, sus leyes y su poder."

Juan Arias deve estar brincando. Achando que o dilema se reduz a isso, ou não conhece o Brasil ou não conhece o mundo.

31.3.09

Rachas

Certa vez, ao encontrar um amigo petista com quem há muito não falava, lá pelas tantas perguntei assombrado:
– Mas você ainda está no PT?
Isso foi mais ou menos na época em que o partido expulsou algumas pessoas, e alguns novos partidos foram criados. Ele respondeu que estava. E que não sairia. E não saiu. Sair para quê? Fundar um novo partido?

Pensando bem, hoje eu não faria a mesma pergunta. E tomei convicção disso depois de ver um cartaz de um certo movimento chamado "A plenos pulmões". A primeira vista parecia um movimento político em prol do esporte ou do bem-estar físico, etc. Mas não. É um movimento genuinamente político, ou seja, em prol de causas sociais. Depois descobri o que o originou. O caminho, segundo me disseram, é mais ou menos o seguinte:











Não sei ao certo o que ocasionou todo esse tortuoso caminho. O certo é que: 1) os trotskistas têm acumulado uma vasta experiência em parar e voltar à estaca zero; 2) quem é petista deve estar ainda no PT. Puto da vida, mas ainda lá. Ainda atuando. Ainda a caminho. O que nos faz pensar a quem faz bem aqueles rachas todos.

O que nos leva à pergunta inevitável: havendo um novo racha, conseguirá o organismo sobreviver com apenas um pulmão?

4.3.09

Eaosa

Por causa disto, resolvi contar também algumas histórias que li, vi e ouvi. Não são poucos os causos sobre as empresas de ônibus do ABC. Neste fórum, Rodalvesdepaula conta, por exemplo, que:

"um representante do governo estadual foi notificar uma empresa de ônibus da região por causa dos maus serviços e ameaçou com a cassação da permissão; assim, o dono da empresa pegou um revólver na sua mesa e disse para o fiscal, mostrando a arma: Quero ver quem vai tirar as minhas linhas!"

Para ouvir, de um outro usuário, a pertinente indagação:

"Não foi por uma destas que o Celso Daniel saiu da prefeitura para virar nome de estação de trem?"

O fato é que não só as lendas tem muito de base real, como também a morte de Celso Daniel ficou envolta em mistérios demais. E não é mistério o coronelismo na região do ABC. Mal de origem, na região que até meados do século XX abrigava vastas fazendas, não se pode estranhar que atualmente haja ainda tantos coronéis.

Eles modernizaram-se, instruíram-se, enveredaram por outros ramos, outros empreendimentos, outros negócios, que seguem administrando à moda de fazendas. O serviço de ônibus é um destes latifúndios modernos. Ontem, terça, aqui, Adamo Bazani publicou esta foto:

E apresentou a ficha do primeiro homem, o de gravata, que para estar completa deveria vir assim: dono de 3 mil ônibus, participação em 20 viações, já investigado pela PF por evasão de divisas e sonegação fiscal, presidente da AETC/ABC (Associação das Empresas de Transporte Coletivo do Grande ABC) – Baltazar José de Souza tem 62 anos. Aqui no ABC, é proprietário das viações Eaosa, São Camilo, Ribeirão Pires, Barão de Mauá, Januária e mais o que não se sabe. Segundo reportagem da Folha (só achei aqui), em 2005 a Viação São Camilo acumulava R$ 52 milhões em dívidas no INSS, enquanto suas irmãs, Ribeirão Pires e Barão de Mauá, R$ 17 e R$ 11 milhões respectivamente. De origem humilde, o ex-cobrador possui hoje um império que se espraia por vários estados, incluindo o longínquo Amazonas.


A foto acima é mais recente, e nela Baltazar está ao meio, entre os dois homens, segundo este lugar aqui. Nela não se vê mais a origem humilde nem a pobreza. Mas nos ônibus de suas empresas a história é outra. De uma forma geral, os ônibus do ABC são um lixo.

Um entrevistado de Adamo Bazani, aqui, afirma que contribuiu muito para a decadência dos serviços de transporte duas coisas: os frustrados planos econômicos da era Sarney-Collor e a guerra fiscal dos anos 90. A inflação, a fuga das grandes fábricas para outros estados e o consequente desemprego atingiram em cheio as empresas. Os galpões abandonados da região afetaram duramente as linhas de ônibus que transportavam seus empregados. A consequência disso é que:

"começou a se fabricar ônibus no Brasil, pensando em manutenção mais barata e muitas vezes o conforto era minimizado. Os bancos estofados davam lugar aos duros de fibra. Os motores traseiros, mais silenciosos, voltavam a dar a vez para os dianteiros, mais baratos. A manutenção era reduzida. Tinha empresário que esperava o ônibus quebrar, pois valia mais a pena."

A correção é que tem empresário que continuou fazendo isso até hoje. Em 2008, uma reportagem do Diário do Grande ABC acompanhou um usuário em seu trajeto trabalho-casa e:

"Constatou atrasos, superlotação, falta de conforto, carona para passageiros de outros ônibus da empresa que quebraram no caminho e muitas goteiras no veículo."

A EMTU avaliou 51 empresas da região e criou um ranking, baseado em quatro aspectos: qualidade, frota, situação econômica e opinião dos usuários. O resultado é que em 2004 a Eaosa foi considerada a pior viação de transporte intermunicipal. Como manda o manual, o repórter Gabriel Batista foi ouvir o outro lado. E ouviu que: " 'Uma empresa tem de ser a última do ranking. Dessa vez foi a Eaosa', justifica Baltazar Souza. Ele também é proprietário da viação Imigrantes, a penúltima colocada." É o fim da picada.

Ainda neste mesmo fórum (parece coisa de busólogo), lipe andreense diz que, aqui no ABC, a qualidade dos ônibus é tão ruim que poucas são as empresas com ônibus realmente novos:

"A Viação São Camilo também tem alguns poucos ônibus "novos" (que vieram usados de Manaus, mas são mais novos que as carroças que estavam antes)."

Estes ônibus mudaram de lugar, mas não de dono. Baltazar era dono das extintas empresas Cidade Manaus, Soltur, Viman e Urbana, que operavam no norte do Brasil, segundo informa Jerry Araújo.

O homem que tem tantas empresas tem uma história no mínimo curiosa. Conforme as lendas, era cobrador, passou a motorista e, assim que pôde, adquiriu o primeiro ônibus, a primeira empresa e, daí, forjou um império, sabe-se lá deus como. Em seus ônibus, não é raro ver funcionários portadores de deficiência, mormente cobradores. É que, explicam, ele tem um filho deficiente. Em volta dos ônibus, das catracas, das garagens, também não é raro ver indivíduos mal-encarados, exibindo revólveres na cintura, tatuagens de cadeia e participação no PCC. Isso pouca gente explica. Mas não precisa pensar muito pra concluir que se trata dos novos jagunços, que fazem a guarda do sinhô.

26.2.09

Às cinco

Hora malvada,
Hora maldita...
Eu não te vivo.
Eu te vendo.

24.2.09

Adaptações

Eu não entendo essa resistência besta dos escritores em ceder direitos ou aprovar adaptações de suas obras pro cinema. Apesar de não ter gostado de Love in the Time of Cholera, ainda assim quero ver os Cem Anos de Solidão na tela, por que não, Gabriel? Ninguém vai conseguir apagar o brilho de uma obra só porque estragou a versão cinematográfica. É um risco. Mas não mata. Dá vida nova, acende a vontade de reler, de comentar, de comparar. O pior que pode acontecer é alguém ver o filme e ficar com vontade de ler o livro. E quem já leu, tem a chance de ver o que houve de novidade, de inovação, criatividade, que é sempre uma coisa positiva – uma coisa que faltou na versão do livro do Gabriel García Márquez, e sobrou na do Saramago. Mas parece que tudo gira em torno da mesquinharia: não se quer que diretores tenham a chance de fazer um bom trabalho, de criar coisas novas sobre coisas velhas, de receber os louros num universo do qual não são criadores. Talvez por isso apareça toda a confusão antes do lançamento disso:


Ah, dá um tempo, Alan Moore. Do jeito que a coisa vai, essa birra toda fica parecendo ciuminho. Como é que pode afirmar com toda essa certeza que Watchmen não pode ser adaptado pro cinema? Só porque tem coisas que não podem ter vida fora dos quadrinhos? É claro que tem coisas que não saem mesmo dos quadrinhos. Essas ficam de fora, paciência. Em seu lugar, entram coisas que jamais apareceriam no HQ; que só podem existir na tela. Resolvido. Quer dizer, estaria resolvido, se não houvesse esse puritanismo surreal, que quer ver dois Watchmens iguais em suportes diferentes. Sem contar que esse negócio de nem querer assistir o filme mostra uma inflexibilidade típica das ações guiadas pela emoção, o que reforça a tese do ciuminho. A-ham!

Nem viram de verdade, e já foram desancando o filme. Provavelmente os fãs, cegos, indo na onda do criador. Tomara que, quando virem mesmo, todo mundo goste. Pra que a gente não fique dando ouvido a críticas, nem da crítica nem do autor. À primeira vista, pô, parece ser um trabalho legal... e só com isso, eu já ficaria feliz: com um trabalho legal. Imagina agora, sabendo que virá em separado toda aquela parte do universo expandido também?! Yaaaaaaa-hoo-hoo-hoo-hooey!!!

Principalmente pelos Contos do Cargueiro Negro, que, um dia, achei existirem de verdade, fora de Watchmen. Agora, existirão. Navegando noutros mares.

22.2.09

Crime e Castigo

Pode conter spoilers.

Mas, talvez, o melhor de ler os clássicos não seja a novidade. E sim essa sensação de que já os tínhamos lido, de que já estavam dentro de nós, de que era exatamente aquilo diríamos se pudéssemos dizer as palavras certas. Agora, começo a pensar que as aparentes semelhanças de estilo podem ser muito bem diabruras do tradutor – só lendo em russo mesmo pra saber. Mas os links são vários: uma lembrança de García Márquez aqui, uma recordação de Agatha Christie ali (principalmente essa coisa de assassinar a machadadas), um Guy de Maupassant acolá. Sobre este último, um trecho em que personagens discutem a existência de fenômenos sobrenaturais, fantasmas, demônios – poderia muito fazer parte de "O Horla":

– Todos dizem: “o senhor está doente, por consequência o que julga ver é apenas um sonho próprio do delírio”. Isso, porém, não é raciocinar com todo o rigor lógico. Admito que essas visões só aparecem aos doentes, o que prova apenas que é preciso estar doente para observá-las, mas não que elas não existam.

– Com certeza não existem! – replicou vivamente Raskólnikov.

Svidrigáilov fitou-o demoradamente.

– Não existem? É a sua opinião? Mas não se poderá dizer: "As aparições, os espectros, são, por assim dizer, fragmentos, pedaços de outros mundos. Naturalmente, o homem saudável não tem motivo para vê-las, visto que é, sobretudo, um ser terreno, e por consequência deve viver apenas a vida terrestre, em conformidade com a harmonia e a ordem. Mas, desde que adoeça, desde que a ordem normal da terra se altere, ainda que minimamente, em seu organismo, logo se lhe começa a manifestar a possibilidade de um outro mundo; à medida que a doença se agrava, multiplica-se o seu contato com o outro mundo, até que a morte completa lá o faça entrar diretamente”.
(Quarta parte, cap. 1)

Agora, Dostoiévski talvez tenha legado um mau costume irritante, aparentemente copiado por Saramago, que é esse de não nomear os capítulos. E quando a gente quer reler aquela parte, atar as pontas da trama, ressaber de novo quem é aquele personagem, não temos os nomes. E com esse incômodo, que só fui nomear de fato após a metade, resolvi que se coisas anônimas me incomodam o que tenho a fazer é lhes dar nomes, ora. Sendo assim, fica abaixo a minha parte do trabalho. Me mandem o resto, quando possível.

Quarta parte
Cap. 1 - Encontro com Svidrigáilov
Cap. 2 - Adeus casamento
Cap. 3 - Planos de Razumíkhin
Cap. 4 - No quarto de Sônia
Cap. 5 - No comissariado outra vez
Cap. 6 - O surpreendente Nicolai

Quinta parte
Cap. 1 - Lújin encontra Sônia
Cap. 2 - Um banquete fúnebre
Cap. 3 - Crime e castigo
Cap. 4 - A verdade
Cap. 5 - De quanto morre Ekatierina Ivanóvna

Sexta parte
Cap. 1 - Conversa com Razumíkhin
Cap. 2 - Pietrovich e a verdade
Cap. 3 - Encontro com Svidrigáilov
Cap. 4 - O libertino
Cap. 5 - Dúnia, Svidrigáilov e aulas de tiro
Cap. 6 - Svidrigáilov vai à América
Cap. 7 - Raskólnikov se despede outra vez
Cap. 8 - A verdade outra vez


Epílogo
Cap. 1 - Prisão, doença, casamento e morte
Cap. 2 - Mudança

20.2.09

Tableau

Cheguei e abri a porta mecanicamente, como sempre fazia, como toda a família fazia, como toda família faz. E sob a tênue luz que se infiltrava pelas cortinas de um fim de tarde, na penumbra em que jazia a sala, e mesmo com a TV desligada, uma imagem difusa congelou-me os membros e fez caminhar pelas costas um medo cheio de patas nojentas e arrepiantes. Os corpos de mãe e irmão meus achavam-se por sobre o sofá, inertes. Era chocante. Era surreal.

– Por que não estão vendo TV? - gritei, desesperado.
– Porque... uahh... estávamos dormindo... – e bocejou outra vez.
– Ah!

19.2.09

É madrugada...

... e tenho sono, mas não quero dormir. Quero escrever. E talvez escrever não diminua o aperto no peito, nem resolva os problemas do mundo, nem traga alegria, talvez só traga tristeza, certamente só trará isso. Mas sigo ainda escrevendo. Mais uma palavra. Mais uma linha. E fico sofrendo as dores que causo também. Como num grande jogo de espelhos, em que as tintas das minhas ações se refletem no mundo dos meus sentimentos. Não, não era bem isso. Queria dizer que as coisas que eu escrevo podem machucar tanto quanto as coisas que outros me fazem, como faço a outros, com a mesma sensibilidade de rinoceronte. Não, não, não. Em suma, como disse Belchior, sons, palavras são navalhas... Ah! diabo! também não era assim... É melhor ir dormir. Droga.

10.2.09

A câmara em 10 de fevereiro de 2009

O bom e o melhor da política não está mais na arte da organização, direção e administração dos estados e nações, nem tampouco no relacionamento com os outros, a fim de obter os resultados tão melhores quanto possíveis. Já disse uma vez, e digo de novo: política virou circo. Riamos.

E para isso, até que não foi má ideia o povo de Mauá eleger Batoré vereador. Aquele mesmo da praça é nossa. Hoje, declarou em tom solene: 1) que sua cidade teria dado um passo a frente, se tivesse reelegido o prefeito anterior (Leonel Damo - PV) – o que seria muito bom, não fosse estarmos à beira do abismo (veja o inusitado da imagem, leitor); 2) que não aguenta mais a buraqueira das ruas e avenidas: tem buraco tão grande que dá pra cair com as quatro rodas (e de fato não é exagero); 3) que é uma pena não saber onde se está caindo, se é no buraco do Leonel, se é no buraco do Oswaldo [Dias - PT]. Aí já é sacanagem, né, Batoré?

E entre suspeitas de mau uso de recursos do Fundeb, sumiço de livro-caixa, falta de remédios nos hospitais, auditorias nas secretarias por parte da atual gestão, ameaça de abertura de CPI por parte da oposição – neste verdadeiro caos, levanta-se o nobre vereador e ex-prefeito Edgar Grecco para propor lei que multa os donos de animais domésticos que não os vacinarem, encoleirarem, identificarem com placa, recolherem o cocô etc. etc. Nada contra os animais; mas que assunto inoportuno, não? E o discurso foi demorado. Não obstante a longa fala do nobre vereador, o sr. legislador Rogério Santana disse agradecer o colega por seu brilhante discurso. Nosso presidente da câmara é um fanfarrão!

28.1.09

Começou então para Raskólnikov um tempo singular: dir-se-ia que uma densa névoa subitamente tivesse se posto à sua frente, envolvendo-o em uma solidão pesada e inexorável. Ao evocar essa época, muito tempo depois, ele compreendeu que sua consciência estava obscurecida, e que esse estado permaneceu, com breves intervalos, até a catástrofe definitiva. Estava absolutamente convencido de ter se equivocado em muitos pontos, por exemplo, no momento e na duração de certos acontecimentos. Pelo menos, quando mais tarde quis reunir e coordenar as suas reminiscências, foi-lhe necessário recorrer a testemunhos de estranhos, para saber um grande número de particularidades. Confundia os fatos, considerava tal incidente como conseqüência de um outro que não existia senão na sua imaginação.

Crime e castigo. Sexta parte, cap. 1.

Tenho a repentina (e talvez blasfema) impressão de que Dostoiévski andou lendo Gabriel García Márquez. Não me pergunte como nem por quê.

26.1.09

E ela, que parece tão bonita, nem repara onde estou. E eu, que fiquei tão sem lugar, nem sei para onde vou. E as lágrimas, que correm tão docemente, vão salgando minha boca. E meu olhar.

20.1.09

A arte e a literatura dos cadernos de empregos

Eu sinceramente não sei quem é que está mais sem vergonha: esse pessoal do ramo prostitutivo... ou esse pessoal do meio jornalístico, que publica essas coisas (e o Diário, hein?).


Espere, leitor. Talvez v. não tenha penetrado no espírito da coisa. Nós estamos falando especificamente daquele anúncio da Babalú, que, não contente em ser "safada", também é "muito vadia". Este aqui:


Isto é in-crí-vel!!! E depois os professores é que ganham mal...

O mais legal de tudo, neste caderno de "Empregos & oportunidades" do DGABC, é que ele é lido pelos alunos do ensino fundamental da aprazível cidade de São Caetano do Sul! É que, por um convênio entre prefeitura e jornal, todo dia as escolas recebem 20 exemplares, a serem usados pelos professores num projeto denominado "O Jornal na Sala de Aula". Muito bem.

Pergunto eu: o supracitado caderno não é parte integrante do jornal? Creio que sim. Então, que se lasque!, tenho levado pra aula. E, se algum dia, alguma criança de 12 anos perguntar, Professor, o que é um "anal giratório"? Eu, com a cara mais inocente que tiver para o momento, responderei: "Não faço ideia, filho." E mudarei de assunto. Porque toda vez que tento imaginar o que seja essa coisa, sinto, além da vontade de rir, um misto de medo e dor.
Depois de ver À procura da felicidade, pensei em escrever sobre ela. E ia fazê-lo. Mas, pensando bem, o melhor é ler Sartre. Além de muitas coisas, evita-se o trabalho de pensar.

17.1.09

E não é que falar com a bola, o wilson do tom hanks, ou falar consigo mesmo, embora pareça loucura, é apenas um ato de desenlouquecimento?! E pensar que a infância me fez acreditar em tantas coisas, entre as quais: que era louco; que era especial; que o demônio vivia sob a minha cama.

14.1.09

Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma. (...) Se vossos feitos foram romanos, consolai-vos com Catão, que não teve estátua no Capitólio. Vinham os estrangeiros a Roma, viam as estátuas daqueles varões famosos, e perguntavam pela de Catão. Esta pergunta era a maior estátua de todas. Aos outros, pôs-lhe estátua o Senado; a Catão, o mundo.

Pe. Vieira. Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma (Capela Real, ano de 1669).


Eu adoro este padre.
A primeira gripe do ano foi muito legal. Ainda não acabou, e já estou com saudades. Pela primeira vez, trouxe em seu pacote viral insônia, falta de apetite, dor de cabeça, ouvido e dente. Mas deixou intactos o pulmão e a garganta. E, pelo menos, pude fumar.

13.1.09

Quando em férias, bela noite de céu estrelado, caminhando à beira-mar, alguém muito bacana, louco, bêbado, com uns tantos baseados, farinhas, balinhas, sabe-se lá deus o que esses maconheiros andam tomando, coloca pela segunda vez a mão em v., e agora demoradamente, é hora de dizer uma frase ridícula. Ainda assim, v. tenta ser mais prático: "Ei, companheiro, por favor, tire a mão de minha cintura." Para ouvir que: "É, o mundo ocidental tem um complexo em relação ao tato, não?"

Hahaha. O sujeito tinha senso de humor. O que te carrega para as raias do cinismo: "Não! o mundo ocidental é bastante rico em termos de diferenças, na verdade." O que não convence: a frase é inevitável. Então, a gente tenta fazê-la natural, busca pôr em segundo plano, camufla numa subordinada adverbial causal, mas o resultado é o mesmo. E se a mão, incômoda, continua em sua cintura: "É que, veja bem, temos hoje em dia... bem... por exemplo: como eu sou hétero, vejo que..." "...Hahahahahaha". De fato. Ridículo. O bom de tudo é que ninguém mais me agarrou pela cintura.

6.1.09

Meta para 2009

Eu só tenho uma:

- Trabalhar não mais que 4 horas diárias.

Acho difícil alcançar este ano, mas não estou tão longe. Oficialmente trabalho seis. Agora, é arranjar um jeito de cortar as malditas duas horas, a irresponsabilidade financeira, os gastos supérfluos, os charutos cubanos, as prostitutas do interior e as cervejas importadas. É utopia. Mas não é motivo para não querê-la.

22.12.08

Romântica lembrança

A lembrança foi quando, à noite, cansado de correr, parei pra assistir um jogo, um futebol, como tantos que joguei e assisti, nas ruas, nas calçadas, nos campinhos de várzea. E veio a danada da nostalgia a fazer cafunés, a lembrar do gosto doce da liberdade soprando no rosto, da adrenalina inflando os pulmões, da energia sempre renovada, do eterno correr atrás do adversário, da bola, do gol. Dos tênis imundos, rasgados. Da blusa puída, esquecida de lado, preparo pro frio. Do esperar pela próxima partida. Dos cabelos molhados, do suor. Daquele gosto salgado, distante, pequeno, querido... de felicidade. E foi então que me lembrei: na verdade, mais assisti jogos que joguei. Era sempre o último a ser escolhido.

20.12.08

A história contada pelos independentes

Quando Olga Defavari convida para o lançamento de um livro sobre Imprensa alternativa no ABC,


lá v. pode encontrar pessoas hardcore, como o cara que edita este zine bacana:



Mas v. não imagina que encontrará caras com quem conviveu por meses sem nunca dizer que tinham uma publicação de mais de cinco, seis anos. E v. começa a se perguntar por que as pessoas são tão modestas e recatadas.



Abrindo-lhe as páginas, porém, v. entende tudo. Há coisas escritas que não se fala.

19.12.08

Se isto fosse um diário não seria diário. Paciência. Há dias que não merecem ser escritos. Mas estes, que a partir de agora viverei, sim! São as férias. Doces, chegando serenas, prometendo dias de ócio, de festas, de sol, de cervejas, amigos e felicidade. Tomar umas biritas, pegar umas minas, ir para o meio do nada, lutar contra elementos naturais, embriagar-se com cheiro de árvores, brigar com insetos, arriscar a vida ao mar, fatigar o corpo e libertar a alma. Sentir falta de dias eneblinados, cimento, automóveis, eletricidade... E, depois, voltar pra cidade, pras pilhas de papel, pras nuvens de fumaça, e achar tudo isso nossa casa. Nossa rotina, nossa prisão. Em cujas paredes criamos imagens de liberdade.

17.12.08

Sapatadas


É singular o caso da sapatada no Bush, lá no Iraque. Não pela sapatada, mas pelo que ele disse depois: "Tudo que eu sei é que era número 41" (citado de memória). Saiu-se bem. E não me parece ser típico dele esses ditos espirituosos. Mas ditos espirituosos é que são tudo, embora tenham se perdido.

Ao que consta, na corte portuguesa eram muito comuns. Havia lá pessoas especialmente selecionadas, para tirar de cada situação, num relance genial, ao calor do momento, uma frase que fizesse rir ou pensar. Vez ou outra ressurge esta prática.

Conta-se, a respeito de Jânio Quadros, que, num debate, depois de muito ofender seu adversário, foi ele surpreendido pela reação algo inusitada da vítima, que tomando a palavra pôs-se de pé e declarou, em tom de pouco caso: "Pode falar. Fale. Que as suas palavras entram por um ouvido e saem por outro." Ao que Jânio imediatamente demoliu: "Impossível. O som não se propaga no vácuo."

5.12.08

Dias bem conturbados por aqui. Pela primeira vez em muito tempo, hoje, veio-me uma sombra que é mais uma premonição do futuro – fique a redundância –, e trazia um não-sei-quê de arrependimento, esquecimento e solidão. E tive a impressão que andei desperdiçando meu tempo nos últimos anos, ou pior, desperdiçando minha vida na última década. Sem tempo para decisões novas e corretas. Sem luz para essa sombra que tornará tudo realmente, e de fato, perdido.


Enquanto caminhava, pensando nisso, levantei lentamente os olhos num longo suspiro, olhei o céu e vi. Algumas folhas verde-escuras, das árvores mais altas, um céu bem cinza, escuro, de fim de tarde, vi o que queria ver. E, vendo, como um castigo, percorreu-me a nuca a assombração do inferno, uma coisa muito sutil, aqui-invisivelmente-ao-seu-lado, arrepiante, trazendo de volta o som de pessoas, de carros, de realidade. Um estado de prisão voluntária, de algemas invisíveis, de constante autoflagelamento e recriminação, obrigação a coisas indesejáveis, prazer comprado a desprazer, luta por sobrevivência, vontade de chorar, raiva, dúvida, medo e predomínio cego da razão. Ainda me arrepio só de lembrar.

16.11.08

.

Se a verdade um dia se escrevesse
Nas pedras da longuíssima estrada
De tanta solidão e dor, e cada
Desejo de outro mundo, e a angústia desse...


Se toda a gente que triste vivesse
Pudesse caminhar, já conformada,
Nas ruas solitárias, rumo ao nada,
Nas mortas letras tortas que relesse...


Em vez das gargalhadas costumeiras,
Das frases desornadas, desordeiras,
Somente se ouviria o som do frio


Leitor – agricultor que explora, lavra,
Nos indolores campos da palavra,
A distância, o silêncio, o vazio...


.

30.10.08

Novas pedagogias

E hoje a Folha disse que:

Professora é acusada de incitar agressão a criança de 5 anos

Mãe de garoto diz que docente de escola no Distrito Federal segurou os braços do filho e pediu que colegas dessem tapas em seu rosto

Uma briga entre crianças de uma turma de jardim de infância levou ao afastamento de uma professora de educação infantil, ontem, no Distrito Federal. Segundo alunos, após dois meninos se desentenderem na aula, a professora recorreu à violência para punir um dos garotos: chamou um deles à frente, segurou os braços da criança para trás e pediu que os demais colegas dessem tapas no rosto do menino, de cinco anos.

***

O fato positivo é que, finalmente, o agredido agora não é o docente. E, por isso, atitude correta. Boa professora.

27.10.08

Sobre o acordo ortográfico II

Os únicos pontos que, acho, realmente podem oferecer alguma dúvida são:

1. As seqüências consonânticas, descritas na "Base IV", que ora se conservam, ora se eliminam, ora se facultam, o que pode gerar dúvidas exatamente na facultatividade entre "ato" ou "acto". Afinal, para nós brasileiros não há dúvida que a primeira grafia é correta; a dúvida é se podemos corrigir um cabo-verdiano dizendo que a segunda é errada.

2. O hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares, descrito na "Base XV", mais precisamente no artigo primeiro, onde se diz que "certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, paraquedas, paraquedista, etc." O problema é que neste ou deste "etc." a gente pode enfiar ou excluir o que quiser.

3. O hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação, da "Base XVI". Esta seção parece bem bonitinha, com exceção de um prefixo: o sub. Antigamente, o uso impunha hífen antes de r ou b. Agora, o acordo elimina totalmente, gerando anomalias fonéticas, como subreptício ou subregião (nada impedirá a leitura deste "bre" como sílaba), ou gráficas, como subbase ou subbosque.

Agora, uma coisa seja dita: o sr. Carlos Alberto Ribeiro de Xavier tinha razão, e muita razão, ao se irritar. Muitas dúvidas vêm de quem não leu bem o texto do Acordo ou, na pior hipótese, não estudou bem gramática. Os capítulos que tratam da acentuação estão perfeitos. Apesar disso, ainda há quem queira ver pêlo em ovo, como a Folha, que hoje disse:

O acordo diz que perdem o acento os ditongos "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "idéia" e "jibóia". No entanto, existe hoje uma regra que determina que paroxítonas terminadas com "r" tenham acento. O que fazer com "destróier", que se encaixa nas duas regras?

Se eu fosse o Xavier, diria: "Gente, eu não vejo dificuldade nisso aqui também não... Se antes "destróier" se encaixava em duas regras, agora vai ser regido só por uma, catapimbas!"

20.10.08

Começou hoje uma Semana que celebra os 150 anos de publicação da mais controversa, polêmica e importante teoria científica de nosso tempo, quiçá de todos. E o tempo não poderia ser melhor; 2008 é por demais significativo: há 400 anos nascia Antônio Vieira, há 200 chegava a Corte Portuguesa ao Brasil, há 100 morria Machado de Assis e também há 100 anos nascia Guimarães Rosa... Mas a Teoria da Evolução é o que continua a nos fazer pensar.

Porque ainda em 2008 chegam-nos rastros da apropriação das idéias darwinianas para solidificar preconceitos e rascismos seculares. E justificar a opressão. Nunca é demais lembrar, dizia hoje um meu professor de literatura, que foi graças a um certo valor positivo, maquiavelicamente agregado ao povo europeu pelo viés darwinista, que se construiu o eurocentrismo, conceito eterno que nunca se derruba.

– A Terra é redonda, naturalmente. Apesar disso, nos acostumamos a ver o mapa sempre pela mesma perspectiva, com a Europa ao centro, acima e sobre a África. O que, embora pareça, não é natural. E ensinamos isso nas escolas. Essa mesma semelhança com a naturalidade permitiu que os europeus repartissem a África a golpes de esquadro sobre o mapa, definindo as fronteiras dos atuais países – Egito vai até aqui, Sudão começa ali, Argélia acaba acolá –, em linhas retas, irreais, feridas da régua. O que, sem Darwin, teria sido feito, sim; mas não com tanta naturalidade.

13.10.08

Sabe se ele é casado?

"O importante em relação a um candidato é o caráter das pessoas. Se ele é solteiro, viúvo, divorciado, casado, se tem filhos ou não, é a vida pessoal de cada um. O importante é a sua capacidade, o seu preparo, sua integridade."
Gilberto Kassab

E quem diria que um dia o PFL diria isso ao PT. E com todo o direito.

10.10.08

Um outro cinco de outubro

E eu pensando que era estranho quase ninguém ter falado na elevada quantidade de brancos/nulos cá pelos lados de Mauá: 25.000, ou 10%. Tá certo que muita gente não sabe votar nessas máquina nova. Muito mais por preguiça de aprender que por falta de inteligência, o que afinal resulta sempre em burrice. Sem contar a prática de escolher candidato selecionando-os do chão próximo aos portões da escola; constatei isso in loco na última eleição. Sim, aqui acontecem burrices de vários tipos e formas.

Mas, quando fui ver, em Santo André é pior: 16% de brancos/nulos, ou seja, 74.000 votos jogados fora. Se a gente junta as abstenções, já lá se vão mais de 150.000 pessoas que decidiram não votar: 32% dos eleitores.

Em São Paulo, perto de dois milhões escolheram a mesma coisa. É pra se pensar em nossa tal democracia.

5.10.08

Cinco de outubro

Já uma semana sem te ver, alfabeto amigo, e me impulsiona ao pé do teclado este bom costume: o de escrever tudo para não dizer nada. Bom costume ou vadiação, o bruxo do Cosme Velho, em seu supracitado romance, dizia taxativo: "Vadiação é bom costume". Cem anos passaram voando, e as palavras do Conselheiro Aires soam novas, revolucionárias, absurdas até. E haverão de rejuvenescer ainda mais, porque dia a dia vai nascendo e criando-se gente neurótica, orcarrólique, exigente, reclamona, insensível, pragmática, perfeccionista, preocupada com prazos e acertos, matando o tempo ocioso e, sem ver, a própria vida.

E sem ver a própria vida. Que, apesar de tudo, segue. Segue a vida. Já não tão gostosa e divertida.

27.9.08

A arte e a literatura dos livros ensebados


No mês do centenário da morte do "mulato sabido", diria Oswald de Andrade, o Memorial de Aires veio a calhar. Uma obra menor se comparada aos clássicos, vá lá. Mas nela está sempre o Machadão, provocando leitor, pena e papel. E dizendo, assim, despretenciosamente, idéias que, mesmo novas, sua caligrafia faz parecer sempre terem existido. Ainda bem que não terei o trabalho de grifá-las desta vez.

Se na compra de livros usados ganhamos algo, superior à mísera economia do vil metal, a substância desse lucro pertence à esfera dos substantivos incontáveis, tal é a beleza que se nos vende por cinco, dez, quinze reais, não mais. Mas, mesmo incontável, é uma beleza peculiar essa, a das histórias das leituras marcadas nas margens. Sempre tive, tenho, terei preguiça de pensar, embora admire o ato. Então, se encontro anotações marginais, fico duplamente satisfeito, pela leitura feita e a interpretação roubada. Sei que a confissão é íntima, teclado, mas quase ninguém nos lê. Além do que, já sabemos: não se perde nada em parecer mau; ganha-se quase tanto como em sê-lo.

15.9.08

O fim das estradas utópicas leva desgraçadamente a becos onde circulam tartarugas. Há quem veja, e é realmente visível, o avanço na questão dos direitos humanos, na legislação, na constituição de 1988. Ainda que pareça absurdo escrever que "toda criança tem direito à vida", o absurdo não está na lei: está na história que faz as leis necessárias. Mas, se há avanços, há recuos: tais direitos já pertenceram a um plano de idéias maior, mais alto, tão alto que transpunha fronteiras nacionais. Agora, consolida-se o pensamento de um Fernando Pessoa, a dizer que não existe idéia mais abstrata que o conceito de humanidade; de concreto mesmo, só a pátria. A segunda desgraça é que nem toda pátria é concreta; é ilusória a visão dos avanços e da conquista de direitos via legislação, se ela não é cumprida, se os transgressores não são punidos. De toda maneira, a chave da sucessão de desgraças do nosso tempo está no momento quando decidimos que exigir o impossível era algo irreal.

Um morimbundo René, n'As invasões bárbaras, diz que conhecer a História vendo como fomos piores é bom para nos acalmar. Só não diz qual remédio para o enjôo que cotidianamente nos consome, levados pelos caminhos lentos da humanidade, limitados pelas horas rápidas da vida, incrédulos das veredas passadas, descrentes das trilhas futuras, chateados pelas cores cinzentas e paradas da paisagem.

6.9.08

Uma nação, um país e um povo

Era para sermos as três coisas, aparentemente sinônimas. Somos, sim, uma mistura de povos que se diz povo; oficialmente, talvez até sejamos um país, se não de fato, pelo menos de direito; mas, com certeza, não somos uma nação.

Sendo assim, não precisamos discutir temas pioritários. Sendo assim, de uns tempos para cá, nos altos poderes que nos dominam – altos, porque inacessíveis – não se fala de outra coisa senão da ilegalidade dos grampos telefônicos pela polícia. E a imprensa, tal como sempre, não diz o que deveria ser dito: que essa reação aos grampos nada mais é que uma extensão da reação ao uso de algemas; que, naturalmente, quando um grupo se sente ameaçado, reage e, mesmo se essa reação é ilegal, buscam-se meios de legalizá-la; mas que, nesse caso, como o grupinho é criminoso e minoritário, não se deveria, em função deles, legalizar nem ilegalizar nada. Mas a gente vai fazer o quê? São eles quem fazem as leis. Eles são a Lei.

É óbvio que o cidadão comum está muito pouco preocupado com grampos telefônicos. Principalmente porque não teme quase nada. O que mais teme o cidadão comum é cair na malha fina. E aqueles que a gente conhece, que conforme o caso caíram na malha ou abraçaram o leão, e são agora obrigados a pagar em multas cinco, dez, dezoito mil, de acordo com sua particular desgraça, a gente não consegue censurar essas pessoas. Como convencer um assalariado de que sonegar imposto faz mal ao país? Não. Não. Não faz. Não, perto do imposto sonegado pela corporação que lhe paga salário; não, perto de formação de quadrilha, tráfico de influência e evasão de divisas; não, perto do constante, diverso e eficaz lobby, que representa democraticamente o interesse de todos, com exceção do povo.

E, assim, os legisladores, a imprensa, o cidadão comum e a gente – cada um a sua maneira, mostramos individualmente como pudemos, em termos éticos, abandonar a idéia de um projeto de nação. Se é que algum dia tivemos um.